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Rede Circo no Mundo - Educar para a Cidadania

Autor original: Flavia Mattar

Seção original:

Lorenzo Zanetti*


1. Introdução do Tema:


Educar para a Cidadania, o título deste painel não é nada criativo. Cada um o entende do jeito que quer, incluindo nele tudo ou quase tudo, nós também acabamos adotando este título para ajudar no entendimento do campo de questões que queremos apresentar e ao mesmo tempo poder discutir sobre aquelas que nos interessam mais e sobre as quais gostaríamos de marcar uma posição.


Educar para a Cidadania virou um fetiche, não se pode hoje falar sobre um projeto social, sobretudo com crianças, adolescentes e jovens, sem garantir um espaço, em geral aulas, sobre a cidadania que por sua vez fica reduzida normalmente a uma apresentação de direitos e deveres dos cidadãos. Em muitos casos se apresentam os direitos de forma bastante  limitada: comida, escola, casa... e os deveres como obrigações que os jovens têm que cumprir para não virar ... problema de segurança pública. Trata-se em geral de uma visão muito individualista dos direitos. Raramente a cidadania é apresentada em suas outras dimensões: coletiva, como direito a organização ou ativa, como se tornar construtores da sociedade.


Será que nós, educadores, sabemos qual o objetivo deste tema, quase obrigatório em qualquer curriculum? Temos claro o que queremos, o resultado que esperamos trabalhando na educação para a cidadania? Na época dos militares se inventou e foi imposta como disciplina obrigatória Educação Moral e Cívica e a OSPB (Organização Sócio-Político Brasileira); na época não todos, mas muitos educadores sabiam o que os militares queriam com isso.


Será que quando colocamos nos curriculum "educação para a cidadania" temos claro, onde queremos chegar? Estamos mesmo convencidos que algumas aulas sobre o tema ajudam os jovens a se tornarem mais cidadãos? Alguma vez passou pela nossa cabeça que podemos estar educando, mas que também corremos o risco de estar contribuindo com uma grande tapeação?


Que efeito pode ter a educação para a cidadania de quem não tem o que comer, e às vezes nem onde morar? De quem tem vergonha, medo ou cuidado em dizer onde mora para não perder a oportunidade de arranjar um emprego? De quem em qualquer blitz no ônibus ou na rua acaba sempre sendo revistado? De quem em época de eleição é procurado pelos políticos e incentivado a exercer (votando) sua cidadania, mas que no trabalho, quando o consegue, não pode abrir a boca sem correr o risco de ser demitido por insubordinação; de quem gosta de Fank e para se divertir, tem que correr da polícia?


O que queremos afinal com nosso trabalho de educação para a cidadania? Convencer os jovens e adolescentes a se sentirem bem  nesta sociedade que as vezes faz tornar atual a pergunta que 1600 anos atrás Santo Agostinho (Estado Teocrático) se fazia em relação aos impérios da época. "Que são os impérios sem justiça a não ser grandes bandos de ladrões"? Será que isso empolga os meninos e meninas que vivem nas ruas ou os jovens das favelas, dos cortiços, das periferias abandonadas?


A esta altura alguém deve estar se perguntando e/ou já foi perguntado: Afinal vale a pena ser cidadão? Temos que cortar de nosso trabalho a educação para a cidadania?


Com certeza temos que responder que precisamos educar para a cidadania, mais ainda, temos obrigação de levar os jovens a se empolgar com isso.


A questão que colocamos é como tornar a educação  para a cidadania não uma tapeação mas uma provocação aos jovens para entenderem a cidadania como um desafio que exige sua participação na construção de uma sociedade justa, solidária, fraterna.


Educar jovens e adolescentes para a cidadania quer dizer aprender a sonhar com uma nova sociedade, criar as condições que permitam acreditar que é possível mudar, transformar a sociedade e criar também oportunidades, momentos e espaços de participação efetiva.


Há mudanças que só a participação dos jovens podem viabilizar com as contribuições que só eles podem dar, por serem jovens e enquanto forem jovens.


Não educamos a cidadania para que os adolescentes de hoje sejam bons cidadãos quando adultos, educamos para a cidadania para que adolescentes e jovens assumam sua parte, sua responsabilidade nesta etapa da vida, o futuro lhe reservará outras responsabilidades.


Construir uma sociedade mais justa, mais humana, mais solidária não cabe só aos adultos, o papel dos jovens nisso é privilegiado. Fica claro porém que sob palavras de amor e cuidado em relação a "fragilidade" dos jovens se acaba criando barreiras a participação deles.


Depois desta introdução apontamos algumas características que uma boa educação para a cidadania não pode deixar de considerar.


2. Importância do Conhecimento da Realidade:


O processo educativo é algo complexo, atravessado e influenciado por situações e relações, das mais imediatas: família, escola, amigos e colegas, às mais amplas: privatização, multinacionais, guerra na Palestina.


O trabalho educativo em geral e de educação para a cidadania em particular, não pode ser reduzido a dimensão pedagógico/didática, precisa situá-lo no contexto sócio-político-econômico e cultural onde se desenvolve. Não é a mesma coisa, não são os mesmos argumentos e linguagens a serem usadas se a ação educativa for desenvolvida no campo ou na favela, com jovens que estudam ou não, que participam de alguma organização ou não, no Rio de Janeiro ou em Manaus...


Estas múltiplas situações têm que ser consideradas no processo educativo1.


Educar para a cidadania é levar os jovens a se interessar pela sua realidade, vista em todas as dimensões, a procurar conhecê-la cada vez mais, a descobrir as melhores formas de participar dela  e de contribuir para modificá-la, torná-la melhor.


Podemos afirmar que o conhecimento da realidade é o ponto de partida para uma boa educação para a cidadania.


Papel do educador é ele mesmo cuidar de se manter atualizado sobre a realidade, ajudar e motivar para que os educandos acumulem este conhecimento e, sobretudo para que se apropriem dos instrumentos e dos mecanismos mais confiáveis que garantem o acesso às informações.


O acesso às informações parece ser hoje mais fácil: televisão, Internet, jornais. Às vezes esta maior facilidade pode enganar. É só pesquisar um pouco: quem lê jornal? Quais os programas de televisão mais procurados? Quantos dos jovens com quem lidamos tem acesso à Internet?


Além disso, qual a modalidade e imparcialidade das informações que nos chegam através destes meios?


Será que somos mais cidadãos por termos acesso a diferentes canais de comunicação, por acumular mais informações?


Estarmos informados é necessário, mas não basta. Junto as informações é necessário se apropriar das ferramentas que nos capacitam a lidar com elas, que nos permitam processar informações e interpretá-las.


A experiência nos mostra que um fato, uma notícia provoca reações diferentes, dependendo do tipo de leitura que se faz do mesmo fato.


Por outro lado, o diferente tipo de leitura depende do lugar que ocupamos, dos interesses que defendemos e dos objetivos que nos propomos.


Conhecer a realidade é portanto uma questão de informação e de interpretação.


Sabemos que as informações, na maioria das vezes nos chegam já interpretadas, muitas vezes não conhecemos os fatos, mas a leitura que a Globo ou a Bandeirantes ou a Folha de São Paulo faz daquele fato.


É mais um desafio: como decodificar as informações? Enquanto educadores, o que nos cabe para contribuir na formação dos jovens a uma leitura correta da realidade, para que não sejam meros porta-vozes da leitura que outros fazem?


Educar para a cidadania é fundamentalmente instrumentalizar para uma interpretação  própria da realidade. Para garantir isso podemos adotar algumas técnicas: procurar a mesma notícia em diferentes canais de informação, procurar fontes alternativas, jornais de sindicatos, de associações profissionais...


Estas técnicas podem ajudar, mas o que nos dá mais autonomia na interpretação da realidade é nossa visão de mundo, é escolher nosso ângulo de observação. Para isso é preciso algo mais que a informação, é necessário criar referências.


Não se trata de mistificar modelos pré-fabricados a serem reproduzidos, a história nos ensina que não há modelos acabados, mas pensar os valores: solidariedade, esperança, justiça; as posturas: respeito aos outros, compromisso, partilha, o tipo de relação entre pessoas e das pessoas com a natureza, que gostaríamos ver predominando em nossa sociedade2.


Esta clareza no tipo de sociedade que queremos será nossa luz, a partir dela teremos os elementos para criticar esta nossa sociedade desigual, excludente, tão dominada pelos interesses econômicos que faz aparecer como normal e necessário sacrificar a natureza e as próprias pessoas.


3. Compromisso: Uma Educação Voltada para a Ação


Esta nova forma de ver e pensar a sociedade, além de nos servir como referência para o melhor entendimento de nossa realidade, serve também para motivar os jovens a se envolver e engajar em iniciativas concretas visando tornar o mundo melhor. O conhecimento, uma visão esclarecida e crítica do contexto, não pode faltar, mas, mais uma vez temos que dizer que é insuficiente.


Afinal queremos, e nossa sociedade precisa, de jovens esclarecidos mas também engajados. Esta é uma preocupação de qualquer um que se pretende "Educador" e tem que ser uma questão de honra para quem trata diretamente da educação para a cidadania.


Com isso reafirmamos que se organizar é uma forma privilegiada para entender e conquistar a cidadania.


Não há indicador melhor para avaliar os resultados do trabalho, que o número de jovens/adolescentes que passaram a participar de iniciativas sociais e políticas visando tornar nossa sociedade melhor.


Até aqui procuramos apresentar nossa visão sobre o tema da Educação para a Cidadania, sua abrangências e seus objetivos.


O que destacamos foi que a educação para a cidadania é importante e necessária para:

  • Motivar os jovens a se manterem informados sobre sua realidade, o contexto sócio, político, econômico e cultural da sociedade onde vivem;


  • Construir através de uma análise crítica, uma visão própria deste contexto;


  • Descobrir os elementos: valores, posturas, práticas que gostaríamos que permeassem a sociedade em que vivemos;


  • Levar os jovens a se envolverem na luta democrática para a transformação desta sociedade.


  • 4. Considerações Finais:


    Apostar nos Jovens:


    É bom ter claro o que a gente quer quando trabalha na educação para a cidadania, mas como e o que fazer para alcançar o que a gente quer?


    Vão aqui algumas considerações e sugestões tiradas de nossa prática e de educadores de diferentes grupos que tivemos oportunidades de conhecer.


    Um primeiro alerta para nós educadores tem a ver com nossas posturas junto aos educandos.


    Adolescentes e jovens tem uma contribuição a dar para a sociedade.


    Até que ponto apostamos neles? O que esperamos deles?


    Até que ponto somos, nós também, vítimas de uma certa visão que vê os jovens como irresponsáveis, criadores de problemas?


    Muitas vezes adolescentes e jovens são tratados, sobretudo os que vivem em situação de pobreza, como incapazes, como crianças crescidas; eventuais atribuições que lhes são confiadas parecem mais resultado da benevolência dos adultos do que reconhecimento do valor e da importância dada ao protagonismo próprio dos jovens.


    Mesmo em se tratando de adolescentes e jovens mantemos aquela postura de controle que marca a relação dos adultos com crianças que Mayumi Souza Lima, em "A Cidade e a Criança" , descreve assim: Há em todos os lugares, como que a obsessão do controle que perpassa todos os nossos comportamentos adultos com relação à criança; precisamos sentir-nos donos da situação, ter presentes todas as alternativas que a criança poderá escolher, porque só assim nos sentiremos seguros. A liberdade da criança é a nossa insegurança, enquanto educadores, pais ou simples adultos, e, em nome da criança, buscamos a nossa tranqüilidade, impondo-lhes até os caminhos da imaginação. (LIMA, 1989:11)


    Como lidamos com isso? Incentivamos o protagonismo ou colaboramos para boicotá-lo?


    Educar para a cidadania é um objetivo que se alcança quando todo processo educativo, suas diferentes etapas e dimensões, estão voltados para isso.


    O trabalho organizado e realizado coletivamente, a divisão de responsabilidades e tarefas, a troca de idéias e experiências, são elementos importantes para vivenciar os novos valores que queremos que marquem toda a sociedade.


    Aqui estamos em um encontro de educadores que, em sua prática educativa, adotam linguagens artísticas como subsídio pedagógicos ou entendem que fazer arte já é educar.


    Será que sabemos aproveitar isso, (aproveitando o potencial do trabalho coletivo, a superação dos limites, novos desafios) na educação para a cidadania, ou nós também, como acontece em muitos casos, reduzimos esta educação a mero discurso, desligado de nossa prática e dos interesses dos jovens?


    Já descobrimos o que o circo, a música, ou a capoeira tem a nos oferecer de novo para tornar mais interessante e eficaz nosso trabalho educativo, para o crescimento das pessoas e para a formação de cidadãos esclarecidos, organizados e comprometidos?


    Esperamos que este seminário nos ajude a descobrir este nosso potencial e as melhores formas de aproveitá-los.


    Coerência entre Discurso e Prática:


    Já colocamos a necessidade de unir a teoria e a prática. Muitas vezes esta relação não é feita e acontece que o discurso é um e a prática é outra.


    Não faltam maus exemplos, autoridades falam na importância da cidadania, mas não perdem oportunidades de desmoralizar movimentos, sindicatos e partidos. Será que não é para garantir ou salvar sua cidadania que o MST faz sua ação, que o sindicato dos professores declara a greve ou que um conjunto de entidades promove um plebiscito sobre a dívida?


    As autoridades que no discurso exaltam a cidadania são as mesmas que em outros momentos condenam estas ações promovidas para alcançá-la e exercê-la.


    Esta incoerência que leva a deseducar para a cidadania não é privilegio de alguns, pode ser nosso também. Todos devemos conhecer casos onde as aulas de cidadania são garantidas, mas continuam se mantendo uma relação autoritária entre educador e educando, onde não se valorizam idéias e propostas e os educandos são tratados como meros receptores; onde se consegue falar de cidadania sem levar em conta as barreiras que adolescentes e jovens, sobretudo aqueles que vivem em situação de risco, tem que enfrentar diariamente.


    Será que alguém pode pensar em formar cidadãos preocupados e engajados na transformação da realidade do País e do mundo sem espaço para vivenciar sua cidadania na escola, no seu grupo e no espetáculo que prepara?


    Uma última consideração relacionada a isso.


    A preocupação em formar os jovens a uma visão ampla de sua cidadania pode levar a discursos sobre a realidade mundial, sobre temáticas distante dos interesses dos jovens.


    Garantir uma educação para os jovens se sentirem cidadãos do mundo nos parece saudável e super-importante mas, com certeza, seremos mais eficazes se chegarmos a tratar das questões mais gerais de nossa cidadania chegando lá a partir de questões e experiências mais próximas, aquelas que a vida de todos os dias nos oferece.


    Por sua natureza a arte valoriza as características locais, sem perder nunca a perspectiva universal. Mais um motivo para continuar em nosso propósito de educar com arte.


    Leia sobre protagonismo juvenil na seção Exclusivo


    *Lorenzo Zanetti é coordenador do SAAP.



    Bibliografia:


    - NEGT, OSKAR "El aprendizaje, un Compañero de Toda la Vida" in Revista Educación de Adultos y Desarrollo, nº 54 - 2000.
    - LIMA, MAYUMI  SOUZA. "A Cidade e a Criança" - São Paulo, Nobel,  1989.



    1Temos clareza quanto a importância de outras dimensões do processo educativo: subjetividade dos educandos, as relações de gênero, as relações com a natureza, técnicas pedagógicas, didática. De nossa parte não destacamos estas dimensões que consideramos estar já incorporadas a formação de professores e educadores.


    2Destacamos aqui um aspecto que marca nossa realidade e que tem que ocupar destaque em nossa ação educativa para a cidadania.
    Citamos para isso Oskar Negt que diz:  "Los seres humanos deben aprender a distinguir la igualdad de la desigualdad, la justicia de la injusticia. ... Agudizar la percepción de las desigualdades invisibles y de las injusticias ocultas es - desde la antigua polis, desde Platón y Aristóteles - parte esencial de la formación política y de las cualidades básicas del hombre que se desempeña en el área pública. Ello también comprende la asimetría sostenida, la injusticia entre los sexos. El hecho de que en muchos países europeos cada vez más mujeres finalizan estudios en universidades y escuelas, pero que al mismo tiempo sigue siendo muy pequeño el número de ellas que alcanzan posiciones de alto nivel, forma parte de este complejo de problemas y es objeto de escándalo en toda Europa. Es la desigualdad existente entre los sexos. No digo que la desigualdad y la injusticia puedan eliminarse adquiriendo la capacidad de percibirlas, pero si aquí hablamos de sociedad civil, esta virtud de justicia constituye una elevada meta de la educación.

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