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Articulações contra a intolerância

Autor original: Flavia Mattar

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A África do Sul reunirá representantes do terceiro setor e do governo em uma conferência mundial, que ocorrerá entre 31 de agosto e 7 de setembro de 2001, para debater temas como o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e outras formas de intolerância. Antes do encontro, estão sendo realizadas reuniões em diversas localidades do mundo para que se comece a delinear que temas deverão ser priorizados na hora do debate. Uma dessas reuniões acontecerá em Santiago do Chile, entre 3 e 6 de dezembro deste ano. Os interessados em se credenciar devem responder a um questionário e enviá-lo para Sandra Aragon-Parriaux, do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas. Mais informações sobre a importância da conferência podem ser lidas a seguir, na entrevista com Márcio Alexandre Gualberto, assistente da Fase.

Como estão os preparativos para a Conferência Mundial sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Racial?


Além da reunião que ocorrerá no Chile, haverá a PrepCon (Pré-Conferência) das Américas. Do Canadá para baixo, todos os países das Américas estarão presentes a esta reunião. Também ocorrerão Prepcons na África, Ásia e na Europa. Com relação ao credenciamento, existem duas formas: na primeira delas, as organizações que já são credenciadas no Ecosoc (Comitê Econômico e Social da ONU) estão automaticamente credenciadas para a reunião, devendo, apenas, apresentar os nomes dos seus representantes. Estas instituições têm status consultivo e, por isso, podem participar das reuniões e até mesmo intervir junto aos representantes dos governos. Já as instituições que não são credenciadas, precisam fazê-lo. Há, de fato, interesse da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que é a responsável pela conferência, em que haja uma certa flexibilização nesse credenciamento. Mesmo assim, as instituições precisam apresentar documentação à ONU que, por sua vez, consulta formalmente os governos dos países de origem das instituições. Caso haja posição contrária dos governos, esse parecer é enviado à instituição que pleiteia o credenciamento, para que ela possa rebater os senões. Feito isto, a Comissão decide pelo credenciamento ou não da instituição.


Qual a importância da participação das ongs na conferência?


A participação das ongs nas conferencias da ONU, de um modo geral, tem sido fundamental. Isto porque são as entidades que trazem um elemento diferenciador para estas discussões, uma vez que acompanham de forma mais próxima o cotidiano das populações. Tanto na Eco92, quanto em Beijing, na Conferência das Mulheres, foi a atuação das ongs que possibilitou que muitos aspectos que possivelmente ficariam apenas na formalidade, fossem encarados de uma maneira mais objetiva pelos representantes dos governos.


Quais são os assuntos mais importantes, na sua opinião, que merecem ser abordados na conferência? Que temas o senhor ressaltaria como mais sendo mais urgentes?


Sem sombra de dúvida o aspecto econômico é o que de mais forte deverá estar surgindo na conferência. Outros assuntos importantes são a questão da imigração e os direitos econômicos, sociais e culturais. Veja bem, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos recomendou aos organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que produzam um estudo sobre o impacto econômico do racismo no mundo. Alguns países da Europa hoje vivem o paradoxo de necessitar a vinda dos imigrantes, visto que suas taxas de natalidade estão cada vez mais baixas. Mas, mesmo assim, a xenofobia é hoje algo latente em vários destes países.


Outra questão que precisa ser debatida é o combate ao racismo pela via eletrônica - que tem hoje um boom extraordinário - e o respeito e o acesso das minorias, tais como ciganos, os dalits (intocáveis) da Índia, os indígenas das Américas, os judeus, homossexuais e negros da Diáspora, aos bens e serviços de seus respectivos países. O estudo produzido pela Fase sobre o Índice de Desenvolvimento Humano da população negra brasileira mostra o quanto há de desigualdade entre negros e brancos no Brasil. Com isso perdem os negros, mas perde, sobretudo a sociedade brasileira, no momento em que não permite que 45% de sua população tenha acesso a melhor renda, melhor escolaridade e desenvolvimento.


A conferência tem como principal objetivo debater a questão da etnia? O que há de urgente neste debate, ou seja, por que esse debate é tão importante?


Na minha opinião, o eixo central desta conferência é, na verdade, a discussão sobre o racismo e a discriminação, seja ela de sexo, "raça", e/ou opção sexual. Não é uma discussão simplesmente de conceitos, mas de se encontrar formas efetivas de dar a essas populações o tratamento respeitoso que merecem. Veja o caso da África, onde existe a esmagadora maioria de negros. Há ali questões étnicas fortíssimas. Mesmo na África do Sul você tem problemas entre os vários grupos étnicos. Em Rwanda houve aquela guerra horrorosa entre tutsis e hutus.


O senhor teria números de casos de racismo denunciados no Brasil? O senhor considera o povo brasileiro racista?


É aquela velha historia: no Brasil o racismo é um ente etéreo que circula pelo ar. Tanto pesquisa da Folha de São Paulo, se não me engano de 96, quanto pesquisa do Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (Ceap), do ano passado, mostram que a grande maioria das pessoas dizem que não são racistas, mas que existe o racismo no Brasil. Números que comprovem isto? Há uma série. Nosso estudo do IDH, como já citei acima, bem como estudo do Inspir de São Paulo, realizado no ano passado, que demonstra o alto grau de desigualdade entre negros e brancos no mercado de trabalho. O que salta os olhos é que tanto o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quanto o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), têm esses dados e, à medida em que a conferência se aproxima, começam a soltá-los na imprensa mas, mesmo assim, não temos visto, de forma efetiva, ações governamentais no sentido reverter este quadro.


Qual seria a forma mais comum de intolerância no Brasil?


A questão da homossexualidade é um problema da mais alta gravidade. Os movimentos que lidam com esta temática estão, constantemente, denunciando casos de assassinato de gays e lésbicas pelo simples fato de serem gays e lésbicas. Vejam o recrudescimento dos carecas de São Paulo, promovendo atentados à bomba contra defensores dos direitos humanos sob a alegação de "limpar a sociedade destes defensores da escória", ou seja, negros, gays, nordestinos. E, só para provocar nossa sociedade que não se diz racista, mesmo admitindo a existência do racismo: vale lembrar que em qualquer momento de conflito o racismo se manifesta. Por exemplo, em caso de briga com um porteiro as pessoas se referem ao "paraíba"; com um negro: "negro safado", e por ai vai.


O racismo e a intolerância no Brasil seriam muito diferente dos praticados em outras nações?


Creio que haja diferenças no tocante às formas de manifestação. Nos EUA e na África do Sul isto era tão explicito que havia áreas reservadas para negros e brancos. No Brasil não se chegou a tanto, mas há algumas décadas a capoeira e as práticas do candomblé e da umbanda eram proibidas por lei. O tal do racismo cordial brasileiro acaba sendo uma praga, pois ele camufla a discriminação contra grupos étnicos de uma forma tão bem acabada que até se constrói a idéia de uma democracia racial. Entretanto, os indicadores sociais e uma rápida olhada no topo da pirâmide social e em sua base mostrarão que nunca estivemos nem sequer perto de uma verdadeira democracia racial. Na verdade, para aquele que sofre a prática do racismo, não importa se a manifestação é mais aberta ou mais sutil, sofre-se de qualquer maneira e sofre-se muito.


Os senhores esperam a participação de quantas ongs neste encontro no Chile?


Não faço a menor idéia. Até mesmo porque não sei informar, de forma ampla, como as organizações ligadas aos movimentos indígenas, negros, gays e etc., estão se articulando para esta reunião do Chile. Entretanto, vale frisar, que mais importante que a reunião da África do Sul é esta do Chile. Porque é aqui que começarão a ser delineados os posicionamentos dos governos de nossa região na Conferência Mundial. Assim, creio ser fundamental que haja, não só um número grande de organizações presentes no Chile, mas que estas organizações sejam extremamente qualificadas para o debate.


Provavelmente haverá um disparate muito grande entre as propostas das ongs e as do governo. O senhor acha que o governo trata a questão de discriminação racial com a devida atenção e qual o peso das ongs neste debate?


Vamos para o Chile, o governo e as ongs, com a função de desempenhar cada um o seu papel. Logicamente, o papel do governo é dizer que reconhece a problemática racial no Brasil, e de fato faz isso formalmente, e apontar ações empreendidas no sentido de minorar estes problemas. Já as ongs irão atuar no sentido de mostrar o quanto são - e de fato o são - tímidas as ações do governo nesta área. Mais importante é que os governos e as ongs dialoguem e abram este diálogo para a sociedade como um todo. As ongs e os governos são, em última análise, reflexo da sociedade em seu conjunto e, sendo assim, tanto para as ongs quanto para o governo o que deve ser fundamental é mostrar para a sociedade que ela precisa agir no sentido de enfrentar a discriminação racial e o racismo. Se conseguirmos isso já estaremos dando um grande passo em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. Se não for desta vez, deveremos continuar tentando sempre, pois é este o papel a que nos propomos como defensores dos direitos humanos.

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