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Rafaelas

 Há uma semana, Rafaela, três anos, foi morta em casa, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.  Era espancada e maltratada com frequência pela mãe, uma jovem de 22 anos, e pelo padrasto.Por Eleonora Ramos*  Vizinhos denunciaram por três vezes os maus-tratos, o que é raro acontecer. Dois conselhos tutelares registraram o caso, onde a menina e seus algozes foram atendidos pelo menos três vezes no ultimo mês. Rafaela também esteve num posto de saúde, levada pelo padrasto como se tivesse caí­do da cama, versão sustentada pela mãe e confirmada, repetidamente, por Rafaela. Eram tão evidentes as marcas da violência, que o médico imediatamente denunciou o caso, o que também nem sempre acontece.Mas, contra todas as evidências, os conselheiros tutelares acreditaram na versão da mãe, - queda da cama - o que revela inexperiência nesse tipo de atendimento, já que se trata de uma alegação comum entre pais agressores - assim como é frequente as ví­timas  confirmarem as versões apresentadas e, quando maiores,  até verbalizam a própria culpa, defendendo os pais. Rafaela se mostrava dócil e afetuosa com a mãe, motivo alegado pela conselheira tutelar para tê-la mantido ao lado de seus assassinos. Até um delegado chegou a ser acionado. Mas, como diz a indignada nota pública divulgada pelo Forum da Criança e do Adolescente do MS: "todos possivelmente olharam e não viram Rafaela, a mãe e o padrasto. Rafaela era uma criança ou um caso, um processo, um prontuário?".O sofrimento de Rafaela acabou no domingo, dia 28. Ela morreu com lesões no crânio e outras fraturas, no rosto os mesmos hematomas com que foi vista por tantos agentes de proteção nos dias anteriores. Duas visitas do conselho tutelar à famí­lia foram marcadas e desmarcadas por não haver carro disponí­vel. A última, agendada para o dia 1, não aconteceu. Rafaela foi assassinada na véspera.A mãe e o padrasto ficarão presos até o julgamento. Suspeita-se que a mãe seja viciada em crack.Pergunta-se o Fórum DCA, perguntamos todos: quem matou Rafaela?É inacreditável a ineficiência da rede de proteção, o quanto esse sistema se revela desconectado, débil, isolado. Não é a primeira vez que conselhos tutelares, dos quais  não podemos mais prescindir, aparecem como omissos ou coniventes em episódios de  de violência fatal, de erro fatal, que os tornam cúmplices da morte ou sofrimento extremo de uma criança.Nessa hora, é preciso lembrar que outras rafaelas não estão mortas, mas crescem em meio à tortura e opressão. Meninos e meninas humilhados e ofendidos, pequenos mártires, como Rafaela, como a baiana Raquel, como centenas, milhares, que a sociedade e seus instrumentos são incapazes de enxergar e proteger, porque a mesma sociedade ainda aceita o primeiro tapa, a primeira chinelada, acreditando que assim se educa crianças. Mas não sabe explicar quando e porque essa "prova de amor" se transforma em crueldade, revelando distúrbios e personalidades patológicas em homens e mulheres que também são pais, mães, padrastos, avós e guardiãos de crianças. À palmadinha dos primeiros anos seguem-se surras, murros, agressões. Algumas não resistem, outras sobrevivem, mutiladas, infelizes. Vão à escola, vêem televisão, até ganham presente no dia das crianças, mas por dentro, também estão mortas.*Eleonora Ramos é jornalista e coordenadora do Projeto ProtegerSalvador/Bahia

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