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Mercado e Terceiro Setor

Autor original: Paulo Henrique Lima

Seção original: Artigos de opinião

Este artigo foi publicado no jornal O Tempo, em 15/3/2000

Josadac Figueira de Matos*


No artigo "Gestores para o Terceiro Setor", publicado nesta página em 25 de fevereiro último, tratei do terceiro setor como segmento de atividades públicas não estatais formado por organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos. Por princípio, tais organizações não devem agir baseadas na lógica do mercado. A denominação de terceiro setor já define sua posição: não faz parte do Estado (primeiro setor) nem do mercado (segundo setor). Reconheço que esta situação de independência é delicada, uma vez que pode receber apoio, financeiro ou não, tanto do poder público como de empresas. Muitas empresas mantém organizações desta natureza, o que é uma relação perigosa. Por isso, o cerne daquele artigo era a especialização de profissionais para dirigirem essas organizações, pois grande parte delas é administrada por funcionários advindos das próprias empresas que as mantém ou apóiam, se não por voluntários com formação em gerência empresarial ou do setor público.


Essas organizações, chamadas genericamente de ongs, estão adquirindo tal importância pelo seu desempenho, que na primeira reunião entre os chefes de Estado e de Governo da América Latina e Caribe e da União Européia, realizada no Rio de Janeiro nos dias 28 e 29 de junho de 1999, dos 69 itens adotados pelos integrantes da reunião, o de número 21 recomenda "Ressaltar a contribuição de novos atores, parceiros e recursos da sociedade civil com o objetivo de consolidar a democracia, o desenvolvimento social e econômico, bem como aprofundar o respeito aos direitos humanos".


Pois bem, o sucesso dessas organizações e o novo modo de conhecer a realidade social para resolver seus problemas está chamando a atenção das organizações centradas no mercado. Em artigo intitulado "Um Espectro Ronda o Terceiro Setor: o Espectro do Mercado", publicado na Revista Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas (vol. 35, no. 5, 1999), Fernando G. Tenório, Coordenador do Programa de Estudos em Gestão Social, daquela instituição, mostra alguns indícios de sutis investidas. O autor cita vários trechos de reportagens nada inocentes sobre o assunto, incluindo uma que destoa até mesmo dos padrões morais vigentes: "Uma Missão Especial. Ministro pede a banqueiro (...) que monte uma ong para custear campanha pela privatização" (Veja, 1998:50).


Sabe-se que o mercado é o portador do pensamento único. Sua voracidade de apoderar-se de tudo que possa dar lucro o impede de aprender a conviver com formas de atividades humanas associadas que não tenham o lucro como resultado teleológico nem a estratégia como método. Para apoiar-me em alguém do ramo, recorro ao mega-investidor, mas também defensor da sociedade aberta (nos seus termos, é claro), George Soros, que em seu livro "The Crisis of Global Capitalism: Open Society Endangered" (PublicAffairs, 1998, p.xx) cunha o termo "fundamentalismo de mercado". Soros diz textualmente que "Os mercados financeiros são inerentemente instáveis e que há necessidades sociais que não podem ser atendidas, dando-se ao mercado uma liberdade sem freios.


Infelizmente esses defeitos não são reconhecidos (pelos fundamentalistas do mercado, grifo meu). Em vez disso há uma ampla crença de que os mercados se auto corrigem...". "Proclama-se que o interesse comum é mais bem servido, deixando-se a cada um a busca de seus próprios interesses e que proteger o interesse comum por meio de decisões coletivas distorce os mecanismos de mercado". Ainda conforme Soros "...foi quando Margareth Tatcher e Ronald Reagan chegaram ao poder por volta de 1980 que o fundamentalismo de mercado tornou-se ideologia dominante". Vejam que não estou buscando como referência nenhum "execrável" marxista, ninguém antimercado, nem mesmo pessoa que o mercado livre lhe tenha tomado o emprego. Apenas um indivíduo experiente e relativamente honesto que sabe que nem o mercado absolutamente livre ou o Estado sem apoio da sociedade civil é capaz de resolver todos os problemas econômicos e sociais.


Acima me referi à estratégia como o método preferencial de ação das organizações centradas no mercado. Como se sabe a palavra estratégia é de origem grega e vem de stratego. Denominava aquele que dirigia um navio, passou a significar governo e hoje é basicamente um método de se planejar como vencer um adversário militar, comercial, concorrente de qualquer natureza, e até mesmo como conviver vantajosamente em situações competitivas, não necessariamente adversas. Não me parece ser este o método mais adequado para nortear as atividades das organizações do terceiro setor, se sua racionalidade teleológica for o bem-estar, a solidariedade, o abandono do egocentrismo e o aperfeiçoamento da democracia como o mundo da vida, para usar o termo que Habermas tomou de Husserl e emprega para diferenciar as relações baseadas no agir comunicativo daquelas que têm o agir estratégico como princípio.


Segundo Jürgen Habermas "O agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na força racionalmente motivadora de atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente." (Guinada Pragmática, in Pensamento Pós-Metafísico, Rio: Editora Tempo Brasileiro, 1990, p.72.)


Ora, se concordarmos que os métodos (os meios) devem ser adequados aos fins, a ação comunicativa, e não o agir estratégico, deve ser o modelo básico de gestão das organizações do terceiro setor. Não significa insulamento nem antagonismo com as organizações de mercado, mas respeito pelos objetivos e espaço de cada setor, sem pensamento único, pois quando todos estão pensando a mesma coisa, na verdade ninguém está pensando nada.


*Josadac Figueira de Matos é coordenador e professor do curso de pós-graduação em Gestão Estratégica de Recursos Humanos do UNI-BH






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.





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