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Universalização da Internet: o Portal da Democracia Direta

Autor original: Maurício Jun Handa

Seção original: Artigos de opinião

A democracia moderna é representativa: elegemos um executivo e um legislativo para exercerem o poder. A democracia antiga, ou grega, era direta: o povo, na praça, decidia as questões fundamentais. Essa é a grande diferença das duas democracias. Um tête-à-tête generalizado distinguia a democracia em seus primórdios. Era um regime da presença igualitária. Rousseau, o mais grego dos pensadores modernos da política, elogia esse olho no olho dos antigos. Até busca reativá-lo, escrevendo o Contrato social, em 1762.


Isso significa que toda representação é uma queda de qualidade. A democracia tem uma superioridade moral, ética, sobre qualquer outro regime político porque nela, olhando-nos no olho, acreditamos dizer a verdade. (Eu acrescentaria que um olhar que encontra o outro é o melhor nascimento do amor, em especial do amor à primeira vista). A democracia, quando todos se olham, é o regime da verdade e mesmo do amor. Mas, se os cidadãos não se encontram mais fisicamente, essa intensidade positiva desaba. Surge a representação - porta aberta para a mentira. O político trai a vontade de seu eleitor, a carta ou a gravação deturpam o que a pessoa quis dizer.


Este, o grande problema da democracia virtual: ela leva a representação ao extremo. Como confiar no outro? Não podemos submetê-lo a um face-a-face, conferir sua honestidade ou testar seu ânimo. Exemplo disso é como, nas salas de bate-papo, mente-se deslavadamente. As mulheres são lindas, magras, os homens são todos jovens, dinâmicos, bem sucedidos.


Eis a questão: no fundo continuamos acreditando que é mais fácil mentir à distância que ao vivo, e que a presença é uma garantia de veracidade.


O ideal de democracia ainda hoje aparece ligado à democracia direta dos atenienses. Como nossos Estados nacionais são maiores que as cidades-Estado da Antiguidade, é impossível reunir todos num único lugar. Por isso, a democracia atual é representativa, enquanto a dos atenienses era direta.


Mas aqui surgem as enormes possibilidades democráticas da Internet: milhões de pessoas podem ser consultadas sobre os assuntos de sua preferência. Plebiscitos freqüentes se tornam viáveis. A participação popular pode aumentar de forma vertiginosa.


Se a Internet aumenta a distância entre as pessoas, substituindo o olho no olho pelo contato escaneado, indireto, ela também amplia a comunicação, permitindo maior participação de todos. Ela é um meio de contato essencialmente de não-presença, de representação - mas ao mesmo tempo propicia a participação em escala inédita.


Contudo, esse potencial democrático da Internet não é fácil de se realizar. Não é provável que os políticos, mediadores entre o eleitorado e a coisa pública, aceitem passar parte de seu poder a seu legítimo dono - o povo. Mudar essa cultura exigirá mobilização e empenho. O internauta democrata terá que lutar!


Além disso, o recurso intenso aos plebiscitos coloca problemas. Ele é um dos pilares da democracia suíça. Naquele país, o povo precisa aprovar as leis para que entrem em vigor. A cada poucos meses se procede a um pacote de plebiscitos. Mas o eleitorado não se motiva, e por isso se tenta facilitar o voto - a última novidade é um envelope postal já franqueado. Basta o eleitor preencher a cédula e coloca-la numa caixa de correio. Mesmo assim a abstenção é enorme. Quem garante que um voto eletrônico seria mais eficaz? A dificuldade de fazer a voz popular se manifestar não é técnica: soma o desinteresse do povo e o interesse dos poderosos em desinteressa-lo. Não há soluções apenas tecnológicas para problemas sociais.


Mas as grandes inovações tecnológicas - e a informática é uma delas - não são meros meios. Mudam nossa própria forma de perceber as coisas. É verdade que o cidadão atual é um eleitor desencantado. Hoje prevalecem os interesses econômicos privados, como mostrou o século XIX, e os desejos individuais que o século XX revelou. Isso dificulta a dimensão pública da vida. Mas aqui está em jogo outra coisa. A Internet e a informática não são apenas uma invenção técnica. Constituem uma nova extensão do homem - como diria Marshal McLuhan. Ora, uma nova prótese de nosso corpo e alma não abre novas perspectivas às relações inter-humanas?


Vejamos as coisas por aí. Só uma sociedade individualista desenvolveria o fax, o e-mail, a Internet com o fito de permitir às pessoas trabalhar em casa, eliminando um velho espaço de socialização, que era o do local de trabalho. Os contatos entre as pessoas ficam cada vez menos corpóreos. Provavelmente, a médio prazo isso perturbará nossa sexualidade e nossa saúde. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de se comunicar com o distante pode tornar o outro mais presente do que nunca.


Este, o paradoxo: por um lado, o virtual elimina a presença, o corpo tangível, degrada o tato e os sentidos; por outro, ele torna acessível o remoto. É claro que o acesso que ele proporciona é o da representação, e não o da presença. Mas essa representação não é a mesma da política tradicional, marcada pelo silenciamento do representado. A nova representação se fortalece com a voz dos representados. O deputado tradicional, uma vez eleito, queria esquecer e calar seus eleitores. O deputado militante e aguerrido de nossos dias - em especial nos partidos progressistas, de esquerda - só terá voz se esta for a dos que o apóiam. E é esse o diferencial que a Internet pode trazer à democracia. Ela pode permitir um sem-fim de acessos, de contatos, de trocas.


Finalmente, é bom lembrar que democracia tem vários sentidos. No plano diretamente político, podemos ensaiar plebiscitos virtuais o tempo todo: todas as leis que forem além do nível técnico poderiam ser votadas on line, após amplo debate. Prefeituras poderiam testar isso, submetendo aos cidadãos temas de discussão e se orientando por seu voto. Mas há outros níveis do que é democracia. "Conhecimento é poder", diziam os primeiros modernos, Francis Bacon e Thomas Hobbes. O acesso à informação é fundamental. Mas ele depende de termos os links mais consultados. Para sermos ouvidos (lidos) é preciso que nossa home page seja de fácil e conhecido acesso. Uma batalha se trava entre o sentido comercial e o democrático da Internet. Há fortes chances de que a Internet dos negócios ganhe. Mas mesmo assim a Internet das idéias, dos ideais e dos desejos pode ter seu espaço. Amplia-lo depende de nós. E com isso é provável que a democracia ganhe um território - virtual - maior do que jamais teve: afinal, regimes democráticos até hoje foram mais a exceção do que a regra.


*Renato Janine Ribeiro, brasileiro, é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor de A última razão dos reis e Recordar Foucault, entre outros


Este artigo foi retirado do site Hypermídia.







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