Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Artigos de opinião
Muito se diz sobre o futuro da tecnologia e a suas possibilidades de interação com o ser humano. O livro A vida digital (1), de Nicholas Negroponte , é um dos principais expoentes, nos anos 90, da facção de autores que prevê apenas o previsível. A maior parte dessas publicações insiste em apresentar dados estatísticos sobre o aumento do número de usuários da Internet no mundo, a quantidade de computadores vendidos por segundo ou o valor das ações da Microsoft ou da Amazon Books.
Após a reunião de alguns números, a próxima etapa é a de elaborar interpretações "próprias", que na verdade não passam de uma simples constatação daquilo que nós já estamos fartos de ouvir: o futuro do ser humano estará intrínseco ao da máquina.
Elementos técnicos são, em seguida, fornecidos ao leitor, as possibilidades de aumento na velocidade da taxa de transferência de arquivos via Internet, a substituição dos fios de cobre pela fibra ótica no transporte de informações, a largura de banda etc..
Todos sabemos que a evolução tecnológica é uma constante nesse fim/começo de século, fator que ocorre de maneira extremamente rápida, mas será que isso seria motivo para certos deslumbramentos ou apologias à máquina? E as discussões sobre o desenvolvimento do ser humano e da sociedade democrática num futuro digital, onde estão? É claro que existem autores que tratam do tema com intensidade, mas ultimamente parece que eles estão perdendo fôlego para livros praticamente técnicos.
O epílogo do livro de Negroponte tem como título "Uma era de otimismo" e nele o autor coloca palavras deslumbradas de um otimismo eufórico com as últimas descobertas e possibilidades de avanços no emprego da tecnologia como extensão da vida do homem. Contudo, será que uma visão mais aprofundada das conseqüências sociais que estes "avanços" podem ocasionar não seria tão ou mais importante que a simples constatação de uma realidade inevitável? Certamente os problemas técnicos são muito mais fáceis de serem discutidos e resolvidos do que os sociais, e é nessa linha que muitos dos autores atuais profetizam suas idéias, na maioria das vezes banais ou mesmo oportunistas.
A política cibernética
Há, hoje, a necessidade de apoio às publicações que se preocupem menos em fornecer dados técnicos mas que enfatizem as discussões sociais sobre a cultura da máquina e a "cibernetização" global. Além disso, o conteúdo humano das máquinas - os sites da Internet, por exemplo - merecem uma maior preocupação. Tecnologia avançada sem conteúdo criativo é subaproveitada e alienante.
Políticas de incentivo cultural no meio digital são fundamentais para que entremos no século XXI sabendo utilizar construtivamente os recursos técnicos que nos estão disponíveis, caso contrário a alta tecnologia será apenas mais um instrumento de dominação usado pelas classes poderosas.
Sabemos que a grande maioria dos computadores do mundo está nas mãos de uma pequena porcentagem da população que habita primordialmente as partes desenvolvidas economicamente do globo. No Terceiro Mundo (conceito que também merece grande discussão) o computador é um luxo para poucos se compararmos o número de usuários em relação ao de esfomeados e miseráveis. E esse aspecto quase nunca é discutido na literatura sobre o tema. Ao mesmo tempo, investimentos massivos vêm sendo feitos para que se diminuam os nanosegundos dos downloads. O uso da Internet só será realmente democrático se as diferenças sociais forem ao menos diminuídas. Com isso, estratégias culturais com apoio governamental poderiam ser criadas para que se perpetue a democracia no mundo digital.
Podemos imaginar os resultados de uma política coerente de preparação para o convívio geral com a máquina. Após a democratização do conhecimento levada a todas as parcelas da população (talvez uma utopia se as coisas continuarem como estão), os conteúdos passarão a ser criativos e completamente livres. Cada um terá a própria capacidade de discernir o que lhe serve ou não. Assim, tal poder de discernimento poderá ser utilizado para a criação e apreciação de conteúdos em todos os tipos de sistemas comunicacionais com melhor resultado ao aproveitamento humano. A Internet ainda é, com raras exceções, de uso exclusivo das classes altas, constatação inegável, e estas já esboçam o seu uso como instrumento de dominação. Ao mesmo tempo o grande contingente de pobres, que muitas vezes não tem o que comer mas possue um aparelho de TV, aliena-se com a programação televisiva preparada pela mesma classe dominante que consulta o extrato bancário online. A televisão aberta torna-se cada vez mais um media medíocre, descaradamente voltado à promover a manutenção das desigualdades sociais, enquanto os que podem pagam pela TV por assinatura, que no final das contas gera o mesmo resultado. Obviamente a televisão não é o único meio utilizado para esse fim. Inúmeros são os instrumentos políticos e econômicos de se dominar uma população manipulável pela falta de capacidade de discernimento ideológico.
Muitos autores afirmam que a televisão como a conhecemos hoje terá o seu fim nos próximos dez anos. De fato, essa tecnologia se desenvolveu muito menos em relação à informática, comparando-se o tempo de vida de ambas. Certamente a síntese dos meios de comunicação num único suporte eletrônico informatizado e digital ocorrerá em breve. Nessa área deve entrar desde já a pesquisa tecnológica para que se possam fabricar equipamentos a custos baixíssimos, acessíveis à sociedade como um todo. Caso contrário, a televisão de hoje perdurará por, no mínimo mais cinqüenta anos. E ainda sobreviverão os velhos aparelhos da década de 70, ainda o objeto principal de muitas residências de países subdesenvolvidos (quando os possuem).
A transição total para uma vida digital no próximo século depende de medidas asseguradas no presente. Sem a capacidade de discernimento desenvolvida através de políticas de incentivo à cultura em todos os media (televisão, rádio, cinema, teatro, música etc.) o homem do século XXI, acostumado ao lixo que lhe é oferecido, transferirá seus hábitos para o computador, ocorrendo apenas a digitalização da mediocridade.
O desenvolvimento da criatividade humana é interrompido precocemente principalmente nos países subdesenvolvidos. A maioria da população desses locais dedica-se integralmente a resolver o problema primordial do auto-sustento, ficando a cultura e o lazer em segundo plano. Essas pessoas passam a maior parte do dia em trabalhos mal remunerados e estafantes (quando os têm), sobrando umas poucas horas semanais para o lazer mais barato e prático do século XX, a televisão, que repetimos: é o media medíocre do final do milênio. Como essas pessoas estarão preparadas para a era digital ? E quando ? Sem políticas educacionais adequadas e sem empregos, esse enorme contingente populacional está nas mãos das altas corporações políticas e empresariais. São elas quem decidirão como e quando a sociedade será realmente "digitalizada", e se isso ocorrer dessa maneira, infelizmente a democratização da comunicação nunca será alcançada, por maior que seja o acesso "oferecido" ao computador e à rede.
Há pelo menos dois possíveis caminhos para a conexão global ao mundo da comunicação mediada por computadores: o incentivo às idéias e ao uso criativo da máquina ou a sua continuidade como forma de controle e dominação. Se, por exemplo, a TV for para a Internet nos moldes em que está hoje, teremos uma regressão e não um desenvolvimento social.
Negroponte afirma que com o desenvolvimento tecnológico a vida digital será muito agradável e promissora. Através dos computadores tornar-se-á possível a verdadeira globalização e com eles o trabalho cansativo será substituído por outro, muito mais intelectual. Contudo, a má distribuição dos resultados obtidos desse desenvolvimento provavelmente continuará a existir. Os exorbitantes gastos com desenvolvimento tecnológico são hoje superiores aos destinados ao problema da mão-de-obra excedente. Ao mesmo tempo que isso cria novos tipos de trabalho, gera desempregados numa escala muito superior.
A harmonização humana não será resultado da globalização, do fim dos nacionalismos ou do uso de uma língua (inglês) ou dinheiro (dólar) em comum. O que isso gera, como sabemos, é a descaracterização das culturas regionais, deixadas de lado em troca de produtos importados que poderiam fazer bem melhor. O computador e a Internet não podem fazer com que a mediocridade das culturas de massa impostas hoje se transformem na cultura digital de amanhã.
Afinal de contas, há um caminho?
Devemos deixar de lado os deslumbramentos e pensar a Internet como um instrumento de perpetuação da democracia e valorização do desenvolvimento criativo humano. Os problemas técnicos, como o número de "Bibliotecas do Congresso" que poderá ser transportado por segundo, os especialistas na área tirarão de letra. Há a necessidade de se concentrar as pesquisas teóricas no uso adequado dos conteúdos e suas conseqüências sociais. Isso é tão ou mais importante que a tecnologia.
Lançar tecnologia para um público que não tenha uma preparação mínima de como obter resultados culturalmente produtivos desse mecanismo, é como colocar um aparelho de TV na casinha do cachorro - talvez seja esse o público a quem a programação televisiva de dirige hoje.
Deve ser criada uma ampla política de preparação cultural para que o ser humano entre na nova vida digital de maneira construtiva. Isso só será possível concomitantemente às políticas de incentivo ao emprego, à educação e ao fim da condição miserável em que vive a maioria da população mundial. A Internet só será realmente democrática quando todos, sem exceção, tivermos direito ao seu acesso e para que isso aconteça inúmeros problemas sociais e econômicos precisam ser resolvidos. Enquanto isso não acontecer, estaremos muito longe de entrarmos na "vida digital".
(1) Negroponte, Nicholas. A vida digital. São Paulo, Companhia das Letras, 1997
*Marcelo Afonso é articulista da Revista Espiral.
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