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A Dignidade Humana na Sociedade do Conhecimento: Privacidade e Liberdade de Expressão

Autor original: Flavia Mattar

Seção original:

Renato Janine Ribeiro1


1. Sobre a ética e em especial sobre os códigos de ética


Por que se fala, tanto, hoje em códigos de ética?


Como professor de ética, parto da idéia de que há uma quase oposição entre ética e lei (ou entre a ética e os códigos). Essa oposição remonta à tragédia Antigona, de Sófocles. Nela se defrontam a lei dos homens, que estabelece proibições e punições, e um imperativo mais elevado, o qual exige, em certos casos, afrontar a própria lei. No caso de Antigona, esse imperativo maior é também uma lei, a dos deuses. Hoje, porém, numa sociedade laicizada, esse imperativo é propriamente ético, no sentido de estar na consciência individual. Ao contrário do mundo grego, ou das sociedades de base religiosa, como por exemplo a cristã, não dispomos mais de uma lei superior e segura (a divina) que mede e julga as leis positivas do nosso mundo imediato (as leis dos homens). Precisamos então avaliar as leis e decisões humanas em função de algo que é falível - nossa consciência - mas, que é tudo de que dispomos. 0 plano ético, por isso mesmo, é um plano de risco. Não há qualquer garantia de que um juízo ético seja verdadeiro ou acertado.


0 código de ética, porém, não é a ética. Quando se fala em código de ética, entende-se por ele uma lei light. Esse tipo de código impõe obrigações e gera sanções. Seus traços são assim mais os da lei positiva que os da consciência moral. A primeira pergunta, então é: por que usar o termo código de ética, ou mesmo., ética, quando as questões com que nos deparamos são da ordem da legalidade? E os princípios fundamentais do mundo da lei são: ela deve ser bastante clara, para reduzir ao mínimo as divergências ou obscuridades (o que é exatamente o oposto da ética, na qual navegamos num universo de risco e de dúvidas - raros são os casos importantes em que não pairam dúvidas quanto ao que é correto, e ao que é incorreto); e o essencial é obedecer a ela, pouco importando a razão ou motivo por que a cumprimos. Uma lei obscura é péssima, porque engendra insegurança, lá onde deveria produzir paz e segurança. A insistência em saber se respeitamos a norma legal por concordarmos com ela, ou por temermos o castigo, ou por qualquer outra razão, é rigorosamente inútil, e apenas cria problemas, ali onde, na prática, tudo parecia estar resolvido pelo respeito à lei.


Na ética, ao contrário, o fundamental é o porquê. Tem pouco valor ético o ato praticado por antevisão das conseqüências, sejam estas boas ou más, sejam prêmios ou punições. Já no universo da lei, o que conta é eu cumpri-la. Ninguém vai me interrogar se paguei os impostos e respeitei o sinal vermelho por medo ou amor à lei. Basta que eu a tenha observado.


Sugira que são estas as raízes pelas quais falamos em código ética, quando seria mais correto, em tese, usar o termo lei:


I) códigos de ética são editados por instituições que não são o Estado. Continua havendo, no direito, uma crença no monopólio do Estado nacional como instância legisladora. Leis são promulgadas por quem tem a soberania nacional. Ora, códigos de ética são legislações baixadas por instituições ou instâncias diferentes. Podem ser, por exemplo, corporações que se auto-regulam: o caso dos médicos, dos advogados, dos pesquisadores. Pedem também ser órgãos supra-nacionais, como seria o caso presente, em que a Unesco estaria editando normas. Hoje não se pode excluir que ongs adotem normas cujo respeito se imponha às pessoas, mesmo sem que elas controlem território, polícia, enfim, nenhum dos atributos tradicionais do Estado. Em suma, quer o legislador seja infra-nacional ou supra-nacional, ele não é o soberano kelseniano, que exerce seu poder sobre um território determinado e tem a seu dispor um aparelho coercitivo que, pelo menos em princípio, equaciona a questão da obediência a seus decretos.


Daí que tais códigos ("de ética") tenham um caráter mais fraco do que o da legislação estatal. Suas punições, por exemplo, podem ser advertências, privadas ou públicas, detendo portanto maior sentido moral do que prático, e de todo modo não irão além da cassação do exercício da profissão (isso, no caso das corporações profissionais). Não privam ninguém da liberdade física ou da propriedade de seus bens.


II) Por isso mesmo, os códigos de ética precisam justificar muito bem suas proibições. Estas não podem ser editadas apenas porque o legislador assim quis. Ora, ao longo dos últimos quinhentos anos, a idéia-chave da soberania estatal enquanto monopolizadora da atividade legislativa se centrava nessa idéia: para fazer a lei basta o belprazer do rei, o La Reine le veult (fórmula de sanção ainda hoje utilizada na Grã Bretanha), a vontade do príncipe, o quod principi placuit habet vigorem legis da lei romana redescoberta na Idade Média findante. Mesmo com as democracias, a principal idéia de legislação foi - e é - que o povo decide o que quer, sem necessitar explicar por que. 0 sufrágio secreto, conquista democrática como poucas, significa que as decisões não precisam ser motivadas: quem vota na cabina índevassável está dispensado de explicar por que escolheu tal ou qual candidato ou, no caso de um plebiscito, tal ou qual lado da questão. 0 Estado soberano não justifica suas decisões: ele as impõe.


Mas, no caso dos códigos de ética, que são editados por instâncias que não possuem soberania, tudo o que eles determinam precisa ser muito bem explicado e justificado. E tem que sê-lo, em termos de bem comum, bem social, em suma, de valores éticos. Não basta baixar a lei. É preciso explicar tudo e mostrar muito bem por que a lei está sendo editada. E a obediência a ela dependerá muito mais da aceitação de seu público-alvo do que no caso da lei estatal. E isso pela simples razão de que não há, aqui, polícia nem cadeia, não há confisco de bens nem, talvez, multa ou sanção pecuniária direta. A coerção é fraca.


III) Daí, terceiro ponto, que os códigos de ética exijam uma retórica intensa, talvez diferente da antiga, mas de qualquer forma uma retórica. A modernidade se constituiu contra a retórica. Descartes, Hobbes, os grandes filósofos do século XVII atacavam a retórica e, contra ela, defendiam a ciência - ou ações que considerassem mais efetivas. Mas as últimas décadas revalorizaram, muito, a retórica, que voltou ao primeiro plano das ciências ou, pelo menos, das humanidades. 0 que aqui afirmo é que, se os códigos de ética explicam delicada e detalhadamente suas medidas, é porque precisam que o público endosse suas normas e disposições. Tem que estar muito claro por que tal ou qual medida está sendo adotada.


IV) Daqui procede um problema. Insisto em que códigos de ética exigem muito mais a adesão do público do que leis estatais - e isso justamente porque eles não têm, sendo editados por instâncias não soberanas, como punir. A lei estatal lida com queir não obedece castigando-o. Mas o que pode fazer a instância não estatal? Eis o problema a que chegamos: adotamos um código para coibir certas condutas - e no entanto não ternos muito como puni-las. 0 que fazer, então?


Penso que a resposta é a seguinte: todo código de ética requer forte adesão do público alvo -uma adesão quase (mas não necessariamente) unânime. Tal adesão precisa ser maior do que aquela que pedimos para uma lei estatal, que pode passar por maioria simples. Ao ser claramente justificado, o código de ética requer, explicitamente, a adesão de seu público. Por isso, sua linguagem é diferente da das leis. Estas são expressas em termos técnicos, e sua linguagem é seca (o código Napoleão, de que tanto gostava Stendhal, é um modelo de tal precisão e secura). Mas os códigos de ética necessitam persuadir, e para tanto precisarn explicar o porquê de cada medida, e invocar seguidas vezes seu espírito, mais que sua letra.


A redação deles é portanto mais dirigida ao público e menos precisa. Seguramente, é menos seca. E isso porque precisam da adesão do público não só para que sejam aceitos, mas também para que sejam observados. Dependerão menos de um policiamento que de uma disciplina generalizada. Em outras palavras, a observância de um código de ética não pode depender de organismos de controle, embora estes precisem existir (é o elemento de lei que têm esses códigos), mas deve estar confiada, sobretudo, ao próprio público-alvo. É este que deve estar imbuído da convicção de que as normas são boas, e de que aqueles que as infringem devem ser punidos. E, claro, punidos por uma espécie de exclusão social, do meio em que antes circulavam.


É por isso que a principal punição aplicada pelos conselhos profissionais é a exclusão, e que o principal castigo contra hackers etc é a proibição de usar a Internet. Na interface com a lei estatal é óbvio que poderão vir castigos adicionais - e o código de ética será levado em conta pelo tribunal criminal ou cível ao infligir penas privativas de liberdade ou compensações financeiras - mas o código, ele próprio, fica por aí.


Mais que isso: se o código de ética apela tão claramente à consciência das pessoas, e sua eficácia depende de seu poder de persuasão, é porque ele não pretende propriamente punir. Punir é só um by product. 0 seu intuito é mudar atitudes. É gerar uma comunidade, um consenso, um sensus communis, de que tais atitudes são corretas e outras devem ser evitadas. Todo código de ética quer -explicitamente - melhorar a sociedade, mais que isso, criar uma sociedade nova e melhor.


É também por isso que ele é dissidente em face da lei estatal, Esta procura manter o que existe. Pode melhorá-lo, mas aprimorando sua sintonia fina, não modificando o seu eixo. Ora, o que os códigos de ética procuram é bem mais que isso. Nascem geralmente de um descontentamento com o que está errado - muito errado, como a ligação entre as profissões médica ou jurídica e a polícia política, ou algo errado, como a dependência destas profissões em face do mercado, ou ainda o que pode ser feito de errado, por exemplo, na Internet. Esse descontentamento se expressa na proposta de uma auto-regulação mais ambiciosa do que qualquer lei estatal, porque se coloca na perspectiva de utopia.


Daqui, pois, nossas primeiras recomendações são:


1. que qualquer proposta de lnfo-éfica leve em conta a dificuldade de formulá-la em leis, que ainda são emanações do Estado soberano em termos kelsenianos, ao passo que códigos de ética provêm de instâncias não estatais e por isso mesmo detêm pouco poder coercitivo. Contudo, esta característica da ética converge com um dado essencial da Internet, que é o fraco poder dos Estados sobre ela. Há portanto duas razões, uma pela ética e outra pela internet para que a lnfo-ética não se formule em termos usuais de lei;


2. que por isso mesmo qualquer documento deve motivar muito bem toda proibição ou recomendação que faça, levando em conta que deverá, mais que tudo, persuadir seu público e gerar uma opinião pública em escala mundial à qual deverá caber, mais do que a qualquer poder estatal, o cumprimento das normas e recomendações de caráter ético.


2. Dignidade humana e liberdade.


Na sociedade em que vivemos, e que desde o término da II Guerra Mundial com a vitória sobre o nazi-fascismo se propõe a ser democrática - o que, por sinal, foi uma das grandes razões para se fundar a Unesco -, a ética pública deve ser entendida como consistindo essencialmente nas declarações de direitos humanos2 . Se existe algo como uma ética pública, distinta da ética do sujeito privado, essa ética público reside nos princípios que foram sendo enunciados nos últimos trezentos anos em sucessivas declarações de direitos do homem, inglesa, norte-americana, francesa e finalmente, em 1948, universal. Os termos liberdade, igualdade, fraternidade, que compuseram a divisa da Revolução que possivelmente foi a que mais se globalizou na história da humanidade (lembre-se a esse respeito o romance de Alejo Carpentier, E1 siglo de Ias luces), mais até do que a inglesa de 1688 e a americana de 1776, formam uma espécie de síntese dessa ética de alcance público.


A dignidade humana significa, assim, numa enumeração mínima e apenas indicativa (para facilidade de exposição, retomo os três termos de 1789);


1) respeitar em cada um a liberdade de escolher seus próprios caminhos. Liberdade quer dizer não estar sujeito à vontade alheia3. Embora a vontade de cada pessoa designe seu ser autônomo, a aplicação dessa vontade a outra pessoa constitui uma arbitrariedade, um capricho, que em princípio não é aceitável. Só tem sentido quando o outro está sob uma tutela que o protege, seja temporariamente, como a criança, seja permanentemente, como o louco ou o caduco.


2) afirmar a igualdade de todos os seres humanos, ou seja, que ninguém tem mais direitos que outrem. Direitos superiores; não são diretos, mas privilégios. É evidente que certos direitos podem servir apenas a alguns - aqueles, por exemplo, que se referem à gravidez não beneficiam varões -mas o princípio é o de que nenhuma diferença de fato entre os seres humanos deve desdobrar-se em diferença de direitos. Ao contrário, o direito deve procurar compensar e reduzir as diferenças de fato entre as pessoas.
3) proclamar a fraternidade como elo de ligação principal entre as pessoas. Se a liberdade e a igualdade como foram antes enunciadas podem ser vistas da perspectiva da pessoa só, que busca a melhor posição no contato com o outro, a fraternidade - ou solidariedade - constitui um termo de ligação, um cimento leve que permite criar vínculos, como o Eros; de que fala o Freud da última fase.


Este breve enunciado implica que a cultura, a educação e a ciência, para ficarmos nas principais obras espirituais do ser humano, tenham, primeiro, um papel compensatório em relação às desigualdades, injustiças e infelicidades por que passam nossos semelhantes. Devem levar em conta esses pontos negativos da vida humana. Mas também resulta disso que o papel da ciência, da cultura e da educação deva ir além da mera compensação. Compensar significa que se deixa como está o mundo injusto, desigual e infeliz em que vivemos, e tudo o que se procura é contrabalançar seus excessos.


Porém, o que as obras espirituais do homem podem é mais que isso: é a proposta de pôr fim à injustiça, à desigualdade e à infelicidade. Ciência, cultura, educação podem assim ser bem mais do que um resíduo, aquele ao qual os governantes dedicam os últimos ministérios na hora de firmar seus acordos políticos; podem constituir, justamente, o eixo de uma nova cidadania. É bem provável que o século XXI promova essa mudança de prioridades, que tem cada vez mais adeptos: que nas próximas décadas os ministérios importantes se tornem os que lidam com a cultura, a ciência, o esporte, a tecnologia, a ecologia4. Ora, isso significa sair da perspectiva das políticas compensatórias e adotar políticas positivas, de implementação, de promoção: não minorar os males, mas promover o que seja considerado o bem, comum ou pessoal.


Examinemos esta mudança bastante séria de prioridades e de paradigmas. Se a "sociedade do conhecimento" vier a enfatizar a ciência, a cultura, a educação, as artes, isso resultará, primeiro, na redução do peso que têm os fatores econômicos de per si (por exemplo, o capital acumulado, muitas vezes herdado, pode tornar-se menos importante do que novas idéias, descobertas científicas, aplicações tecnológicas5), segundo, na constituição de uma cidadania centrada no conhecimento e na aptidão que esse tem de promover mudanças na vida das pessoas. A dignidade humana assim se entenderá, não como simples defesa em face do que torna a vida indigna (a miséria, a injustiça, a incompreensão), mas como algo positivo, que se promove, que se expande cada vez mais.


0 papel do conhecimento na vida das pessoas em geral é com freqüência minimizado. Sabemos do impacto que novas tecnologias, apuradas nas ciências exatas e biológicas, rapidamente exercem sobre o cotidiano de todos nós. Hoje, em cerca de seis a doze meses, uma nova tecnologia, digamos, da cola do sapato vai do laboratório em que foi descoberta até os pés de milhões de indivíduos. Não temos, porém, um equivalente igualmente visível no caso da cultura, das ciências humanas, das artes. Ou elas chegam mais lentamente à multidão - pelo menos no caso do trabalho de ponta - ou mal percebemos o modo como agem, subterraneamente, no inconsciente das pessoas. Mas o fato é que todos os meios de disponibilizar mais informações a grandes quantidades de pessoas têm o potencial de aumentar a liberdade destas últimas. Um exemplo esclarecerá.


A Irlanda, uma vez independente, tornou-se um sólido baluarte estatal do catolicismo romano. Isso implicou que não se podia falar em homossexualismo. Um dos maiores heróis do novo país, Sir Roger Casement, enforcado pelos britânicos em 1916, - e que por sinal havia sido cônsul da Grã Bretanha na cidade brasileira de Santos, a pouca distância da ilha onde agora estamos - jamais teve reconhecida, pelo governo de Dublin, sua condição de homossexual 6. Mas o que realmente importa é que algumas gerações de meninos irlandeses não dispunham de referencial para entender o que se passava com eles quando nada sentiam, de físico ou afetivo, em relação às meninas. Ou melhor, o único referencial a seu alcance os levava a decifrar o desinteresse pelo sexo oposto como sendo o sinal da vocação divina, do dom para o sacerdócio. Esse lamentável qüiproquó fez que muitos homossexuais, dos quais - parodiando o célebre ditado - poderíamos dizer que viviam o amour qui ne sait pas dire son nom, ingressassem na Igreja Católica. Como parte deles mais tarde abusou de crianças em escolas ou conventos, o resultado disso foi, num primeiro tempo, que a hierarquia ocultasse essas histórias do público, e, num segundo momento, que vários padres fossem condenados à prisão por corrupção de menores. Esse é uma das piores decorrências da falta de informação. Soubessem eles decifrar o que sentiam, dar nome a suas pulsões, o mundo teria tido menos infelicidade.


0 filme polonês Madre Joana dos Anjos é outro bom exemplo. Quando o padre, no final da história, mata dois inocentes, explica: "Agi assim para que Madre Joana possa ser santa". Subentende que, chamando para si todo o pecado, todo o mal, depura dele a madre do convento. Mas - conforme comentou em entrevista o diretor do filme - todo o drama vem de nem o padre exorcista, nem a madre possessa, conseguirem entender qual é o sentimento que lhes turva a alma, que lhes domina os sentidos, e que é simplesmente o amor intenso, enorme, que sentem um pelo outro.


0 que essas duas ilustrações mostram é que o acesso a uma vasta informação constitui, hoje, um dos principais requisitos da liberdade. E que esse acesso, ou seja, a constituição de uma cultura, permite superar a distinção usual entre informações e formação. Dados quantitativos são importantes, mas o são sobretudo na medida em que possam fornecer elementos adicionais para que exerça a liberdade. E esta, ou seja, o encontro do próprio caminho, requer - numa sociedade complexa como a atual - escolhas que se dão no plano pessoal, amoroso, sexual, profissional, religioso, filosófico, político. E é altamente provável que tais escolhas não sejam harmônicas entre si, mas, ao contrário, até mesmo contraditórias - o que as torna sempre passíveis de alterações, de compromissos, de desequilíbrios.


Finalmente, esta possível contradição entre escolhas que cada um de nós pessoalmente firma -o contraste, digamos, entre a simpatia política e o gosto artístico, entre a orientação sexual e a fé religiosa, entre a opção profissional e as convicções pessoais - não deve ser considerada algo negativo. Ela é resultado direto e, ouso dizer, quase inevitável de vivermos numa sociedade complexa. Em grupos sociais mais coesos, aqueles que a sociologia chama de tradicionais, pode-se esperar - embora nem sempre com êxito - uma coerência maior entre os diversos aspectos da vida de uma pessoa. Contudo, em nosso mundo, essa coerência praticamente se tomou impossível. 0 que quero sustentar é que não só tal coerência não é mais possível, como ela não é desejável: ela é a condição de nossa liberdade.


É importante tomarmos consciência deste fato, porque a busca da coerência constitui, muitas vezes, fator adicional de infelicidade. Como desempenhamos diversos papéis em nossa vida social, seria extremamente difícil serem, todos eles, consistentes uns com os outros. Mas procurar evitar que se contradigam é quase impossível. A melhor opção parece assim ser a seguinte: tornar produtivo o conflito entre eles. Em vez de anelarmos pela redução do conflito entre uns e outros a um grau zero, em vez de ansiarmos pela harmonia deles, trata-se de fazer que cada papel, em sua positividade, incite os demais a se reverem. Assim, não se trata por exemplo de tomar o valor da fé religiosa, que no mundo ocidental cada vez mais se tornou parte da vida privada, deixando o espaço público que ele governou ao longo de séculos, e fazê-lo voltar a dominar nossa concepção do mundo social e político. Tal projeto, que é o dos fundamentalismos, parte do erro que consiste em buscar uma consistência a todo preço7. Em vez disso, é mais produtivo utilizar-se o valor moral que a religião inscreve na vida privada, com a finalidade de iluminar a atuação social e política da pessoa, mas sem converter a dimensão pública de sua vida em mero efeito de suas convicções religiosas; e inversamente, trazer as questões descobertas em sua vida pública para o campo ínfimo de suas vivências, contestando-as e modificando-as. A liberdade como hoje a conhecemos está aí. É justamente esse hiato entre os diversos papéis que cumprimos que exige, de cada um de nós, escolhas, dosagens, modos de viver a contradição e o conflito. Podemos até nos mostrar tradicionais em cada um dos papéis que assumimos. Mas, na conciliação empírica que teremos de promover entre eles, seremos forçados, cada um de nós, a escolhas que ninguém pode tomar em nosso nome, cujos custos e responsabilidade ninguém mais assumirá, e para as quais cada vez há menos mapas e roteiros previamente traçados.


As recomendações desta parte são:


1 . que sempre se considere que os princípios éticos dos quais hoje se pode inferir qualquer código de ética são, essencialmente, as declarações dos direitos humanos;


2. que na idéia de sociedade do conhecimento - e na da Internet como veículo de conhecimento - se inclua sempre, como aquilo que as legitima socialmente, a idéia de uma Internet da cidadania;


3. que se deixe clara a importância do acesso de todos ao máximo possível de informações, como condição para a melhor escolha de seu rumo pessoal.


3. Liberdade de expressão: Internet democrática ou Internet dos negócios.


Uma discussão extremamente importante, mas que não é priorizada na mídia, diz respeito ao perfil que se deseja para a Internet. É inegável que um elemento relevante no seu perfil inicial diz respeito a ela como espaço de interlocução entre pesquisas de ponta: é seu lado acadêmico, universitário. Contudo, desde alguns anos, o que mais se enfatiza tem sido suas possibilidades comerciais e econômicas. Desejo frisar, aqui, que embora estas sejam muito importantes e não devam ser de forma alguma deixadas de lado, não devem tampouco obscurecer o papel da Internet como um fator decisivo de democratização do acesso ao conhecimento, ao binômio informações-formação.


Uma palavra a mais sobre informações e formação. Como a própria unidade de mensuração na Informáfica remete a Informações, tem-se deixado de lado a distinção formulada na Alemanha durante a Ilustração, entre o que é informar e o que é formar (bilden, mais se utilizando o substantivo correspondente, que é Bildung). A informação, do ponto de vista da pessoa, conta sobretudo se concorrer para sua formação. A novidade de nosso tempo é que a Bildung (que também podemos traduzir como educação, no sentido mais pleno e forte do termo) se torna permanente. 0 defeito mala de nosso tempo é que se substitui, muitas vezes, a formação pelo treinamento - isto é, em vez da formação para a vida, que envolve todos os aspectos da personalidade, tenta-se adestrar o indivíduo para uma tarefa determinada. Projetos que em si podem ter aspectos positivos, como o de qualidade total, o de ensino à distância, o de treinamento no trabalho, acabam padecendo de sua redução a um pequeno número de abilities8 ou capacitações - ou seja, o que se procura com eles não é mais do que treinar a pessoa para aquilo em que ela não é pessoa. Pessoa significa um sujeito moral. Formar uma pessoa significa, por isso mesmo, envolver todos os seus aspectos. 0 caráter permanente da educação, hoje, significará então levar a pessoa, a cada novo patamar de estudo, a rever a si própria. Um sem número de recomeços se toma possível. Nada, em princípio, impede alguém de iniciar uma nova vida na terceira idade 9. Mas isso exige entender que estamos além do treinamento, e que nossa pergunta é: como entender a vida como contínua formação. Do ponto de vista do educador, isso implica: como o aprendizado de tarefas deve dar espaço para a revisão dos valores, como as mudanças na vida profissional devem estar ligadas a um questionamento da vida pessoal (e vice-versa).


É neste sentido que a liberdade de expressão, via Internet se mostra decisiva. 0 veiculo eletrônico permite - em tese ~ que qualquer um monte, por exemplo, um jornal diário a custo muitíssimo mais baixo do que se necessitasse de prédios, de papel, de tinta, de caminhões de distribuição, de ligações telefônicas de longa distância. Evidentemente não basta montar um site; é preciso que ele seja divulgado, conectado, conhecido, 0 poder na Internet depende em larga medida dos links de que se dispõe 10. A força do viés econômico na Internet está justamente em ser o mais apto a gerar os links.


Dando um exemplo: é relativamente fácil, no plano dos negócios, montar uma pequena empresa fornecedora na Internet e rivalizar com grandes empresas tradicionais. Requer-se menos capital e mais inventividade. Porém, que garantia tem o consumidor de que um negociante pouco conhecido cumprirá o prometido? È mais seguro para mim, como usuário, comprar de uma empresa conhecida do que de outra sobre a qual nada ou pouco sei. A grande empresa tem os links, tanto virtuais (as banners em outros sites) quanto, digamos, reais (vínculos com outras empresas, maior segurança bancária e creditícia). E, se isso vale no conflito entre empresas, isto é, no interior da Internet dos negócios, que dizer do confronto entre esta Ultima e a Internet do conhecimento e da cidadania? Há forte possibilidade de que fiquem desconhecidos, e sejam pouco visitados, sites com informações decisivas para o exercício da cidadania.


Por isso, a liberdade de expressão é fundamental, mas não é óbvio que ela se dê por si só. No Brasil, por exemplo, notamos que alguns sites importantes - por exemplo, o Defenda-se estão hospedados em provedores comerciais. Neste caso, o site pertence ao Jornal da Tarde, de São Pauto, e possui informações sobre leis, defesa do consumidor, direitos humanos etc. Há sites ou páginas Web com importantes dados sobre qualidade das escolas, organizações não governamentais voltadas ao apoio à criança, desempenho de eleitos. Contudo, tudo isso está na periferia do sistema.


0 que fazer, nesta direção? Diante dos avanços de Internet dos negócios, parece que a Internet do conhecimento ou da cidadania tem ocupado um papel menor. 0 capital assim avança, em aparente detrimento da cidadania e da formação. Contudo, desejar que o Estado, mesmo como representante legítimo dos cidadãos que elegem seus governantes em pleitos livres e limpos, garanta um nicho maior à Internet do conhecimento e da cidadania, parece difícil. Tanto, em primeiro lugar, porque o poder de Estado está bastante próximo hoje em dia do poder do capital, quanto, em segundo lugar, porque a cidadania se exerce em larga medida contra o poder de Estado. Na verdade, a cidadania se constitui sobretudo limitando os poderes de Estado e do capital. Daí que seja duvidoso acreditar que espontaneamente os provedores, enquanto negócios, ou o Estado apoiem a cidadania.


De toda forma, proponho aqui algumas teses principais, encerrando este item:


1 . Deve ficar claro que a Internet da cidadania está voltada para a formação, a educação, entendida esta como um processo voltado para a pessoa inteira, enquanto sujeito moral, e não apenas como o adestramento do indivíduo em algumas práticas mecânicas que interessam sobretudo ao uso de seu trabalho como mercadoria;


2. Por isso mesmo se evidencia que a Internet do conhecimento, assim entendida aquela que se concentra nas áreas de atuação clássica da Unesco (educação, ciência e cultura), não se distingue essencialmente da Internet da cidadania, uma vez que o conhecimento não se reduz a informação, mas tem papel relevante na formação do ser humano;


3. Segue-se que a liberdade de expressão é fundamental, e que convém conceber meios de facilitar o acesso a ela, das duas pontas do processo:


(a) Na ponta da emissão: Constituir meios que facilitem a atores não convencionais, e comprometidos com a cidadania - órgãos de conhecimento, de atuação voluntária, de empenho social - construir seus sites e manter suas páginas web, com informações sobre direitos humanos e meios de promovê-los;


(b) Ainda nesta ponta: Não ter a ilusão de que -os atores acima definidos sejam todos concordes e coerentes em suas metas. Os direitos humanos, se devem constituir a linguagem básica da ética pública em nosso tempo, permitem, porém, discordâncias na sua aplicação. 0 importante é que os atores que se defrontam na democracia concordem com o princípio dos direitos e procurem implantá-los;


(c) Na ponta da recepção: Ampliar o acesso dos que menos desfrutam de direitos à Informação e formação via Internet, não apenas do ponto de vista material e técnico (aumentar os terminais, melhorar linhas telefônicas) mas também e sobretudo de sua capacidade de utilizar o material obtido e de interagir com a comunicação


(d) Finalmente, e decisivo: Reduzir a distância entre a emissão e a recepção, favorecendo e estimulando os receptores a interagir com os emissores e a reconfigurar os próprios sites, segundo seus anseios e interesses.


4. Destacar a importância de que haja sites com informações necessárias, primeiro, à prática e expansão da cidadania, segundo, à formação e informação mais amplas que seja possível para que cada pessoa escolha seis rumos e trajetos - o que pode ser facilitado se:


(a) instituições internacionais, nacionais e não estatais ajudarem a instalação de tais sites, fornecendo-lhes material de toda ordem, como, por exemplo, legislação nacional e supra-nacional, modelos de ações judiciais, de contratos, de textos de reclamações, bem como - numa lista apenas indicativa - o máximo possível de textos clássicos de literatura, de enciclopédias, enfim, de tudo o que possa contribuir quer para a ação cidadã de defesa contra a opressão, quer para a emancipação da pessoa em face das limitações que sofra em sua vida;


5. Ter em mente que, embora o controle ético dos excessos praticados via Internet seja importante (em especial, no tocante a propaganda nazista, racista, incitação ao crime etc.), é importantíssimo que este meio seja quase imune à censura, e portanto:


a) que o combate ao crime de expressão, na Internet, será tanto mais eficaz quanto mais depender da formação de unia opinião pública, quase podemos dizer em escala mundial, que o repudie, e não tanto da ação policial eu repressiva, que geralmente se dá em âmbito nacional e pode ser manipulada por interesses menores de tal ou qual grupo político;


b) que assim o fundamental é constituir, mediante redes de cidadania de alcance supra-nacional, esta opinião pública quase mundial;


c) que deve ficar claríssimo, para tanto, que na comunicação humana, como nas artes e na cultura, o novo não suprime o velho mas o revê e redimensiona; e por conseguinte que a melhor forma de lidar autônoma e independentemente com a nova mídia - a televisão até um tempo atrás, hoje a Internet - é ter uma freqüentarão inteligente da mídia em papel, que ainda é a mais apta a favorecer a formação do espírito critico.


4. A privacidade e seus problemas.


A privacidade nas comunicações eletrônicas é muito importante. Preservá-la é uma condição essencial, não só do ponto de vista de liberdade de expressão, de que acima tratamos, como do dos negócios, que exigem sigilo. Contudo, como muito já foi dito a este respeito, e creio que com certeza haverá consenso sobre sua necessidade, desejo aqui comentar os problemas e criticas que ela pode suscitar.


0 mais importante a comentar sobre a privacidade é que se trata de valor recente, cuja expansão se deve em especial ao intenso processo de individualização- ou individuação, se preferirem - vivido nas últimas décadas. Tal processo teve como seu centro nervoso os Estados Unidos, deles se difundindo para o resto do mundo, porém em ritmos e intensidade bastante desiguais. Na verdade, com isso o que aconteceu é que a liberdade dos modernos, assim como a definiu Benjamin Constant: em 1819, se ampliou de modo a constituir a mais forte definição de liberdade hoje disponível11.
Ora, o problema é que este modo de liberdade é um entre outros. Seu valor é inegável. Contribui para a preservação dos direitos de qualquer pessoa oprimida, contra o seu opressor. Em especial, é importante na reivindicação dos direitos da mulher. Se a mudança na condição feminina de fato constituir a mais importante revolução do século XX, como observou C. Castoriadis (uma revolução sem comitê central, sem partido, sem exércitos, disse ele), parte dela se pode expressar na idéia de que se constitui uma personalidade feminina independente da do casal, do lar, da família, do clã. Um indivíduo, e mais que isso, uma pessoa se emancipa, chamada mulher. A privacidade, no caso, vem junto com seu direito a realizar escolhas próprias, a ter personalidade jurídica distinta, a decidir no mesmo âmbito que o marido. No Brasil, por exemplo, foram vários passos que precisaram ser dados, desde a lei que conferia ao marido a chefia da família e lhe outorgava a escolha da residência do casal, até as disposições legais que repartiram entre o marido e a mulher esses poderes, exigindo, pois, o acordo de ambos.


Mas é preciso anotar as limitações desse modo de liberdade. Em primeiro lugar, ele tem um tempo e um espaço determinados, os do Ocidente moderno. Sem dúvida, ele constitui uma das grandes contribuições ocidentais ao mundo atual. Mas não está necessariamente consolidado em outros lugares, nem mesmo no Extremo Ocidente de que, por exemplo, o Brasil faz parte. Assim, é relativamente comum uma pessoa emprestar a outra seu cartão bancário, ensinando-lhe sua senha, para que esta segunda lhe preste o favor de realizar determinadas operações, como saque, retirada de extrato etc. Curiosamente, o único caso em que os caixas de banco costumam bloquear tais operações é quando a pessoa com o cartão pertence ao sexo oposto ao do seu titular, porque fica óbvio que a operação, que deveria ser rigorosamente pessoal, está sendo realizada por terceiro. Curiosamente, disse eu, porque neste caso quem está representando o titular é geralmente seu cônjuge, ou seja, a pessoa em quem ele possivelmente deposita maior confiança. Também sucede, no acesso a bancos de dados, de se passar a senha à secretária ou a algum funcionário, sempre de confiança - mas essa própria idéia, de ter confiança em alguém para tais operações, entra em choque com o rigor do conceito de privacidade.


Comecei, assim, expondo como valores de uma sociedade na qual a confiança recíproca é um fator importante podem limitar o conceito de privacidade. 0 que quis frisar é que, se a privacidade é relevante para constituir sujeitos livres, diferenciados e independentes, ela pode, contudo, chocar-se com valores igualmente importantes, os quais; convém aqui explorar. Destacarei dois - o favor e a confiança.


0 favor tem sido bastante criticado, nas análises sociais sobre o Brasil. Dizer que somos ou fomos - uma sociedade constituída em ampla medida sobre o favor é formular uma crítica severa a um processo marcado pelo patrimonialismo, pelo clientelismo, pela deferência. Teríamos, em vez de direitos a todos reconhecidos, privilégios, dos quais alguns seriam redistribuídos de cima para baixo, mas sob a forma de favores e não de direitos. Essa apropriação privada e desigual do bem comum assim o converte em moeda a manter a desigualdade e a injustiça social. Quando o miserável, ou mesmo o cidadão em geral, se dá conta de que a saúde, a educação, os serviços públicos têm seu acesso regulado como se fosse concessão ("favor') de quem está em cima, ele se acostuma a pagar tal migalha de privilégio com seu voto, sua subordinação, ou mesmo dinheiro adicional, além dos impostos que já saldou. Portanto, enquanto favor, esse valor é algo tido como bastante negativo em nosso País.


Mas, no exemplo que dei, em que alguém faz um favor a outrem sacando dinheiro para ele, não temos o favor num recorte vertical e sim horizontal. 0 favor não está sendo uma forma de hierarquizar a sociedade, mas uma de estabelecer relações afetuosas, de confiança, entre dois sujeitos. Pode haver hierarquia entre ambos, mas - no próprio exemplo citado - quem presta o favor é a secretária, ou o colega, e não o chefe (portanto, esse favor não é do mesmo tipo do menciona ' do no parágrafo acima). 0 favor assim dá um elemento mais leve, mais doce, mais humano, diríamos, a relações que de outro modo se tornariam muito frias e impessoais. E este ponto é muito importante, em especial na relação com a máquina, com o computador, com a Internet.


Daí que possamos, também, falar em confiança entre pessoas. Quando dou a alguém, mesmo que seja um funcionário do banco (o que eu não deveria fazer em hipótese alguma, mas sucede com relativa freqüência), a minha senha, é porque nele tenho confiança. Inúmeras histórias exemplares são relatadas com vistas a não se confiar em estranhos, e às vezes nem mesmo em conhecidos. Numa sociedade como a brasileira, em que se teme o rapto de crianças, desde cedo se ensina a elas que não confiem em desconhecidos. Mas esses próprios ensinamentos, ou a insistência neles, atestam que ainda é forte a tendência a confiar no outro, por princípio. Inegavelmente, esse elo com o outro, inclusive com o outro desconhecido, adoça as relações sociais.


E este é o sentido do outro termo que introduzi - confiança. Podemos - retomando uma terminologia usual na antropologia - distinguir uma confiança, ou fides, em inglês trust, que se adquire mediante o contrato e outra, para a qual a mesma palavra se emprega, que se deposita em alguém devido a posições que se compartilham na vida social, ou seja, devido ao status de ambos os envolvidos. A confiança contratada é tipicamente moderna (no sentido weberiano, isto é, do Ocidente capitalista, sem juízo de valor no adjetivo). Já a confiança de status seria mais característica de sociedades não-modernas, em que o processo de racionalização e desencantamento das relações sociais não foi levado ao mesmo termo que na modernidade capitalista. Ora, o que acima afirmei, sobre o favor hierárquico, é um dos casos em que a confiança ocorre independentemente do contrato, já pelo status ou, se quiserem, pelo contato. Portanto, se confio na minha mulher ou no caixa do banco a ponto de lhes revelar minha senha bancária, isso não decorre de uma visão moderna, distintiva do contrato, mas de elos sociais que com eles nutro, característicos de uma relação vivificada pelo contato e não por regras convencionadas e formais. É o calor, não a linguagem jurídica, é a freqüentarão, e não o código civil, que forjam essa confiança.


0 objetivo desta passagem é contrapor, à idéia usual de um direito à individuação e à vida privada, que se expressa entre outros no direito à privacidade - que na Internet significaria a proibição de que outros se intrometam nos dados e Informações que são rneus - a observação, de algum teor antropológico, de que esses valores têm data e local de nascimento, e em outras sociedades podem defrontar-se com costumes mais ancorados. E tais costumes não são necessariamente retrógrados, nem expressam um autoritarismo que urgiria combater: podem simplesmente fazer parte de um conjunto mais amplo de modos de pensar - e sentir - as relações sociais.


Dificilmente, desta parte, eu inferiria alguma recomendação precisa. E de forma alguma sugeriria que não se recomende a privacidade! Trata-se, é óbvio, de um direito quase básico a ter a própria personalidade respeitada. Mas é preciso, ao formular estas recomendações e quaisquer outras que pretendam ser universais, evitar com todo o cuidado a falácia que consiste em converter o particular em universal. Evidentemente, sabemos que um dos vetores constatados na história moderna, em especial nos últimos duzentos anos, é que valores ocidentais, como o da racionalização (séculos XVI e XVII) e da autonomia (século XVIII), foram se tornando universais - e que até a contestação ao imperialismo europeu se formulou com base em tal linguagem. Mas a lição talvez maior do final do século XX é que devemos levar em conta os outros valores, aqueles que o avanço ocidental ignorou ou, então, rotulou como protótipos do atraso. Torna-se fundamental entendê-los. A recomendação então é:


1 . que na formulação de preceitos de caráter ético se tome, sempre, o cuidado de levar em conta outras culturas; e que portanto, na definição de um direito à privacidade, se considere que esta terá sentido e peso bem diferente numa sociedade em que o adolescente tem seu quarto, televisão, telefone e computador particulares, e em outra na qual dez ou quinze pessoas dormem na mesma habitação. A diferença que convém assinalar e respeitar não é, porém, a do conforto e da miséria, a da dignidade e a da carência, mas a de formas diferentes de conceber o vínculo social, que no Ocidente é pensado sobretudo a partir do indivíduo, enquanto nas demais culturas, e até mesmo em alguma medida no Extremo Ocidente, confere maior peso aos elos sociais.



1 Professor Titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo. Doutor em Filosofia, Autor dos livros Ao leitor sem medo - Hobbes escrevendo contra o seu tempo (1984-, 2ª edição, Belo Horizonte, 1999), A etiqueta no Antigo Regime (1983; 4ª edição, São Paulo, 1999), A última razão dos reis - ensaios de filosofia e de política (São Paulo, 1993) e A sociedade contra o social - o alto custo da vida pública no Brasil (São Paulo, 2000, 2ª edição).


2 E em especial na Declaração Universal, que a Assembléia. Geral dos Naçõe Unidas promilgou em 1948.


3 Ver em particular Locke, Second dialogue of government (publicado ern 1691), cap. II.


4 Em meu livro A sociedade contra o social - o alto custo da vida pública no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 2000), lembro uma frase do romancista Antonio Callado, criticando a nomeação do embaixador Rubens Ricupero para a pasta da Fazenda, em 1994: Ricupero teria deixado um ministério importantíssimo (o do Meio Ambiente e da Amazônia), decisivo para o futuro do País e mesmo do mundo, para ocupar um posto de menor importância. Obviamente, Callado queria chocar seus leitores, convencidos que estariam do contrário. Mas com isso tocava na ferida: qual setor da administração pública tem projetos de futuro? Qual pode definir novos paradigmas?


5 Esta parece ser uma mudança de forte impacto naqueles países, de Terceiro Mundo, nos quais a herança da propriedade e do sobrenome ainda desempenha um papel fundamental na perpetuação do domínio de oligarquias, no plano político, na preservação da desigualdade social, no plano social, e num desenvolvimento econômico fraco. Nessas sociedades, até o presente, o capital herdado tem sido um fator mais forte, nas relações de poder, do que a inovação científica e tecnológica, Se esse quadro mudar, poderá ocorrer um avanço econômico, científico e social.


6 Casement teve importante papel na denúncia da opressão que o rei da Bélgica exercia sobre a colônia africana que era sua propriedade pessoal, o Congo. Um relatório que ele publicou ajudou a opinião mundial a pressionar o monarca para que respeitasse um pouco mais os africanos. Em 1916, ele foi preso por sua participação no planejamento da Revolução da Páscoa, em Dublin, e enforcado por traição alguns meses depois. Os diários em que relata suas aventuras homossexuais foram, por longo tempo, considerados pela República da Irlanda como peças difamatórias produzidas pelo governo inglês.


7 Exemplo: a hierarquia da Igreja Católica, que em certos países move campanha contra todo sexo não reprodutivo, criticando até mesmo o uso do preservativo. Resultado disso: gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis.


8 É curioso que se traduza ability muitas vezes por habilidade. Habilidade, em português, designa algo mais profundo, mais pessoal, nascido com a pessoa ou adquirido num processo de formação. Abilities, no mercado de trabalho, é simplesmente a capacitação para determinada tarefa, obtida mediante adestramento.


9 Brecht, na Velha dama indigna, depois de filmado nos anos 60 por René Allio, deu interessante exemplo de uma senhora de idade que, ao enviuvar, em pouco mais de um ano tem uma vida mais interessante e rica do que em todas as décadas anteriores.


10 Traduzindo em linguagem teórica: a Internet ilustra muito bem a proposição de que o poder não é uma substância, um bem, algo que se possui - mas está nas ligações que somos capazes de estabelecer. Se meu site tem links ou banners em páginas muito visitadas, meu poder aumenta. Se não, ele fica isolado. 0 isolamento na Internet é fatal. Ao mesmo tempo que é muito fácil gerar informação, colocá-la na rede, é difícil conseguir que ela seja lida e tenha impacto. Este, o xis da questão.


11 Definição: "o que em nossos dias um inglês, um francês, um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade [é] para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nern condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos" (Da liberdade dos antigos, comparada à dos modernos, in revista Fílosofia Política, UFRGS e UNICAMP, 1985, n. 2, p. 10). Trata-se da expansão do conceito lockiano, de que tratei acima, da independência em relação à vontade alheia. Este conceito fundará o de liberdade negativa, que Isaiah Berlin teorizará em nosso século. Seu efeito secundário - segundo alguns, o principal - é o de desqualificar a liberdade positiva (Berlin) ou dos antigos (Constant), que seria a liberdade, não de se proteger do Estado, mas de agir efetivamente. Com isso se valoriza uma liberdade do indivíduo empreendedor, em detrimento de uma liberdade de um sujeito coletivo. Na formulação de Berlin, o conceito será assim bastante utilizado contra os movimentos de esquerda ou sociais de modo geral.

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