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Nova economia? Isto é história...

Autor original: Flavia Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Sergio Goes de Paula*


A perda de cerca de 30% dos valores dos ativos medidos na Nasdaq neste ano 2000 desanimou um pouco os que viam nas tecnologias de comunicação e informação (leia-se Internet) uma revolução que iria mudar o mundo em pouco tempo. E acordou os que viviam o sonho de ter uma boa idéia e se tornar milionário sem primeiro ficar velho, além de abalar a perspectiva de um técnico de nível médio ganhar mais do que um profissional liberal bem estabelecido. Tudo isso virou pó com a crescente relutância dos fundos de investimento em financiar as tais boas idéias e com a dispensa de centenas ou milhares de programadores e especialmente técnicos em suporte ocorrida nos últimos meses, na seqüência do fechamento de quase todos os provedores de acesso grátis.


O que há de verdade no atual desânimo? O que há de verdade na anterior euforia? Vamos aos economistas, que, afinal de contas, têm a obrigação de saber o que está acontecendo.


Delfim Neto gostava de repetir uma frase que resume toda a "ciência" econômica: there is no such thing as free lunch, não há almoço grátis — alguém sempre paga. No caso do free-mail, o usuário pagava pelo acesso telefônico, pagava (indiretamente) pelo baixo nível de suporte; os provedores, por sua vez, pagavam pela manutenção do sistema, na esperança de que a explosão da Internet (no bom sentido) lhes levasse os anunciantes que, na ponta final, pagariam por tudo. Como dizia o poeta: ledo engano, ilusão treda... Menos de um ano depois, o esquema foi para o vinagre e sobrevivem apenas os provedores ligados ao sistema bancário, que podem pagar porque ganham dinheiro fora da nova economia.


Engana-se, no entanto, quem crê que ela (a nova economia) está à beira do colapso, que tudo era uma grande ilusão. Na verdade, em um certo sentido não há nada de novo no que está acontecendo com a nova economia, nada que Schumpeter não houvesse dito há décadas. Este genial pensador, pouco lembrado hoje em dia, traçou com precisão os caminhos econômicos da inovação: após a descoberta de uma nova tecnologia, ou um novo mercado, ou um novo produto, os empresários inovadores lançam-se na produção, auferindo grandes lucros que, por sua vez, atraem os empresários seguidores; alguns destes, os mais eficientes ou mais rápidos em perceber as oportunidades que se abrem, também têm lucros, cessantes, no entanto, à medida em que aumenta a concorrência. Resultado inevitável, a "destruição criativa", a falência dos retardatários. Ou, neste caso, a "explosão" da bolha na Nasdaq (no mau sentido), o fechamento de grandes provedores, a redução da demanda por mão-de-obra especializada.


Isto é o bê-a-bá da teoria econômica, que não deveria espantar ninguém, nem deveria levar ninguém a descrer do que está para acontecer como conseqüência das novas tecnologias de comunicação e informação. Deveria, isto sim, levar a uma revisão de conceitos, já que, por mais "natural" (se bem que não exista nada de natural no mercado) que seja este desenrolar, ele se deu por erro de cálculo ou erro de percepção.


Que conceitos devem ser revistos?


Em primeiro lugar, devemos deixar de lado uma simples equação: Internet = e-commerce. Isto nunca foi verdade. Passado o momento inicial de seu nascimento, quando a idéia de promover a comunicação entre computadores era um projeto do Pentágono, e a partir do momento de sua implementação, quando foi necessário conceber protocolos de comunicação entre os computadores ligados por linha telefônica, a rede mundial (tempos de Arpanet, ainda pré-Internet) teve de se apoiar no trabalho colaborativo de especialistas de todo o mundo para criar um protocolo que fosse de uso comum: se é para todo mundo usar, é preciso todo mundo estar de acordo — óbvio, não? A prática do trabalho colaborativo — através de listas de discussão, da disponibilização gratuita de informações, da troca de programas e seus códigos-fonte etc. — tem sido, assim, uma característica da Internet, mesmo antes de nascer.


O comércio eletrônico veio depois, muito depois. Mas não devemos nos esquecer que depois vieram também outras formas de uso colaborativo, ou comunitário, da rede: sistemas freeware, shareware e careware; MP3, Napster, Gnutella, Freenet, MojoNation e outros procedimentos são os acontecimentos atuais mais importantes neste mundo virtual, todos eles voltados para a troca não monetária. E que, para desespero da indústria fonográfica e editorial, abalam os alicerces da indústria da criação, ao dar aquilo que costumava ser vendido, ao pôr em cheque um direito mais que centenário, o direito autoral. Estes novos caminhos para a Internet são tão importantes que está em aberto a possibilidade de que virtual, palavra tão batida e que imprecisamente se refere a algo etéreo, sem existência concreta, passe a assumir seu significado original, de potência, de força, apontando para um poder ainda maior da nova tecnologia. Na verdade, há quem defenda a idéia de que a nova economia será a parteira do ciber-comunismo. Provocação? Pode ser. Quem diz isso é Richard Barbrook, grande autoridade em Internet, mas que, além disso, é inglês, e os ingleses gostam de deixar os americanos nervosos. De qualquer forma, vale a pena visitar seu site (http://www.hrc.wmin.ac.uk/) e conhecer melhor suas idéias – de graça, naturalmente.


A provocação de Barbrook não é gratuita. Pelo contrário, sua formulação é bastante sofisticada, e começa por apontar para algumas formas não capitalistas e pré-capitalistas da nova economia.


Em primeiro lugar, retomando o que foi dito acima, a circulação de produtos nestes novos procedimentos se faz através da doação, não da troca mercantil, e assim, formas características das sociedades ditas primitivas são, cada vez mais, a razão de uso das novas tecnologias. A doação, como a troca, também segue regras sociais bastantes estritas, e eu, de minha parte, eu vou gostar de ver os administradores de fundos de investimento sendo obrigados a ler Marcel Mauss para tentar compreender o que está acontecendo...


Em segundo lugar, boa parte do mercado de trabalho neste setor se comporta como produtores pré-capitalistas: um web designer, por exemplo, pode muito bem desenhar a página q ue lhe foi encomendada em casa, fora de qualquer linha de produção, proprietário de bens de capital – o computador, o software. O mesmo é verdade para um programador. Eles agem como se artesãos fossem, e o empregador age como se estivesse na Inglaterra anterior à Revolução Industrial, praticando um verdadeiro putting-out.


Se isto tudo vai levar ao ciber-comunismo, está para ser visto. Mas, sem dúvida, aponta para o fato de que a chamada nova economia apresenta diferenciais significativos em relação à velha economia, que neste setor regras duas vezes centenárias devem sofrer adaptações, e que, contrariamente à tendência econômica mais geral, os indivíduos e grupos informais nela saem reforçados – a globalização pode muito bem ser anárquica.


E, para terminar com equilíbrio, vamos citar a Wired, bíblia dos californianos herdeiros da ideologia comunitária da década de 70 e 80 e que, após investir esta herança no Vale do Silício, ficaram milionários — este, pelo menos é o mito. Boa parte de seu número de outubro de 2000 é dedicada à relação p2p, peer to peer, e que poderíamos traduzir por pessoa a pessoa. É outra maneira de falar as mesmas coisas, de comunicação sem comércio. John Perry Barlow, no artigo "The Next Economy of Ideas", sugere que estamos vivendo um momento de radical transformação, passando da produção de substantivos para a produção de verbos, da criação de produtos para a criação de idéias; que esta pode ser tão ou mais rentável quanto a primeira, tradicional; que a doação de informações traz como compensação a fama, o reconhecimento público, que, por sua vez, é passível de transações monetárias.


Faz sentido? Para alguns grupos e setores sociais, sim. E desde que a Internet não seja um bem de luxo, como é o caso brasileiro, onde apenas cerca de 5% da população têm acesso — o mais baixo nível entre as maiores economias industrializadas, padrão português, muito longe do padrão americano (60%), finlandês (40%) ou britânico (22%).


A economia pode ser nova, mas a desigualdade continua a mesma. E isto também é história...


* Sergio Goes de Paula é secretário-executivo da Rits.

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