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Emprego e Trabalho para Portadores de Deficiência - As Leis, os Debates e os Projetos de Ação no Ano 2000

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

João Baptista Cintra Ribas *


Nunca se debateu tanto emprego e trabalho para portadores de deficiência física, visual, auditiva e mental como neste ano de 2000. Poucas vezes se viu tanto empenho na elaboração de alguns projetos de ação, públicos e privados, ainda a serem inteiramente desenvolvidos, como neste ano.


Nos debates e na elaboração dos projetos estiveram envolvidos empresários, economistas, professores universitários, consultores, educadores do ensino profissional, técnicos da Secretaria de Educação Especial e da Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério da Educação, médicos do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, promotores do Ministério Público do Trabalho, representantes das Centrais Sindicais, profissionais do Ministério da Justiça, parlamentares, técnicos das instituições sem fins lucrativos e, é claro, portadores de deficiência.


Há duas indagações importantes a serem aqui examinadas: 1) por que 2000 foi o ano em que as discussões alcançaram tantos setores da sociedade? 2) quais são as perspectivas dos projetos de crescimento de oportunidades de emprego e trabalho para portadores de deficiência nos próximos anos?


Os anos antecedentes


Até os anos 40 a deficiência era causada pelas malformações congênitas ou pelas doenças da velhice. Havia os acidentes na idade adulta, mas poucos sobreviviam. No mais, crianças com o que se chamava de “retardo mental” e cegos adultos estavam sentenciados ao afastamento social compulsório. A imagem cultural de quem portava uma deficiência era quase que tão-somente a da incapacidade para o exercício de uma profissão. Coerente com esta imagem os dirigentes das instituições filantrópicas da época procuravam o que entendiam ser o melhor: a guarida, o abrigo, a proteção, o asilo. Pelo menos no Brasil, a deficiência ainda não era considerada um fenômeno causado pela realidade social.


A partir do final da década de 40 dois acontecimentos mundiais conjugaram-se para fazer do tema algo que merecesse a atenção dos que olhavam para os campos econômico e social: as trágicas e constrangedoras conseqüências da Segunda Grande Guerra e as novas relações de trabalho nascidas da retomada da industrialização dos anos 50. Foi nesse período que as opiniões e propostas adquiriram duas vertentes principais: de um lado, os que acreditavam na reabilitação para o trabalho baseados em “explorar as capacidades residuais dos portadores de deficiência” e, de outro, os que consideravam que as classes patronais deveriam se opor à reserva de vagas nas grandes indústrias. Até aqui nenhum projeto nacional de ação concreta sequer havia sido pensado pelo poder público ou pela iniciativa privada.


As décadas de 60 e 70 trouxeram a contracultura, os movimentos de reivindicação popular e a retomada pelos então considerados grupos minoritários da Carta das Nações Unidas de 1945. É a partir destas décadas que surgem, entre outros, documentos internacionais que darão o novo viés – econômico, social e político – aos debates atuais sobre emprego e trabalho: a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (ONU, 1971), a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (ONU, 1975) e a Convenção 159 Sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes (OIT, 1983). A Constituição Brasileira de 1988 veio consolidar, em vários capítulos, os direitos sociais e individuais – incluindo os de acesso ao trabalho – dos portadores de deficiência.


Mas, se os princípios da Convenção 159 são os estimulantes sociais das novas discussões da década de 90, o Brasil como país-membro da OIT ainda tem estado longe de cumprir plenamente o que determina esse documento: “assegurar que existam medidas adequadas de reabilitação profissional ao alcance de todas as categorias de pessoas deficientes e promover oportunidades de emprego para as pessoas deficientes no mercado regular de trabalho” (Artigo 3). O relatório da última conferência da OIT (junho de 1999), além de chamar a atenção para a falta de percepção pública do país do que constituem as políticas econômicas e sociais sustentáveis, ainda afirma que os portadores de deficiência continuam sendo um grupo “particularmente vulnerável no mercado de trabalho”. Ao que tudo indica a distância entre a necessidade de independência econômica e social dos portadores de deficiência e a dificuldade brasileira de cumprir o que determina a Convenção foi a pedra de toque, neste ano de 2000, do ressurgimento revigorado de antigos textos legais e da edição de novos.


As leis em vigência e os debates atuais


Em dezembro de 1999, o Governo Federal editou o Decreto 3.298, que regulamenta a Lei 7.853 (1989). O texto é bastante abrangente e visa garantir às pessoas portadoras de deficiência possibilidades reais de inclusão em todas as esferas da vida em sociedade. Da mesma forma como estava na Lei, o princípio norteador do Decreto é a eqüidade, isto é, a disposição de reconhecer que, como todos os cidadãos, estas pessoas têm direito à participação social plena.


Consoante com esse princípio – que está firmemente embutido na Convenção 159 – o Decreto retoma no seu Art. 36 o que já estava presente no Art. 93 da Lei 8.213 (Plano de Benefícios da Previdência Social, 1991): a obrigatoriedade legal da empresa com cem ou mais empregados de preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada. Entre 1991 e 2000, a fiscalização sempre foi rarefeita. Mas, por meio de portaria, a partir do início de 2000 o Ministério do Trabalho e Emprego ficou incumbido de fiscalizar o cumprimento do Decreto e o Ministério Público do Trabalho tem convocado empresas privadas para inquiri-las sobre a submissão legal.


A partir daí o debate aqueceu. Em maio, promovido pela Revista CIPA (e publicado na íntegra em quase 20 páginas da edição No 250), a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo abriu espaço para um dos primeiros debates depois da edição do Decreto 3.298. Em junho opiniões nem sempre convergentes tomaram o palco do auditório do Palácio do Trabalhador, em São Paulo, na Campanha de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência no Trabalho, realizada pela Delegacia Regional do Trabalho e Emprego. Em agosto idéias nem sempre simétricas foram apresentadas para a platéia do Rio Centro, no Rio de Janeiro, no 19th International Rehabilitation World Congress. Em setembro, no Recife, apreciações às vezes destoantes foram apresentadas no congresso Deficientes do Século XXI: O Século da Diferença. Artigos, entrevistas e reportagens foram publicados, entre outros, no Caderno de Economia de O Estado de S. Paulo, na Folha Equilíbrio da Folha de S. Paulo, nas revistas Veja e Isto É e no site da Rede de Informações Para o Terceiro Setor. Isso sem contar reportagens que ao longo do ano foram transmitidas pela TV. Um exemplo é a exposição de idéias em mesa redonda, apresentada em novembro pela Programa Modernidade da Rede Sesc/Senac de Televisão.


Para se ter idéia da dimensão alcançada pelo tema, basta dizer que professores universitários, que até então não haviam exercitado uma reflexão mais sistemática, passaram a pesquisá-lo de maneira metódica a fim de contribuir com a sua equação. É o caso do Prof. José Pastore, da Faculdade de Economia e Administração da USP, que debruçou-se sobre o assunto e que ainda este ano estará lançando um livro.


O espigão de todos os debates girou em torno de dois eixos: 1) na atual conjuntura econômica do país e em face das novas relações de trabalho as empresas privadas conseguirão contratar a porcentagem de portadores de deficiência estipulada pelas cotas do Decreto 3.298? 2) em caso afirmativo há quantidade suficiente de portadores de deficiência profissionalmente qualificados para assumir imediatamente os postos de trabalho supostamente abertos pela imposição das cotas?


Há ainda um terceiro eixo de discussão que, nos limites deste artigo, não é possível explorar de forma detalhada e minuciosa: como caracterizar com precisão a deficiência física, visual, auditiva ou mental para efeito de preenchimento das cotas? Afinal, historicamente no Brasil, a “deficiência” foi primeiramente definida pela Previdência Social, que solicitou ajuda técnica da Medicina. Com algumas pequenas variantes, tal definição é ainda a que vale nacionalmente. Além do que, as próprias pessoas, consideradas “portadoras de deficiência”, jamais definiram as próprias limitações físicas ou cognitivas, aceitando até hoje as determinações da OMS e dos órgãos governamentais responsáveis pelas políticas públicas.


Desta fonte inicial, surge a incapacidade técnica de reconhecer diferenças ou distinções. O Decreto 3.298 define as deficiências, demarcando-as não necessariamente em consonância com a International Classification of Functioning and Disability (OMS, 1999), permitindo tecnicamente ao setor empresarial privado buscar nos seus quadros de profissionais já contratados aqueles que se ajustam ao texto jurídico, o que em tese o desobriga legalmente de contratar (pelo menos em parte) novos portadores de deficiência.


Frente a esse emaranhado de dúvidas, perguntas e juízos, propostas têm sido apresentadas. Entre elas: 1) fiscalizar as empresas com rigor e punir imediatamente, com multa, as que não estiverem cumprindo a lei; 2) conceder às empresas um período de adequação e ajuste interno para que possam cumprir a lei, o que implica em futura punição com multa para aquelas que não se ajustarem; 3) transferir, do setor empresarial privado para as instituições, a obrigatoriedade exclusiva de empregar portadores de deficiência (deslocando o seu trabalho para dentro da instituição que seria terceirizada pela empresa); 4) transferir, de uma empresara para outra, a obrigatoriedade exclusiva de empregá-los (deslocando o seu trabalho para a empresa terceirizada); 5) criar um fundo que concentraria recursos financeiros das empresas que não pudessem contratar e que seriam destinados para a adequação arquitetônica dos edifícios e para a habilitação e reabilitação profissional; 6) contratar uma parte da cota estipulada em lei e financiar (por meio das fundações empresariais e do Terceiro Setor) projetos comunitários de assistência a portadores de deficiência e de educação profissional.


Esta última proposta leva a uma discussão, ainda incipiente, mas que parece ser não apenas a de fundamento, como pode convergir para a conciliação.


É fato que muitas pessoas portadoras de deficiência não estão qualificadas profissionalmente para exercer tarefas profissionais específicas, até porque não têm escolaridade formal, não passaram por nenhum programa de educação profissional, nunca trabalharam. Todavia, também é fato que elas precisam trabalhar para terem independência econômica e, portanto, melhor qualidade de vida.


Por outro lado, é fato que uma grande empresa, com mais de 30.000 funcionários, não conseguirá de uma hora para outra contratar os 5% previstos, algo em torno de 1.500 portadores de deficiência. Além de não encontrar tal quantidade qualificada no mercado de trabalho, o contexto econômico atual não lhe permite criar tantos postos e a pressão social não tolerará demissões para cumprir a lei. Porém, da mesma forma é fato também que as empresas privadas (sobretudo as maiores) podem preencher pelo menos uma parte das cotas impostas, escolhendo aqueles profissionais que já estiverem qualificados para a função desejada, além de poderem destinar algum recurso financeiro para o fomento de projetos comunitários e de educação profissional.


Deste modo, a conciliação pode chegar por dois caminhos: independentemente no número de profissionais, empregar a parcela mais qualificada e, ao mesmo tempo, usar os recursos que seriam despendidos com a contratação da outra parcela para promover o desenvolvimento de projetos comunitários e de educação profissional, envolvendo o Terceiro Setor e os governos federal, estaduais e municipais. A proposta de terceirização de trabalho (empresa/instituição e empresa/empresa) precisa ainda ser melhor estudada. Mas descarte-se (pelo menos a princípio) a de criação de um fundo que concentraria recursos financeiros privados para o uso aleatório. Se levada a efeito de forma inconseqüente, esta última medida dispensaria e desobrigaria a iniciativa privada dos seus compromissos sociais porque a rigor transfeririam, mediante repasse de responsabilidades e “donativos em dinheiro”, a resolução do problema para outros.


Os projetos em andamento e as perspectivas futuras


Como então promover o desenvolvimento de projetos comunitários e de educação profissional, envolvendo o Terceiro Setor e o Governo?


Em primeiro lugar, é preciso avaliar quais projetos de ação já estão em andamento e quais destes são realmente sérios e exeqüíveis. Hoje em dia as empresas particulares só firmam parcerias quando o parceiro que executa tem um projeto social que mereça confiança.


Em segundo lugar, é necessário convencer as empresas privadas (sobretudo as que já atuam por meio de fundações próprias) a destinar mais recursos para projetos que envolvam a melhoria da qualidade de vida dos portadores de deficiência, do que estão fazendo até o momento. Atualmente a maioria dos recursos do Terceiro Setor está reservada para crianças em situação de risco, e pouco ainda se investe em projetos para portadores de deficiência (crianças ou adultos) e idosos.


Em terceiro lugar, é fundamental que os homens de decisão dos governos apóiem, de forma peremptória, os projetos sérios e factíveis. Nem todos os ministros, governadores, secretários de Estado e prefeitos já se determinaram a dar apoio logístico e financeiro aos projetos sociais.


Há dois projetos, já em desenvolvimento, que merecem a atenção dos empresários e dos governantes.


O primeiro foi elaborado pelo Departamento Nacional do SENAI e intitula-se Inclusão do Portador de Necessidades Especiais nos Programas de Educação Profissional do SENAI e no Mercado de Trabalho. Trata-se de um projeto nacional, embasado em metodologia sólida e detalhada, que prevê, num primeiro momento, a sua implantação em cinco escolas piloto de cinco cidades: Florianópolis (SC), Itu (SP), Gama/Brasília (DF), Natal (RN) e Manaus (AM). O trabalho todo envolve a adaptação arquitetônica das cinco escolas (para que possam receber alunos usuários de cadeiras de rodas), compra de material didático especial, capacitação técnica dos professores e sensibilização dos empresários de cada região para que empreguem adequadamente os alunos formados pelos cursos profissionais.


O segundo foi preparado por uma parceria entre a Secretaria de Educação Média e Tecnológica e Secretaria de Educação Especial do MEC e denomina-se TEC-NEP: Necessidades Especiais, Tecnologia, Profissionalização – Um Projeto Cidadão. Trata-se também de um projeto nacional, também embasado em metodologia sólida e detalhada, cuja ação está direcionada para a expansão da educação profissional das Escolas Técnicas e Agrotécnicas Federais e dos CEFETs para os portadores de necessidades especiais.


A execução destes projetos visa atender a uma das principais queixas dos empresários: a de que não conseguem contratar portadores de deficiência porque muitos deles não estão qualificados profissionalmente. Mas a sua importância vai além da possibilidade que as empresas privadas ou públicas têm de empregá-los. Aumentando as suas potencialidades profissionais, os portadores de deficiência obterão não só maior capacidade de competir em situação de eqüidade no mercado de trabalho formal, como ainda poderão desenvolver trabalhos em home-offices, em cooperativas ou por meio do teletrabalho e telecomuting. Deste modo, segundo suas aptidões e talentos, poderão optar pela forma que mais lhes convier de trabalhar e, exercendo suas próprias atividades laborais, sem que se subjuguem a quem quer que seja (da família à instituição benemerente), obter renda financeira, conquistar independência e melhor qualidade de vida.


Se empresários e governantes derem apoio integral ao desenvolvimento de projetos de educação profissional, os próximos anos serão muito alvissareiros para autonomia pessoal e social dos portadores de deficiência. E serão auspiciosos de um Brasil mais justo, mais virtuoso, mais íntegro.


*João Baptista Cintra Ribas é doutor em Antropologia pela USP, especialista em inclusão de portadores de deficiência pela Universidade de Salamanca (Espanha) e consultor de empresas privadas e de Ministérios do Governo Federal.
E-Mail: jbcribas@globo.com

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