Autor original: Maurício Jun Handa
Seção original: Artigos de opinião
Sergio Goes de Paula
No dia 27 de agosto foi sancionado pelo presidente da República um decreto há muito esperado no mundo das telecomunicações. A ansiedade se justificava: tratava-se da criação do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, que tem como objetivo financiar ou subsidiar a conexão — por telefone e por Internet — em áreas e situações onde o retorno comercial não justifica a implantação dos serviços. O decreto fala de populações carentes, de zonas de fronteira, de bibliotecas, de hospitais, de escolas etc. (A íntegra pode ser encontrada em ftp://ftp.mc.gov.br/fust/minuta_fust.exe). O fundo é alimentado por 1% do faturamento das empresas de telecomunicação e é dinheiro para rico nenhum botar defeito: 1 bilhão de reais por ano.
A regulamentação do decreto seguiu um caminho que, até onde sei, é pouco comum: foi aberta à sugestão pública. Por dez dias corridos, os interessados podiam, através da página na Internet do Ministério da Comunicação, enviar suas propostas de modificação, supressão, acréscimo de artigos. Democrático, não? As sugestões que foram enviadas até o dia 6 de setembro estão sendo apreciadas pelo governo e até o dia 18 a versão definitiva será publicada. A partir de então, é temporada de caça: trata-se de enviar projetos e rezar — ou fazer lobby.
Em si mesmo, o decreto é revelador da política que se faz no Brasil: no item V do artigo 14 é perfeitamente possível ver o Serra argumentando; no item V do mesmo artigo, quase se pode ver Paulo Renato mandando seu recado; mais adiante, é o general Cardoso quem marca posição. Não é grave; pelo contrário, eis o governo se articulando. Mais medo eu tenho do que não vejo ou do que não sei. Onde estão mesmo as empresas de telecomunicações?
Porque o grande perigo é que este dinheiro vá todo para o bolso das telecom, para pagar por aquilo que é sua obrigação — telefones públicos, por exemplo — ou que se desperdice a oportunidade de reduzir a imensa disparidade no acesso à comunicação. Sim, porque se a distribuição de renda no Brasil é de fazer vergonha, no que se refere à distribuição de informações, aí sim, é feia a coisa. Para ficar apenas na nova economia, não custa lembrar que apenas 3% da população brasileira tem acesso à Internet (contra cerca de 40% nos Estados Unidos) e que são apenas 1.300 provedores de acesso em 300 municípios brasileiros. Por outro lado, os ingleses, que têm 20% da população ligada à Internet, estão preocupadíssimos, porque, claro, os mais pobres, os mais velhos e os menos brancos ficaram de fora; o governo inglês está disposto a gastar (segundo relatório da Booz Allen & Hamilton) £ 2,7 bilhões para estreitar o digital divide lá deles, e chegar, em 2003, a 70% da população gozando dos benefícios da web; o governo federal dos Estados Unidos está gastando US$ 5,5 bilhões por ano com projetos que facilitem a “knowledge economy” — e não vamos achar que é apenas por causa do comércio eletrônico, porque aqui o que dá dinheiro é o b2b (business to business, negócios entre empresas) e este não precisa de ajuda.
Mas, voltando ao nosso decreto. Dez dias corridos é pouco tempo para matéria de tanto interesse, e o tempo parece ainda mais curto quando se considera a nula divulgação da rara possibilidade de fazer sugestões na regulamentação de um decreto. Mas não é o caso de reclamar, porque afinal de contas, é matéria muito especializada, e o mínimo que se espera dos interessados é que se interessem. O problema é que nem todos os interessados são do mesmo calibre, o que se pode ver pela lista dos responsáveis pelas sugestões feitas. As empresas de telecomunicações, ligadíssimas no assunto e bem providas de advogados, foram responsáveis pela imensa maioria das sugestões feitas: das 194 sugestões, 90 foram apresentadas diretamente pelas telecom — só a Vesper e a Embratel mandaram 34.
Estão no seu direito, sem dúvida. Como também estão no seu direito as poucas organizações da sociedade civil que enviaram sugestões, propondo que todas as organizações da sociedade civil de interesse público (e não apenas as bibliotecas, escolas e hospitais) com comprovada atuação junto às populações carentes também pudessem se habilitar ao uso dos recursos do FUST, especialmente no que diz respeito à comunicação por Internet.
Tal ampliação é fundamental para que se encerre o chamado hiato – melhor seria chamar de abismo – digital. É de justiça, sem dúvida, que hospitais, escolas e bibliotecas — só os de interesse público e que prestem serviços gratuitos, para evitar a falácia pilantrópica — se beneficiem; mas estamos falando aí principalmente de comunicação telefônica. Um projeto amplo de difusão de Internet, e Internet barata, para os desprovidos, não pode deixar de considerar o universo da sociedade civil organizada. As ongs — vamos aceitar o nome pelo qual são mais conhecidas — têm duas características básicas que lhes dão importância única: estão espalhadas por todos e cada um dos municípios brasileiros, e em geral estão articuladas em rede com outras ongs. Uma estratégia de implantação de Internet no Brasil que contasse com a participação das ongs — também de interesse público e serviços gratuitos, também para evitar a falácia pilantrópica — permitiria pensar em acesso universal numa dimensão inédita.
Tal estratégia poderia ter vários caminhos. Vamos pensar grande, já que dinheiro há, como dizia Nelson Rodrigues, e o problema é imenso. A Rits já andou pensando nisso, e pediu à Tachyon (empresa epecializda em transmissão de dados) que desse um orçamento para conexões em todos os municípios brasileiros, a partir de uma rede de satélites geoestacionários. Absurdo? Não. Não é sonho imaginar transponders (são os canais de transmissão e recepção de satélites geoestacionários) para uso social: o custo de conectividade para 6.400 telecentros de uso comunitário é de cerca de US$ 80.000.000,00 no primeiro ano e US$ 40.000.000,00 no segundo ano. Antes disso, ou simultaneamente, estaríamos criando protocolos de cooperação que permitissem que cada organização da sociedade civil funcione como provedor de acesso para suas cidades e instalaríamos em cada uma delas um quiosque para acesso público, através do qual se possa navegar, usar correio eletrônico etc. Complicado? Nem um pouco. Há tecnologias simples, disponíveis a custo zero; Unicamp desenvolveu um protótipo de quiosque que custa cerca de 500 reais e que usa programas gratuitos. E não podemos nos esquecer que temos de capacitar estas ongs no uso e manutenção destes provedores, quiosques etc., e teríamos de treinar as pessoas no uso da Internet Difícil? É, é difícil. Aqui está o calcanhar de Aquiles da proposta: usar e manter serviços de Internet não é nada evidente em si mesmo, nem vai acontecer de um dia para outro. Mas a dificuldade não é intransponível; a própria articulação entre as ongs, o seu funcionamento em rede dá uma sinergia que facilita em muito a ação.
Nada disso é sonho, nada disso é invenção. Várias ongs já têm como missão a criação desta Internet dos pobres. A Rits se orgulha de ser a primeira, mas muitas outras já são companheiras nesta caminhada: Agência Cidadão, Rede Jovem, ABDL, Fase, sampa.org, CDI, Viva Rio. E temos a vantagem do atraso de que fala Gershenkron: as teorias existem, as tecnologias estão disponíveis. Falta o dinheiro. Faltava? Pode-se estender o prazo, pode-se buscar parceiros internacionais, pode-se usar a imaginação. E, principalmente, pode-se dar ao problema a dimensão que ele realmente tem e não aceitar a ampliação da injustiça social, desta vez travestida em má distribuição da informação.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
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