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Os conteúdos no contexto da Sociedade da Informação no Brasil: considerações sobre o Livro Verde Brasileiro

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

Alexander Patêz Galvão*


1- Introdução


O termo “conteúdos”, com freqüência e alguma generalização, tem sido utilizado em inúmeras publicações para a apreensão dos processos e transformações trazidas pela internet e suas tecnologias correlatas. De órgãos governamentais e supra-nacionais à empresas de consultorias de reconhecida competência, o termo tornou-se também presente nos periódicos de circulação mais generalizada, para as quais o “conteúdo” vem adquirindo status de “rei” – devido à importância que assume nas redes multimídia interativas em construção.


Mas o que são conteúdos? Que setores ou indústrias da atividade econômica os produzem? Em que são diferentes de produtos culturais? Quais as relações entre os conteúdos e a identidade cultural?


O texto que segue traz algumas contribuições no sentido de melhor clarificar a questão dos “conteúdos”, mostrando como esse termo vem sendo entendido nos trabalhos sobre a Sociedade da Informação no Brasil em outros países. Em especial, procura estabelecer as relações existentes entre os conteúdos e a indústria da cultura. Nesse contexto, a questão da identidade cultural é também abordada necessitando, no entanto, de maiores desenvolvimentos.


2 - Os Conteúdos no Livro Verde da Sociedade da Informação no Brasil: uma primeira aproximação


O quinto capítulo do Livro Verde da Sociedade da Informação no Brasil, intitulado “Conteúdos e Identidade Cultural”, patrocinado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, define “conteúdos” da seguinte forma: “Os produtos e serviços de informação – dados, textos, imagens, sons, software etc. – são identificados na rede com o nome genérico de conteúdos. Conteúdo é tudo o que é operado na rede.”


Essa definição apresenta-se por demais genérica. Sob a insígnia de “produtos e serviços” estão, por exemplo, os softwares, que não têm sido vistos como “conteúdos” em outras instâncias (como poderá ser constatado posteriormente ao longo desse texto). Além disso, ao alargar demais a abrangência do que seriam “conteúdos”, acaba por não conseguir estabelecer minimamente uma conceituação e delimitação para o termo – no Livro Verde, os conteúdos são apresentados genericamente como “o meio e o fim da gestão da informação, do conhecimento e do aprendizado na sociedade da informação.”


O fato de não delimitar minimamente o objeto em questão (os conteúdos) traz conseqüências que são sentidas ao longo do capítulo 5 do Livro Verde. A questão fica em aberto e, em privilégio de um ponto de vista demasiado acadêmico, acaba, paradoxalmente, por tomar um rumo bastante limitador. Ao limitar o entendimento dos conteúdos – em essência, informação – aos meandros e interfaces existentes entre a “tríade” informação-aprendizado-conhecimento o documento trata apenas de uma das facetas pelas quais os conteúdos podem ser entendidos.


Ainda que não esteja explícito, é possível verificar, a partir da leitura do capítulo, que os autores do texto entendem os “conteúdos” enquanto insumos produtivos ou cognitivos. Dão aos “conteúdos” o mesmo sentido de “informação” e fazem isso a partir de uma visão específica de “informação”. Por essa ótica de análise, compartilhada, de modo geral, pelas ciências humanas e sociais, a informação é vista uma matéria-prima (de natureza cognitiva ou produtiva) capaz de ligar a informação propriamente dita, através dos meios de aprendizado, à construção do conhecimento (necessário à vida e à produção).


De fato, os conteúdos, enquanto informação, prestam-se à fluidificação da produção e à construção do saber. Assim, nada haveria de errado com essa visão não fosse ela tão limitadora, em especial em suas articulações com a cultura e com a identidade cultural, outros objetos de estudo do capítulo. No capítulo 5 do Livro Verde brasileiro a análise que se faz dos “conteúdos” tem como conseqüência propostas de ação que contemplam predominantemente o ideal de aparelhar devidamente a sociedade e a economia para que possam fazer o melhor uso possível desses insumos. Assim, o diagnóstico apresentado da sociedade da informação “desejável” desdobra-se sobretudo na necessidade de disponibilizar a todos o acesso universal aos conteúdos. No documento, as propostas de ação listadas referem-se, de modo geral, ao incentivo a variados serviços de informação (em especial do tipo científico e tecnológico), assim como a disponibilização destes para a sociedade.


Todos os diagnósticos e deliberações dispostas no capítulo 5 do Livro Verde são pertinentes e meritórias, mas apenas tangenciam o potencial que os “conteúdos” podem representar para a sociedade e para a economia do país. Ignora o potencial dos conteúdos enquanto produtos (produtos da informação) e não contempla em sua devida dimensão, a possibilidade de fazer da sociedade brasileira uma sociedade produtora de conteúdos.


No capítulo 5, a definição de “conteúdos” é vaga e os desdobramentos seguintes, presentes no texto, não fazem qualquer ligação entre “conteúdos” e a indústria da cultura. Uma abordagem sobre a identidade cultural – assunto que também dá nome ao capítulo – não pode prescindir de procurar as pontes que ligam a os “conteúdos” à indústria da cultura.


3- Os conteúdos além do Livro Verde brasileiro


Antes de constituírem-se em insumos produtivos ou cognitivos, os conteúdos tem sido entendidos, acima de tudo, como produtos (1); produtos que são transacionados nos mercados, absorvem parte crescente da mão-de-obra mundial e passam a constituir valor substancial no total da produção econômica planetária. É esse entendimento da informação (conteúdos) enquanto produto que deu as coordenadas para os primeiros trabalhos teóricos que trouxeram a tona os termos “Sociedade da Informação” e “Economia da Informação”, desde a década de 1970 até nossos dias, desde Daniel Bell e Marc Porat até Manuel Castells e outros.(2)


Aqui, é importante ressaltar que a acepção que o termo “conteúdos” vem adquirindo no âmbito do desenvolvimento de uma economia e de uma sociedade da informação está desprovida de referências à semântica que possa lhe ser inerente – no contexto das primeiras construções teóricas sobre a Sociedade e a Economia da Informação, o teor semântico dos produtos e serviços de informação não constitui a questão em foco. As referências à semântica – apesar de pertinentes e suscitarem preocupações acerca da intenção semântica da transferência, sobre os significados e usos da informação para o receptor, etc. – apresentam-se com maior predominância em se tratando das teorizações acerca da construção de uma sociedade ou economia do conhecimento ou do aprendizado.(3)


Dada a vaga conceituação do termo “conteúdos” no Livro Verde brasileiro, é importante saber como os “conteúdos” têm sido entendidos em outros países do mundo.


Sobre os “conteúdos”, outra definição proveniente de trabalho feito por encomenda para o governo português em 1997 abarca o termo de forma bastante diversa. O “Livro Verde para a Sociedade da Informação” de Portugal reflete, em larga medida, a visão européia(4) sobre a sociedade e a economia da informação em processo de consolidação e define da seguinte maneira os conteúdos:


“No contexto emergente da sociedade da informação, o termo 'conteúdo' parece englobar todo e qualquer segmento de informação propriamente dito, isto é, tudo aquilo que fica quando excluímos os sistemas de hardware e software que permitem a sua consulta e exploração.”


A definição do Livro Verde português se dá pela exclusão do que não poderia ser entendido enquanto “conteúdos”. Subtrai-se, do contexto das redes digitais interativas, as infraestruturas, os softwares e os equipamentos terminais e obtêm-se, assim, os “conteúdos”. Fica claro que o que permanece é a informação propriamente dita, (sob variadas formas: áudio, texto, vídeo, multimídia). “A aquisição, armazenamento, processamento, valorização, transmissão, distribuição e disseminação de informação conducente à criação de conhecimento e à satisfação das necessidades dos cidadãos e das empresas” vem a desempenhar “um papel central na actividade económica, na criação de riqueza, na definição da qualidade de vida dos cidadãos e das suas práticas culturais”. (grifos meus)


Fugindo a certa visão que confina a informação à função de insumo cognitivo, o documento dos portugueses reconhece que a informação - e, portanto, “os conteúdos” - está em referência explícita não somente à criação do conhecimento ou a geração do aprendizado, mas também em relação à satisfação das mais variadas necessidades dos cidadãos e das empresas. A definição empregada consegue aliar sociedade, economia (isto é, geração de empregos e rendas para os cidadãos), cultura e tecnologia (digital) em torno de uma nova ordem socioeconômica e cultural.


A semelhança encontrada nos documentos do Brasil e de Portugal, no que tange ao entendimento que se faz sobre os “conteúdos”, reside no fato de reconhecerem que os conteúdos são, em essência, informação – produtos ou serviços de informação. Contudo, os trabalhos não se estendem com maior afinco sobre a questão dos conteúdos. Não delimitam ou classificam exatamente o que seriam e o que não seriam “conteúdos”.


Além disso, os documentos brasileiro e português deixam dúvidas se os conteúdos são exclusivamente de natureza digital ou se existiriam apenas no ambiente da internet. Mesmo que esta seja uma questão que tenda a ter importância cada vez menor – dado que todo produto ou serviço de informação tende a assumir a forma digital em alguma fase do seu processo de produção ou distribuição (passível de distribuição pelas redes eletrônicas) – ainda permanece pertinente. Derivam de definição dessa ordem desdobramentos nas políticas de apoio a setores importantes como a indústria audiovisual, o editorial e o fonográfico, que ainda não aderiram em todas as fases dos respectivos processos de produção(5) à tecnologia digital e que ainda não encontram na internet canais de escoamentos seguros aos seus produtos. Políticas de apoio a esses setores são traçadas no Livro Verde português (e também de outros países), mas não são abarcadas pelo documento brasileiro.


4- Os produtores dos "conteúdos"


Organismos governamentais de vários países têm feito esforços, dada a importância do tema, para melhor delimitar o que seriam os “conteúdos”. Nesses esforços, o termo “indústria dos conteúdos” (content industries), com freqüência e alguma generalização, tem sido bastante utilizado. Definir os conteúdos a partir daqueles que efetivamente os produzem parece ter sido a saída encontrada para a questão.


Naturalmente, o interesse na classificação é maior para os órgãos de contabilidade governamentais, interessados que são na precisão contábil e estatística. No âmbito da Comunidade Européia, o Grupo de Voolburg, voltado para os problemas de mensuração do setor serviços, tem tentado encontrar limites mais acurados para classificar os provedores de conteúdos dentro dos agregados estatísticos já existentes – empreitada contrária à realizada pelos Estados Unidos, Canadá e México, que modificaram toda a estrutura contábil para contemplar, entre outros, um setor informacional à contabilidade estatística nesses respectivos países.(6) Mesmo assim, em artigo de contribuição às discussões do Grupo de Voolburg, J. M. Nivlet (1998) chama a atenção para a impropriedade de se usar os temos “indústria” e “conteúdos” conjuntamente e classifica os conteúdos como “serviços de comunicação”.


Estatísticas à parte, as diversas publicações acerca do tema, produzidas por organismos e entidades nacionais e supra-nacionais, reconhecem de modo geral que, sob o termo “indústria de conteúdos”, estão englobados (Industry Canadá, 1997):
- a indústria do audiovisual, como por exemplo, filmes e vídeos, televisão e radiodifusão, televisão paga por cabos ou outros meios e a indústria fonográfica;
- as novas mídias, como por exemplo as bases de dados online, os conteúdos multimídia, os conteúdos produzidos e distribuídos por meio de videotexto, fax e CD, videogames, etc.)
- a indústria editorial (print publishing industries) que engloba a produção de jornais, livros, revistas, etc.


Essa definição é fruto de uma compilação feita pelo Ministério da Indústria do Canadá em trabalho intitulado Selected Content Industries: Statistical Review, 1996/97. É importante notar que nessa definição, não se faz qualquer menção ao valor semântico dos produtos que são produzidos pelas “indústrias dos conteúdos”. Esse setor produtivo produz material audiovisual, editorial e fonográfico em variadas formas de mídias (incluindo as novas mídias digitais e interativas). Os produtos da “indústria dos conteúdos” servem às instituições e às empresas e, em última instância, servem aos indivíduos. Os conteúdos podem servir de informação, de educação e/ou de entretenimento, de veículo para a cultura, mas podem servir de meios escusos para fins que não sejam tão nobres. Não se coloca, no caso, o valor ético ou moral dos conteúdos (Industry Canadá, 1997).


O Ministério da Indústria canadense exclui dessa definição de indústria de conteúdos os produtores de softwares, as telecomunicações, produtores de equipamentos eletrônicos e as atividades manufatureiras (exclusivamente industriais) responsáveis pela produção do invólucro material que dá suporte aos conteúdos como, por exemplo, as atividades de impressão de livros, CDs, videocassetes, etc. Também não vincula explicitamente a indústria dos conteúdos às redes digitais apesar de reconhecer o meio digital como o terreno por excelência para a cada vez mais prolífica indústria dos conteúdos.


A importância econômica dos “conteúdos” é ressaltada por documento elaborado pelo Ministério dos Correios e das Telecomunicações do Japão. Nesse documento, a definição de “conteúdos” e bastante próxima daquela elaborada pelos portugueses e canadenses. Num macro-mercado que os japoneses denominaram de “info-comunicações”, segmentado entre produção de conteúdos (possíveis de serem distribuídos via redes), plataformas técnicas (eletrônicos de consumo, softwares, equipamentos terminais, etc.) e distribuição (a infra-estrutura das redes), o Ministério das Telecomunicações e dos Correios do Japão (1998) realizou projeções que mostram o crescimento do valor da produção dos conteúdos que cresceria, frente aos outros segmentos, de um percentual de 33,5%, em 1995, para um total de 55,1%, em 2010. A pesquisa dos japoneses já evidenciava: o verdadeiro valor das redes está nos conteúdos.


Todos os trabalhos e documentos aqui mencionados reconhecem que os conteúdos são a essência do funcionamento das redes de informação de grande capacidade de tráfego (superestradas da informação) que estão em construção em todo o mundo. Sem os conteúdos, toda a infraestrutura das redes torna-se oca, vazia de sentido (social e econômico).


5- Conteúdos e Cultura


No trabalho do Ministério da Indústria do Canadá fica claro que uma parcela considerável do que poderia ser denominado de “conteúdos” está intrinsecamente ligada à indústria cultural tendo, portanto, uma dinâmica específica relacionada à inserção do trabalho considerado artístico nos processos de produção. No entanto, nem toda forma de manifestação artística pode ser classificada como “conteúdos”.
Nesse sentido, os canadenses, reconhecendo as semelhanças entre a indústria dos conteúdos e a indústria da cultura são bastante explícitos ao ressaltar que na indústria dos conteúdos, não estão presentes:
- as instituições de preservação da herança e do patrimônio cultural (museus e bibliotecas, por exemplo)
- as artes performáticas (teatro e concertos de músicas)
- as artes visuais, o artesanato e o design.(7)


Ao que parece, o documento canadense indica que a diferença entre os “conteúdos” e a indústria da cultura reside na questão da reprodutibilidade do produto. Os produtos que incorporam em seu processo produtivo um trabalho artístico e que não são reprodutíveis ou possuem reprodutividade limitada situam-se no campo da indústria cultural unicamente. Como definido anteriormente, as artes cênicas e performáticas, os museus e as obras originais dos grandes pintores estão no âmbito da indústria cultural, mas não pertencem ao reino dos chamados conteúdos.


Ao contrário, os produtos que incorporam um trabalho artístico nos seus respectivos processos produtivos e que se beneficiam de possibilidades amplas de reprodutibilidade enquadram-se na categoria “conteúdos”. Situam-se aí, por exemplo, os trabalhos literários impressos e os produtos audiovisuais e fonográficos, ligados à indústria cultural.


Decorre dessa definição que os museus, as pinacotecas e seus acervos não poderiam ser considerados “conteúdos”. No entanto, os serviços de informações sobre essas instituições e mesmo seus acervos digitalizados – portanto, de reprodutibilidade facilitada – são considerados “conteúdos”.


O capítulo 5 do Livro Verde brasileiro coloca no mesmo barco serviços de informações sobre o mercado de ações, bases de dados eletrônicas, revistas especializadas de ciência e tecnologia, bibliotecas públicas e softwares(!), registros gravados de manifestações culturais e formas de manifestações artísticas produzidas por comunidades. E não reconhece relação entre a os conteúdos e a indústria da cultura, um dos setores mais dinâmicos da economia mundial (8). Talvez aí se encontre a sua maior falha. Por conseqüência, não deixa margem à qualquer relação entre a indústria da cultura e a identidade cultural.


Ao contrário do Livro Verde brasileiro, as relações entre o mercado, a indústria da cultura e do entretenimento e os produtores de conteúdos são bastante evidenciadas em documentos semelhantes de outros países. É possível encontrar evidências nesse sentido em trabalhos encomendados pelo próprio Ministério da Ciência e Tecnologia para servirem de insumos ao Livro Verde brasileiro, tais como os artigos “Sociedade da Informação: políticas em desenvolvimento no exterior”, feito para o por Rosa Maria Vicari e “Socinfo no Mundo”, escrito por Carlos J. P. Lucena (9).


Entendendo que parte dos conteúdos tem relação estreita com a indústria da cultural e do entretenimento, países como a Austrália, Finlândia, Inglaterra e Portugal têm, em suas propostas para a Sociedade da Informação, proposições de políticas concretas de apoio ao rádio, televisão, cinema e novas mídias (conteúdo multimídia), na maior parte das vezes com aportes financeiros diretos da parte do governo nesses setores.


Na Austrália, por exemplo, no âmbito do programa governamental da Sociedade da Informação, o poder público tem aportado recursos para o rádio, tv, filmes e conteúdo multimídia (“Conteúdos australianos para a Austrália e para o mundo”). No Canadá, os conteúdos originados no país contribuem com $ 500 milhões (US$ 1 = $ 1,44) para a balança de pagamentos do país e o setor público tem destinado $ 500 milhões para a área de multimídia, $ 1 milhão para a produção de programas e publicações artísticas, $ 400 milhões para a indústria audiovisual (TV aberta, por assinatura e filmes).


Na Inglaterra, reconhece-se que o país tem a oportunidade de exercer papel importante no mercado mundial de entretenimento, serviços de informação e educação. Documento do Departamento de Indústria e Comércio de 1996 da Inglaterra reconhece que os setores de música a televisão são fortes, o que confere ao país uma posição privilegiada para atuar no mercado internacional de “conteúdos”(10).


O Livro Verde da Sociedade de Informação em Portugal, por exemplo, “reconhece que o mercado e a indústria da informação representam duas das componentes fundamentais da Sociedade da Informação portuguesa. É a partir destas que se produz riqueza, emprego e se reforça a independência econômica e a identidade cultural” (p. 11).


Dessa forma, é preciso reconhecer que muitos dos “conteúdos”, tais como os produtos audiovisuais ou fonográficos, possuem forte componente cultural que lhes confere identidade e valor. O atributo cultural, que empresta valor (econômico, social, simbólico) a determinados tipos de conteúdos, está intrinsecamente relacionado a contextos sociais e espaço-temporais específicos e não pode ser transferido com facilidade de uma delimitação geográfica para outra.


A identidade cultural, específica ao local, ao manifestar-se através dos conteúdos (de entretenimento, de informação) liberta-se de sua delimitação espacial. Portanto, os conteúdos podem servir de vetores para a diversidade das identidades culturais. E isso se torna cada vez mais realidade com a crescente capilaridade das redes digitais e interativas que faz com que o potencial de difusão dos “conteúdos” (e das identidades culturais aí “embaladas”) venha a ampliar-se exponencialmente.


6- Conclusão


Como pode ser evidenciado no texto acima, o capítulo 5 do Livro Verde da Sociedade da Informação no Brasil, intitulado “Conteúdos e Identidade Cultural”, guarda algumas falhas que se desdobram em proposições de políticas públicas que deixam a desejar.


Em especial, a conceituação que faz dos conteúdos é bastante vaga, deixando espaço para interpretações estreitas acerca do objeto em questão. Além disso, não faz qualquer referência a indústria da cultura, deixando de estabelecer as ligações possíveis e pertinentes entre essa instância, a produção de conteúdos e a identidade cultural.


Face às várias interpretações acerca dos conteúdos encontradas em diversos documentos acerca da Sociedade da Informação no Brasil e em outros países, segue abaixo contribuição no sentido de abrir novamente a discussão sobre o objeto em questão.


Proposta:


Conteúdos são segmentos de informação que incorporam trabalho intelectual ou artístico nos seus processos de produção e que se beneficiam de possibilidades amplas de reprodução.


A importância cada vez maior dos conteúdos na sociedade e na economia contemporâneas deriva da tecnologia digital e das redes interativas. A digitalização facilita a reprodução e a crescente capilaridade das redes interativas potencializa a difusão dos conteúdos. Assim, os conteúdos têm se apresentado ao mercado como produtos e serviços de alto valor agregado e com potencial de comercialização crescente. Tal fato tem implicado, na nova divisão internacional do trabalho que se configura, questões e conflitos crescentes acerca dos copyrights e da proteção local a esse tipo de produção.


Os conteúdos podem servir de insumo à produção e à construção do conhecimento, de veículo de entretenimento e de manifestações culturais e artísticas. Devido à diversidade de produtos e serviços passíveis de serem entendidos enquanto conteúdos, faz-se necessário classificá-los em duas categorias distintas: (i) produtos e serviços de informação e (ii) conteúdos culturais: (11)


Serviços e produtos de informação: são segmentos de informação, dispostos em qualquer tipo de mídia (impressa, online, em meios magnéticos, óticos, etc.), que incorporam trabalho intelectual no processo de produção. O trabalho intelectual é o principal atributo de valor desse tipo de conteúdo produzido com fins a se tornarem, na maior parte das vezes, insumos produtivos ou cognitivos. Nesse tipo de conteúdo estão incluídos as bases de dados, os serviços direcionados a fornecer informações segmentadas ou personalizadas (sobre hobbies, cotações nas bolsas de valores, notícias recentes, etc.), revistas, jornais e diversos produtos audiovisuais e todo tipo de informação direcionada à educação.


Conteúdos culturais: são segmentos de informação, dispostos em qualquer tipo de mídia (impressa, online, em meios magnéticos, óticos, etc.), que incorporam trabalho artístico no processo produtivo. O trabalho considerado como artístico é um dos principais balizadores do valor desse tipo de conteúdo produzido na maior parte das vezes para se prestar ao entretenimento e que guarda estreita relação com a cultura (e a identidade cultural) dos locais onde foram produzidos. São conteúdos culturais a maior parte da produção audiovisual, fonográfica e parte considerável da produção editorial.



(1) A questão aqui é, antes de tudo, de ótica pela qual se desdobram as análises sobre os produtos da informação. Esses produtos, os conteúdos, podem ter a nobre missão de produzir conhecimento no indivíduo e no seu mundo, mas nada garante que seja sempre assim. Como muitas outras mercadorias que podem ter usos variados e nem sempre desejáveis, há que se considerar que são conteúdos, por exemplo, as informações de cunho fascista e o material de pedofilia que pode ser encontrado na internet e, nesse caso, não se pode afirmar de modo algum que a informação, (ou os conteúdos) tenha a nobre missão de induzir o aprendizado e promover o conhecimento.


(2) Sobre as origens do termo “Economia da Informação”, vide Malin (1994) e sobre “Sociedade da Informação” vide Kumar (1997) e Castells (1999).


(3) Sobre Economia do Conhecimento e do Aprendizado, vide Foray e Lundvall (1996) e sobre capitalismo cognitivo, vide Paulré (2000).


(4) É importante lembrar que desde a entrada de Portugal na Comunidade Européia, o país vem seguindo as recomendações e diretrizes apontadas no âmbito da Comunidade.


(5) Produção, acondicionamento e distribuição, das quais derivam outros processos produtivos tais como o armazenamento e o processamento característicos dos produtos de informação.


(6) Sobre as transformações impetradas pelo US Census Bureau nas classificações setorias da atividade econômica norte-americana, vide Galvão (1999).


(7) Ainda que os museus, as artes performáticas e visuais, per se, não sejam enquadrados enquanto “conteúdos”, parece evidente que os serviços de informações sobre essas atividades culturais sejam “conteúdos”.


(8) O mercado da indústria do audiovisual, por exemplo, é estimado em cerca de 200 bilhões de dólares somente nos países desenvolvidos (Idate, 2000) e o déficit da balança de pagamentos do Brasil em produtos audiovisuais é estimado em 600 milhões de dólares anuais.


(9) Disponíveis a partir de <www.socinfo.org.br/documentos/doc_prog.htm>


(10) A Inglaterra exporta anualmente cerca de US$ 1,9 bilhão em música e US$ 1,8 bilhão em produtos de televisão e cinema. Dados de 1999 do BBC News disponíveis em :<http://news.bbc.co.uk/hi/english/education/newsid_998000/998845.stm>


(11) Na classificação dos conteúdos, como segue, optou-se por não inclui os softwares, como tem sido feito na maior parte dos trabalhos sobre a Sociedade da Informação em vários países.


Referências Bibliográficas


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GALVÃO, A. A informação como commodity: mensurando o setor de informações em uma nova economia. Brasília: IBICT, v.28, n. 1, jan./abri. 1999.


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INDUSTRY CANADA & CRTC (Canadian
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MALIN, Ana B. (1994). Economia e Política de Informação - Novas Visões da História. In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo: Fundação SEADE, v. 8, n. 4, out-dez. 1994.


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VICARI, Rosa. Sociedade da Informação: políticas em desenvolvimento no exterior. Disponível a partir de: <www.socinfo.org.br/documentos/doc_prog.htm>



*Alexander Patêz Galvão é mestre em Economia pelo IE-UFRJ, pesquisador associado ao Laboratório Território e Comunicação (LABTeC/CFCH/UFRJ) e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT-ECO/UFRJ.
alexg@altavista.net

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