Autor original: Flavia Mattar
Seção original:
Airton Bodstein de Barros*
Água é um recurso natural vital para o ser vivo e portanto qualquer regulamentação sobre o seu uso ou disponibilidade é motivo de grandes inquietações da sociedade como um todo. Com tal envolvimento e dependências múltiplas, a gestão da água impõe um processo de ampla negociação de interesses envolvendo todos os atores concernentes, organizados por grupos ou reagrupados em função de objetivos específicos ou temporais. Para que essa gestão se torne efetiva e produtiva é preciso buscar um estado de equilíbrio dinâmico permanente entre as partes. O equilíbrio que se busca aqui, não é o estático, da uniformidade ou da igualdade. A igualdade para ser absoluta exige que todos os componentes sejam iguais, o que vai de encontro ao próprio conceito da individualidade que caracteriza a enorme biodiversidade das espécies. Devemos buscar a "igualdade de oportunidades" permitindo que as individualidades estabeleçam as diferenças.
A palavra Gestão tem sido muito utilizada atualmente e quase sempre entendida como sinônimo de gerenciamento ou administração. O gerenciamento é parte da gestão, é atividade administrativa envolvendo mais especificamente a execução e acompanhamento das ações. A gestão é mais abrangente atuando no planejamento global a partir das vertentes políticas, econômicas e sociais. Mas a gestão aplicada aos recursos hídricos ou às questões ambientais que se configura como a própria gestão pública, é um processo bem mais amplo e complexo mesmo no campo teórico, exigindo legislação própria de difícil interpretação. Quando passamos à prática, tais leis e princípios estão muito além da compreensão da grande maioria da população e principalmente da disposição em aceitá-las, tanto pela própria sociedade que habituou-se à gratuidade e disponibilidade "infinita" desse recurso natural como nas diversas instâncias governamentais, históricamente acostumadas com a administração centralizada.
É dentro desses princípios que entendemos e estamos conduzindo o processo de gestão da bacia do rio Itabapoana, no âmbito do Projeto Managé. O reconhecimento das diferenças individuais, a clareza no entendimento da existência dos diversos grupos de interesse, origens, formação, reagrupamentos por diferentes causas ou objetivos, o estabelecimento da competição sadia e produtiva, a criação e manutenção de uma faixa segura de diferenças e divergências, que permita a manifestação de todos os setores e contemple grande parte dos interesses da maioria sem inviabilizar a concretização de alguns interesses de minorias. E principalmente sem perder de vista a tese de que a gestão não deve ser tutelada indefinidamente; união, estados, universidades, empresas ou qualquer outro fomentador, incentivador, motivador ou mediador deve atuar no sentido da organização e da capacitação local para garantir a auto-gestão. Essa é a grande oportunidade de se atingir a tão sonhada "municipalização plena", ou seja, devolver aos municípios que estão na base do sistema político-administrativo, a sua capacidade de formular, planejar e realizar as ações conforme as suas demandas. O envolvimento da comunidade, a auto-estima, o chamar prá si as responsabilidades, são fatores de garantia de continuidade e da tão desejada sustentabilidade.
A Lei de Recursos Hídricos e a descentralização -A lei dos recursos hídricos (9.433/97) estabelece nos seus fundamentos, artigo 1o inciso VI, que "a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades". Nesse inciso está o chamado "espírito da lei", o ponto central que determina o sentido filosófico que norteou os legisladores. O inciso V, que considera a bacia hidrográfica como unidade de planejamento é uma referência técnica e os quatro primeiros incisos estão na verdade, garantidos por este último, caso seja absolutamente respeitado no seu caráter conceitual e filosófico. A gestão descentralizada deve respeitar os critérios de representatividade, legitimidade e respeito aos direitos individuais ou de grupos, organizados ou não.
A lei prevê a criação do Conselho Nacional de Recursos hídricos, dos Conselhos Estaduais e dos Comitês de Bacia e respectivas Agências de Água como parte do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Como partes integrantes da lei, essas estruturas administrativas não podem e não devem se afastar do princípio filosófico da legislação que as originou, ou seja, da descentralização nas tomadas de decisões ou ainda da democratização proporcionada pela participação da sociedade civil e das suas entidades representativas nas estruturas colegiadas. A própria composição do Conselho Nacional, com mais de noventa por cento de representação governamental, já espelha o desacordo com essa intenção e caracteriza a tendência à centralização no poder público, das decisões referentes às questões relacionadas à água. É preciso que se reveja, urgentemente, essa distorção no órgão máximo de decisão da política de águas em nosso país.
Muitos entenderam a lei 9.433/97 - ou convenientemente assim a interpretaram - como uma grande possibilidade de gerar novos recursos, através da cobrança da água, para financiar o setor público. Ou uma nova modalidade de taxar as empresas e também reforçar o caixa. Ambas as hipóteses são falsas. A população não vai aceitar e consequentemente não pagará um novo imposto que seja canalizado para o ralo do caixa-único. Será necessário um grande programa de informação e de convencimento com absoluta transparência na aplicação dos recursos. E pelo lado das empresas, as experiências mundiais demonstram que as mesmas se adequam rapidamente, otimizam processos, negociam com o governo investimentos em redução de impactos e com isso a expectativa de "aumento da receita" vai para o espaço.
Outros vêm nos Comitês uma bela oportunidade de fazer política partidária com fins eleitoreiros, transformando em palanques eleitorais, essas iniciativas que deveriam ser o germe de um processo de construção de uma cidadania responsável e participativa. É importante frisar que a lei 9.433 representa, certamente um avanço; que os Comitês de Bacia, representativos da sociedade como um todo, autônomos e legítimos, podem proporcionar um salto de desenvolvimento no país, através de uma nova inter-relação social envolvendo o setor produtivo, governo e sociedade. Mas tudo isso considerando que certos princípios serão respeitados. Não podemos correr o risco de inviabilizar uma boa idéia pela sua má aplicação. É preciso acabar com a cultura ultrapassada de que cada um desses segmentos, por ter interesses próprios, estejam sempre em campos opostos e necessariamente conflitantes. O conflito é natural e muitas vezes, quando convenientemente administrado, aprimora o processo o que é bastante saudável. O que se deve evitar é que o conflito se radicalize de tal forma que paralise todo e qualquer processo de desenvolvimento.
Mas existem interesses maiores, comum a todos e são esses objetivos aglutinadores que devem ser buscados pelo sistema gestor.
Torna-se necessário separar as divergências setoriais, interesses momentâneos ou mesmo grandes diferenças ideológicas dos objetivos comuns a todos, por exemplo, do desenvolvimento sustentado e da melhoria de qualidade de vida de toda a população, quer estejam os indivíduos no governo, na empresa, na agricultura ou exercendo simplesmente o papel de cidadão.
O que pretendemos com este artigo, é iniciar um processo de ampla discussão sobre a formação dos Comitês de Bacia Hidrográfica, o seu funcionamento, a importância em buscar a representação social, em retomar o processo de reorganização da sociedade e demonstrar o papel fundamental que tais colegiados podem desempenhar no processo de gestão participativa.
A análise de algumas propostas e experiências já em curso no país, busca aprimorar esses mesmos processos e apresentar àqueles que ainda estão iniciando, modelo ou provavelmente modelos que mais se aproximem do "espírito da lei das águas" brasileira, considerando evidentemente as diferenças regionais, sejam de caráter político, social e/ou econômico, tão marcantes em nosso país. É inteligente aprender com as experiências de outros, mas é também prudente reproduzir somente o que já foi experimentado com sucesso e que seja, obviamente passível de ser incorporado por outras regiões com uma boa margem de segurança de resultados concretos.
O velho argumento autoritarista de que a sociedade não quer participar, ou de que não está mobilizada ou ainda que não está capacitada, não tem mais espaço na sociedade brasileira atual. É dever de todos aqueles conscientes da importância da participação social nas instâncias de decisão, realizar todos os esforços nesse sentido. É como ir buscar o aluno dos morros, da zona rural, da floresta, para levá-lo à escola, montado no burro, no barco ou no veículo da Fundef. É difícil, trabalhoso, árduo, mas vale a pena. O MEC há muito aprendeu essa lição, é preciso que os outros órgãos da administração sigam o exemplo.
*Airton Bodstein de Barros, é Doutor em Química Ambiental pela Universidade de Rennes na França, Professor de Química Ambiental da Universidade Federal Fluminense, Coordenador Geral do Projeto Managé – Programa de Desenvolvimento Regional da Bacia do rio Itabapoana e membro da Câmara Técnica de Assuntos Institucionais do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
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