Autor original: Graciela Baroni Selaimen
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Há 15 anos o grupo teatral “Nós do Morro” desenvolve talentos, capacita jovens e ensina, na prática do dia-a-dia, o exercício da cidadania a crianças e adolescentes da comunidade do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro. No começo da semana passada, um dos integrantes do “Nós do Morro” se deparou com a violência – e não foi na ficção. Carlos André dos Santos, de 20 anos, foi baleado durante um confronto entre policiais militares e traficantes. Tomado por bandido, foi levado com escolta da PM para o Hospital Miguel Couto. Só após de intensos protestos da família e dos amigos é que os policiais que escoltavam Carlos André – estudante e trabalhador – foram dispensados.
A Rets foi ao Casarão do Vidigal - onde é realizado o projeto - conversar com Guti Fraga, fundador e coordenador do “Nós do Morro”. Ali, ele falou sobre o recente episódio de intolerância, mas muito mais sobre sucesso, ideologias e solidariedade.
Rets – Como começou o projeto “Nós do Morro”?
Guti Fraga – Há 15 anos eu resolvi criar este projeto. Eu já vivo aqui no Vidigal há 25 anos e sempre estive em contato com pessoas talentosas. Eu percebia a dificuldade de acesso dessas pessoas à cultura e à arte. Nessa época, eu trabalhava com a Marília Pêra, e, na volta de uma viagem, resolvi abandonar um determinado padrão de vida, em função de um objetivo maior. Então, convidei dois amigos – técnicos de teatro – e eles aceitaram me ajudar neste projeto. Assim, em 1986 começou a funcionar o “Nós do Morro”, um teatro da comunidade, para a comunidade.
Rets – Quer dizer, o público de vocês é a comunidade do Vidigal?
Guti Fraga – Agora, não só. O nosso objetivo não era apenas ensinar as pessoas a fazerem teatro, mas dar acesso para que o público vá ao teatro. Este acesso não é fácil – não só financeiramente, mas também, socialmente. As pessoas não sabem, às vezes, como chegar ao teatro, mesmo quando ele é de graça. Muitas pessoas não sabem como entrar, como se comportar. Por isso criamos esse projeto: para que a comunidade se familiarizasse com o teatro.
Rets – Foi fácil criar essa cultura?
Guti Fraga – Nada é fácil, tudo é um processo. A gente até pensa que as coisas podem acontecer assim, de repente, mas tudo é um processo. Quando eu percebi, estava num túnel sem volta, eu pensei que este fosse ser mais um projeto que você começa e termina, mas não foi assim com o “Nós do Morro”.
Rets – Como vocês conseguiram alcançar pessoas da comunidade com essa proposta nova?
Guti Fraga – Bem, nós iámos até eles, fazíamos uma divulgação corpo-a-corpo. Hoje, já utilizamos até rádio comunitária, mas no início, nós íamos de beco em beco, de rua em rua, convidando as pessoas. Entregávamos um convite e dizíamos que eles eram nossos convidados especiais naquela noite. Assim nós fomos mapeando, literalmente, o Vidigal.
Rets – Hoje em dia, o Vidigal inteiro conhece o projeto...
Guti Fraga – Hoje em dia, nós somos uma referência, não apenas no Vidigal, mas em todo o Brasil e até no exterior. Já ganhamos menção honrosa da ONU, temos uma parceria com a Royal Shakespeare Company, de Londres, enfim, hoje já conseguimos ramificar as possibilidades e o reconhecimento.
Rets – Como é esta parceria com a Royal Shakespeare Company?
Guti Fraga – A Sissy Libery é diretora de voz da Companhia e ela já veio três vezes ao Brasil. Nas suas duas últimas visitas, ela só veio para trabalhar com o pessoal do “Nós do Morro”. Um dos nossos objetivos, para o ano que vem, é trazê-la para ficar duas semanas exclusivamente conosco. É uma senhora de 80 anos, competentíssima, talvez uma das melhores do mundo, que prepara atores para Hollywod.
Rets – Como foi a repercussão dos primeiros espetáculos apresentados por vocês?
Guti Fraga – A aceitação foi imediata. Quando nós iniciamos o projeto a idéia era intercalar uma peça que falasse da comunidade, escrita por uma pessoa da comunidade, com espetáculos baseados em clássicos da literatura brasileira. Então, a primeira peça que apresentamos falava do dia-a-dia dos jovens do Vidigal, o que causou uma identificação muito grande. Para se ter idéia, esse primeiro espetáculo – chamado “Encontros” – ficou seis meses em cartaz.
Rets – O público paga ingresso?
Guti Fraga – Nos primeiros espetáculos nós não cobramos, apenas passávamos o chapéu no final, o que, muitas vezes, nem pagava a cerveja. Hoje, a gente cobra R$ 1,00. Mas não existe aquela história: eu não tenho dinheiro, não entro. Faz-se uma vaquinha, se a pessoa conseguir 50 centavos, entra por 50 centavos. Ninguém deixa de assistir por isso. Mas é legal estipular um valor, é necessário que haja esta troca. O dinheiro que se arrecada é mínimo, não paga um lanche para cada membro do grupo. O que vale é que se ensina qual é o esquema do funcionamento do teatro. Este é um teatro simples, mas funciona como qualquer teatro do mundo. Os convites são trocados por ingressos, na porta. O público entra, ouve o primeiro sinal, o segundo sinal...quando é um clássico, ouvem-se as três batidas do Moliére, e todo mundo já sabe que vai começar o espetáculo. Antigamente, antes de começar eu sempre explicava ao público o que é uma produção teatral – o que é um cenário, um figurino, a iluminação – para que as pessoas começassem a perceber este universo. Isto foi muito importante.
Rets – Como está constituído o “Nós do Morro”, atualmente?
Gut Fraga – Nós começamos com adolescentes, depois houve uma “invasão” de crianças. Hoje são 300 crianças e adolescentes atuando no projeto.
Rets – Além do teatro, há outras atividades?
Guti Fraga – Hoje nós somos uma companhia de teatro e cinema. A turma de 13 a 17 anos, por exemplo, tem um currículo invejável para jovens dessa idade, em termos de Brasil. Não sei se em outros países uma garotada dessa idade teria o mesmo currículo. São jovens que estudam história do teatro, história do cinema, literatura, expressão corporal, interpretação. Eu não conheço outro curso, voltado para esta faixa etária, que dê essa formação. Ainda há atividades opcionais, como violão, culinária....
Rets – Como os jovens têm utilizado todos estes recursos? A idéia é que eles se tornem profissionais?
Guti Fraga – Acho que antes de se tornarem profissionais, eles se tornam cidadãos. Acho que a cidadania vem antes de tudo. A partir do momento em que você percebe que não jogando papel de bala no chão você dá a sua cota, e que 300 pessoas que não jogam papel no chão representam, com certeza, menos bueiros entupidos, cria-se a consciência. A partir do momento que eles têm, aqui dentro, a possibilidade de sonhar, de compartilhar desejos, de dialogar, de questionar, a partir disso eles já criam uma base como cidadãos. Então, eu acho que aqui eles se descobrem como pessoas e se constituem cidadãos. Depois, se descobrem como profissionais, evidentemente. É natural que se sonhe viver dignamente através da arte. Só que nós tentamos conscientizar que viver só como ator pode ser uma ilusão – você consegue um trabalho, é legal, ganha um dinheiro – mas depois, pára. Se eles tiverem a oportunidade de viver como um profissional dá área – é uma outra história. Por isso todo mundo aqui joga em vária áreas. Há pessoas fazendo assitência de produção, de direção, continuístas, montagem de cinema, decupagem, vídeo...
Rets – Então, o projeto é multidisciplinar...
Guti Fraga – Mais do que isso. Quando nós idealizamos este projeto, sempre tivemos como objetivo a idéia multiplicadora. Não se justifica muito criar um projeto e centralizar todas as funções, isso é irreal. Nosso objetivo sempre foi esta idéia multiplicadora – cada aluno que teve acesso à formação, também tem a obrigação de dar acessso a outras pessoas. Hoje, 90 por cento dos nossos professores são pessoas que cresceram aqui dentro do “Nós do Morro”, e estão dando continuidade ao projeto. E, acima de tudo, vai aí uma filosofia de vida. Ninguém é eterno, e não nos interessa simplesmente ensinar a arte. Aqui dentro, as pessoas têm que pensar coletivamente, não interessa se tem alguém na novela das oito – tem a obrigação de estar aqui, dando referência para os mais novos, participando, ajudando a varrer a casa. Tem que ser solidário. Tem que dividir, tem que somar.
Rets – Com que recursos vocês têm mantido o projeto?
Guti Fraga – Com trabalho voluntário. Esta casa é emprestada. Nós pretendemos comprar. Por exemplo, agora, nós não temos o apoio de ninguém. Então, tem que pagar a luz, a gente enfia a mão no bolso e paga a luz. No ano passado, nós tivemos o apoio da Secretaria de Cultura do Município, durante seis meses. Todo mundo recebeu uma ajuda de custo. Eu não quero que esse projeto siga assim, contando apenas com ações voluntárias. Claro que todo mundo tem que ajudar, mas eu não acho justo esses jovens crescerem aqui dentro fazendo a tarefa do Estado. Eu acho que o Estado tem que “chegar junto”. E eu falo no Estado como um todo. Essas pessoas daqui precisam sobreviver dignamente. O nosso desejo, hoje, é fazer uma parceria com alguém que nos ajude a manter o projeto e que não queira mudar nossas idéias e ideologias – que eu acho que é o básico para qualquer projeto sobreviver.
Rets – O “Nós do Morro” foi notícia, na semana passada, por um motivo diferente de tudo que estamos vendo aqui: a violência sofrida pelo Carlos André, baleado e confundido com um traficante. Vocês têm um núcleo de cultura e arte inserido numa comunidade que lida com a violência no seu dia-a-dia. Como se dá essa relação, entre o que se aprende, o que se sonha aqui dentro e a realidade ali fora?
Guti Fraga – O que acontece é o seguinte: há 15 anos temos este projeto, e há 15 anos enfrentamos uma briga social que se chama estereótipo. Como aconteceu com o Carlos André, por exemplo. Perguntaram para ele: o que você está fazendo na rua, a esta hora? Às onze e meia da noite, à meia-noite, não importa que horas sejam. Por que é que não param um carro, numa esquina de Ipanema, e fazem a mesma pergunta? Acho que há um desencontro muito grande nesta história. Eu fiquei muito injuriado, e na verdade, nunca tinha me deparado com o sistema, tão cara a cara. É a primeira vez, e é uma coisa que amedronta, é um poder muito forte. Mas as coisas acontecem de maneira tão escancarada na sua frente, que você não consegue ficar calado. É deprimente. No caso do Carlos André, ele está conosco desde os oito anos de idade e eu tenho por ele um carinho de pai. De repente você vê um garoto que estuda, que trabalha, que não tem vícios, um guerreiro – ser tratado desta maneira? Quantas pessoas iguais a ele são tratadas desta forma? Nós nos calamos, porque não é conosco. Mas quando é conosco, não há como ficar calado. Nós tivemos a possibilidade de gritar naquele momento. E foi o que fizemos.
Rets – E qual foi a repercussão deste grito?
Guti Fraga – Nós criamos teias. Nós já temos uma teia muito grande no Rio de Janeiro, eu acho que aqui existe um trabalho de base muito estruturado, muito bonito, e por isso eu ainda acredito na nossa sociedade. Só por isso. Por um momento eu senti como se tivesse trabalhado quinze anos e levasse uma "banda" de alguém. Me senti desarticulado. Mas começaram os contatos, começamos a ligar para as pessoas, e aí eu senti que as coisas se articulam e que existe, realmente, esta teia – que é a soma. Há muita gente que soma: essa é a resistência contra o sistema, é o que ainda resiste. Ainda me sinto cabreiro, às vezes, e nunca quis estar neste papel, de estar na mídia discutindo esse assunto. Eu gosto de falar sobre a arte de interpretar.
Rets – Mas não há como não falar, vocês vivenciaram esta situação. No mínimo, este momento suscitou uma reflexão entre os meninos?
Guti Fraga – Esta questão do estereótipo pode ser a reflexão, aqui. Esses meninos dizem o tempo todo por favor, com licença, muito obrigada. Tem que ser assim. Esses meninos falam dos irmãos Lumiére como falam do seu Zé da esquina. Não é ficção: é real. Acabou esa época em que pobreza é sinal de sujeira, de burrice, isso já era. Somos pessoas pobres. Porque o país é pobre. Pobre financeiramente. Mas esse estereótipo cultural, isso já era. Estes projetos de base, a que me referi, têm transformado muito as sociedades locais.
Rets – Como você acha que este confronto com o estereótipo vai repercutir no trabalho do “Nós do Morro”?
Guti Fraga – Não sei. Não sei dizer. Não tive tempo de parar pra ficar refletindo sobre isso. Tem tanta coisa pra se fazer. Eu tenho que dar aula, tenho que administrar, temos um espetáculo neste fim-de-semana, uma troupe nossa de dez jovens está gravando um programa novo da Globo, tem outros cinco gravando Malhação, estamos produzindo estas coisas todas. Nós paramos na segunda-feira, logo após o incidente, como emergência. Fizemos uma grande reunião, para avaliar o que aconteceu. E foi muito bonito constatar que há de fato, solidariedade. Nós somos irmãos aqui, sem hipocrisia, sem ditar normas. As nossas normas são básicas para qualquer sociedade: a disciplina, a organização, a responsabilidade e o prazer, que é a única forma de as coisas funcionarem, independente de classe social. Na reunião, nós constatamos a nossa coesão. E é lindo, isso. É demais poder contar com o outro. Isso é o que mais importa, nesse momento. Saber que cada vez mais, caminhamos juntos.
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