Você está aqui

Exigência universal de pluralidade - um projeto cívico para o novo século.

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

A globalização limitou as culturas particulares e criará uma "sociedade global". Mas esta só será suportável se impusermos a pluralidade do espírito, do corpo, da cultura e da natureza. É a saída para nos libertarmos da tristeza extrema de um universo comandado, em nome da unidade humana, pelos riquíssimos ascetas da moeda eletrônica


Denis Duclos*


A evidência nos cega. Não enxergamos mais o que nos acontece. E o que nos acontece, na escala de nossa época, é o fim de uma ficção e o começo de uma outra. O fim da unificação humana no mesmo projeto fatal do jogo do dinheiro; e o começo de uma busca de diversidade. O fim de um ideal de onipotência sobre os homens; o começo de uma nova busca por autonomia e respeito mútuo. O problema da nossa época é colocar em seu devido lugar a unidade humana permitida pela informação, sem que o fantasma totalizante que a acompanha como sua sombra comprometa a liberdade dos seres vivos.


Assim como o indivíduo se livra lentamente dos ideais mágicos da infância, cada unidade cultural humana chega a um ponto onde não pode mais crer na eficácia imediata de seu pensamento. Ela deve então compor com o real e fazer com que este último admita sua própria divisão interior, entre as palavras que o inspiram e a vida que o sustenta.


Ora, a unidade cultural na qual estamos envolvidos -- nós, seres humanos do início do terceiro milênio -- é, por sorte ou fatalidade, a humanidade ela mesma, em sua pretensão de abranger sob o mesmo conceito a espécie e a organização política. Temos a honra insigne de conhecer a situação com a qual os filósofos das Luzes tinham sonhado -- Kant em particular. A questão central é realmente aquela que aporta necessariamente a universalidade: a exigência universal de pluralidade. Empreendimento exaltante e terrível, tanto planetário quanto pessoal, íntimo quanto público, nacional quanto mundial.


A festa da mudança de século e de milênio, por mais fútil e simbólica que seja, é portanto a ocasião de refletir sobre este fato "absolutamente simples": a humanidade, ideal carregado de conflitos, tornou-se realidade material; e sobre sua conseqüência inelutável: somente a pluralidade pode permitir respirar, sobreviver neste fechamento do mundo humano sobre si mesmo.


Das culturas particulares a uma "sociedade global"


Até aqui, cada cultura, cada visão do mundo, cada sistema econômico, pretendia opor sua definição de humanidade a todas as outras. Isto ainda é bastante verdadeiro, mas, doravante, ao contrário do que anunciava Samuel Huntington em sua obra O Choque das Civilizações, estas unidades coletivas foram obrigadas a compor suas divergências, a "formar sociedade". Uma sociedade ainda indefinida, certamente: nem sociedade das nações, nem globalidade, nem potência imperial única, mas algo que transita entre tudo isso.


É esta indefinição do quadro comum que, doravante, cada grupo suficientemente poderoso tenta atrair em seu proveito e superá-la, sem jamais chegar a ela. Mesmo os Estados Unidos, última potência com capacidade de tutela, não podem mais organizar o mundo em torno de si, sem encontrar graves contradições com seus próprios princípios democráticos e liberais. Mesmo o capitalismo, última forma concreta de pensamento totalizante, não consegue imergir completamente as massas humanas em sua lógica exclusivamente contábil, cuja crueldade se agrava a partir do momento em que a precisão científica é colocada a seu serviço.


Tudo se passa como se, de um só golpe, ao chegar à situação de universalidade concreta, a humanidade não pudesse mais se entregar inteiramente a um de seus componentes ou figuras especiais (identidade étnica, poder nacional, escolha religiosa, corrida ao poder ou à riqueza, paixão pela ordem, etc.). Como se o acesso ao universal significasse, ao mesmo tempo, o acesso a um certo jogo que limitaria e equilibraria as paixões.


Este jogo de equilíbrio anunciaria o fim da história? Talvez o fim das histórias particulares dos antigos coletivos em concorrência pela verdade universal. Talvez mesmo o fim da história capitalista, em razão do seu trabalho no controle espiritual abstrato das massas humanas. Mas é, ao contrário, necessariamente, o começo de uma outra história: aquela que contamos enquanto membros de uma espécie politizada como tal, e não mais somente como enfrentamento de humanidades em uma competição guerreira ou econômica. Fim ou começo (e provavelmente os dois, sem afrontar a lógica), pouco importa: a época só pode ser a da preocupação política com a diversidade, uma vez que esta irrompe em nossa realidade, por ordem da própria essência desta universalidade praticamente realizada.


Poderíamos nos indagar a respeito de porque não temos sido capazes, até aqui, de levantar a questão da diversidade em termos de absoluta necessidade, liberando-a da associação de idéias saudosistas com os etnicismos ou particularismos. A resposta é a seguinte: a consciência política que funda esta preocupação não é da ordem de uma história objetiva, econômica e técnica, mas da alçada de uma história subjetiva e de sua própria dialética. Ainda não colocamos a diversidade no eixo de nossa ação histórica, porque, simplesmente, ela ainda não nos tinha aparecido como o término de nossas aventuras em direção à universalidade.


A história material da humanidade e a história-que-faz-sentido


É preciso não confundir, de um lado, a evolução material da humanidade sob a égide de uma cultura da linguagem (e de seu principal efeito explosivo: a ciência tecnológica) e, de outro, a história que adquire sentido através de nós, sujeitos.


Tanto o movimento da primeira é um continuum irreversível, se bem que contrastado de uma região para outra, enquanto a segunda se divide em ciclos dramáticos sucessivos ou paralelos. A história-que-faz-sentido se desenrola como uma narração onde nós fazemos papéis de autores ou atores, narração que começa, se desenvolve e termina em um ciclo chamado a recomeçar em outros termos, em outro lugar e amanhã. Deve-se, com efeito, ir até o fim de um relato para que ele adquira sentido (caso contrário, que sentido teria fazer o relato?), e depois disso se associa a ele um outro, porque não queremos viver na angústia da ausência de sentido. Enquanto a humanidade existir como tal (e não é possível ver como a democracia de mercado aboliria a condição simbólica na qual nos banhamos desde a origem da palavra), nós pretenderemos sempre continuar nossa história, e depois, tendo esta terminado, desejaremos contar uma outra. Sempre. Eis um postulado antropológico tão fundamental quanto o da relatividade na física.


Ora, este mecanismo narrativo obedece a certas regras: tentamos, em geral, contornar uma certa preocupação que permanece central para muitos de nós, num período de várias décadas, às vezes de alguns séculos. O caminho: isto é, tentamos sucessivamente diversas soluções contrárias para o mesmo problema, diversas expressões opostas da mesma metáfora que nos serve de filtro momentâneo para interrogar o mundo.


Assim, desde que somos maciçamente confrontados à universalidade concreta -- desde a metade do século XIX e da aparição dos impérios modernos capazes de governar o mundo real --, temos tentado pelo menos três soluções logicamente encadeadas:


1. Controlar a tendência à globalização pelo triunfo da particularidade: é a guerra entre os impérios, cada um pretendendo encarnar a totalidade. Os dois conflitos mundiais do século XX foram os produtos mais (de) flagrantes.


2. Unir o pensamento global e a particularidade: é o ideal nacional-estatal internacionalizado, do qual vimos as vantagens e os riscos especialmente em sua maior realização, o movimento comunista soviético.


3. Realizar o pensamento global unicamente na materialidade dos agenciamentos técnicos: é o ideal liberal que é, de fato, um apelo à informatização dos jogos contábeis para regulamentar o desejo humano, em todas as suas formas particulares.


A proposta que falta


A evidência deveria nos mostrar a proposta que falta, aquela que nós ainda não tentamos: realizar a universalidade, renunciando ao pensamento globalitário em todas as suas formas, políticas, econômicas ou técnicas -- pois ele não passa de um sucedâneo coletivo de um fantasma infantil de onipotência.


Mas para "ver" esta proposta não realizada, ainda não experimentada, seria preciso que tomássemos um pouco de distância em relação a nossa própria história. Isso exige o abandono de uma posição de ator imediato, com o que raramente concordamos. Por exemplo, vários entre nós passaram diretamente dos papéis da segunda solução (militantes da metáfora político-social da universalidade) aos papéis da terceira (crentes no milagre regulador do mercado). Muitos, nas diversas "tribos de esquerda" têm vergonha de ter se engajado num projeto cujos impasses constatam hoje. Mas, assim como na psicanálise a vergonha é uma fase do lento recuo do recalcamento, seria bom que as pessoas compreendessem que a atual admiração pela regulação técnica (financeira-informacional) do mundo é tão fantasmática quanto a precedente mobilização. Ela é mesmo, provavelmente, mais fatal ainda, uma vez que leva todo o mundo a "representar" sem descanso o valor criado, como se o verdadeiro objetivo escondido da mobilização globalitária fosse desafiar a vida até a ruína.


Nos dois casos, na verdade, experimenta-se a gravitação de nossa história em torno de uma questão essencial: o limite do "totalismo", quer ele seja "político-intelectual" (socialismo), quer seja técnico (a lei da oferta e da procura). Comunistas e liberais trabalharam no desvelamento do coração da época: a questão de um real humano que transcende toda solução unificada nos cérebros...intelectuais ou cibernéticos.


Não é pois o fim da história, mas o centro dela que se manifesta hoje. A resposta capitalista integral ao comunismo não foi, contrariamente ao que muitos acreditam, um ataque em regra contra o totalitarismo. Foi bem mais uma tentativa de salvamento -- desesperada, apesar da aparência "eufórica" dos mercados -- de uma outra forma, mais absoluta ainda, de totalismo: aquele da máquina que faz circular sem fim o valor. É um esforço para negar que é no encontro da gestão financeira global que se concentram as forças do drama e da tragédia que nos incitaram a ir mais adiante na narrativa humana.


O que o capitalismo informatizado nega é que a alternativa civismo-automatismo gestionário (antes expressa pela oposição "comissário do povo"-"financista") não importa mais verdadeiramente.


Na Rússia, fortunas particulares e burocracia se entendiam bem. O regime chinês tornou-se um anexo funcional do capitalismo mundial, gerando por sua vez massas assalariadas remuneradas ao mais baixo preço possível. Nos Estados Unidos, que se crêem freqüentemente ser o reino da especulação absoluta, as aposentadorias por repartição representam ainda 70% do total e os fundos de pensão somente o resto: sua competição se desenvolve sobre o fundo de uma "gestonite" administrativa, onde mal se consegue distinguir o burocrata do homem de dinheiro, tal eles se parecem.


O mundo unificado será suportável?


O que o regime mundial esconde cuidadosamente por trás da comédia destas falsas oposições é que a civilização está, doravante, chamada a escolher entre o monopólio geral e a diversidade. Quando concentrações e fusões se aceleram por todos os cantos, dando origem a gigantescas organizações mundiais, evidentemente destinadas a se fundir, por sua vez, em uma ou duas estruturas restantes; quando as organizações internacionais são cada vez mais solicitadas a limitar ou dissolver as soberanias nacionais ou locais, o sentido do que vivemos nos aparece já sob a forma de um questionamento simples: o mundo será suportável quando estiver unificado?


A resposta se situa, nos parece, na sabedoria das culturas, em sua experiência imemorial dos momentos de unidade: uma cultura humana unificada só é suportável se ela é testemunha de uma diversidade interna real, ou seja, de uma pluralidade que não é outorgada -- e, portanto, pré-digerida -- por um sistema dominante.


Assim, a sedução capitalista nos propõe, aparentemente, uma gigantesca diversidade de objetos. Mas nós já sabemos a homogenização que ela supõe num segundo plano e na disciplina dos próprios consumidores.


De um lado, somente um sistema industrializado perfeitamente integrado pode segmentar seus produtos numa infinidade de opções, enquanto, por outro lado -- nós o vemos com a destruição de produtos agrícolas, estigmatizados pela menor bactéria -- , as opções finais propostas no catálogo gigantesco de vendedores da Internet só apresentam variações na aparência ou em detalhes superficiais, perfeitamente controlados.


A emergência da diversidade real como problema central da época se manifesta em todos os domínios imagináveis, materiais e humanos. Mas a consciência de sua significação fundamental demora a se libertar de sentimentos parasitas.


A "diversidade biológica" ameaçada exprime, por exemplo, um fantasma que diz respeito (vimos seu emprego delirante pelos partidos de extrema-direita) tanto às formas de vida quanto às entidades culturais ou étnicas. Mais que recorrer ao seu contra-emprego e suas derivações ideológicas perigosas, talvez fosse melhor abordar diretamente a preocupação recalcada que se esconde aí: medo da exclusão de uma multiplicidade de atitudes individuais pela lógica do relatório contábil. Angústia do encolhimento das elites locais ou nacionalismos forçados à ociosidade e à diminuição por uma instância correlativa de concentração da hiper-burguesia num Estado-maior mundial. Terror de um nivelamento dos comportamentos que a moral globalizada decreta como aceitáveis -- conduzidos a uma única posição de vitíma passiva, entregues às manipulações da milícia humanitária etc.


Estas preocupações são sérias: só os cínicos podem admitir que uma boa divisão mundial do trabalho legitima a pesquisa científica nos Estados Unidos enquanto a Ásia e a Europa seriam limitados a fabricar sapatos, a vender água ou a montar veículos. É contudo o que começa a acontecer , com a ajuda da expatriação voluntária dos departamentos de pesquisas das empresas européias, em particular as francesas . Só os idiotas podem supor que é melhor para as populações "locais" serem dirigidas por uma casta mundial do que por suas próprias elites. É porém o que acontece com o rápido deslocamento das direções das empresas, principalmente as francesas, para as metrópoles anglo-saxônicas. Só os ingênuos podem crer que não exista nenhuma relação entre a intenção pura de ajuda às vítimas e o cálculo estratégico do novo controle colonial do mundo pelos países "liberais".


As velhas identidades não voltam


A proliferação.... de recusas da pluralidade pode inquietar. Preferimos aqui considerá-la como um sintoma daquilo que ela exige: uma outra representação partilhada da diversidade. Mas qual, nos perguntamos, posto que não se trata de um retorno à fragmentação de identidades antigas?


O problema não foi suficientemente delimitado; passamos muito rapidamente diante da evidência mais banal, a mais repisada no cotidiano, a saber, que é o princípio mesmo da pluralidade que está em causa hoje, e não esta ou aquela forma de respeito do múltiplo.


Temos observado, por exemplo, que é a pluralidade enquanto tal que é negada pela ideologia dominante da informatização do mundo? Uma pluralidade mínima não começa a não ser que pelo menos duas entidades coexistam. Notemos que a pluralidade, iniciada a dois, tende imediatamente a se multiplicar: um mundo realmente dual não se basta jamais a si próprio, pois implica obrigatoriamente a presença do terceiro, ou seja, a posição do comentador segundo o qual um modo de mediação será escolhido entre duas "alteridades".


Uma lógica plural implica no mínimo três princípios: o ser, sua ausência (que permite situá-lo, calculá-lo) e sua mediação. De fato, um mundo plural -- mesmo minimamente -- não é somente trinitário. Ele é pelo menos quaternário. Com efeito, espírito, corpo e cultura coexistem no interior de um espaço-tempo real que não pode ser traduzido sem ser traído por um simbolismo qualquer, mesmo sendo altamente formalizado. Este quarto elemento é a natureza, na medida em que esta, no sentido etimológico do termo, "é o que deve ser apresentado ao mundo", queiramos ou não, estejamos nela ou não. É o que nos "deixamos ser", porque é o segundo plano de nossas agitações teatrais, sem o qual este teatro não existiria. Certamente, a ciência estuda o lado objetivo desta realidade exterior, mas ela interfere nela, deixando necessariamente de lado outros aspectos.


Enfim, o pluralismo de princípio pode ser impelido, sem deixar o terreno da dedução, até um "quinto elemento", que é suficientemente evocado pelas ardentes heroínas dos filmes de Luc Besson (Joana d'Arc, por exemplo), a saber, o desejo indestrutível que nasce das proibições de toda representação do mundo. Com efeito, um mundo quaternário, por mais pluralista que seja (quatro vezes mais que o mundo unipolar que nos fabricamos obsessivamente!), não seria menos "pobre" de potencialidades que ele excluiria para existir. Este seria o papel dos loucos, dos amantes e dos criadores: colocar este mundo em causa para abrir o caminho para outras histórias futuras ou colaterais (como o fazem, por exemplo, os autores de space opera).


Reanimando Marx e Brecht


Contando com isso, é claro que, no que concerne ao nosso futuro próximo, deixar-se levar rumo à pluralidade minimal do espírito, do corpo, da cultura e da natureza corresponderia a um consolo, a uma formidável liberação da extrema tristeza de um universo inteiramente comandado, em nome da unidade humana, pelos riquíssimos ascetas da moeda eletrônica. Karl Marx percebeu muito bem como o capitalismo fazia desaparecer os reais valores de uso sob a abstração do valor de troca. Ele não divisara a que ponto a ética puritana universalizada nos transformaria a todos em autistas pródigos das cifras. Seria preciso reanimar Bertolt Brecht para escrever uma peça sobre o magnata das finanças mundiais que não deixa o pequeno escritório sem janelas de seu iate, ancorado a um porto "paradisíaco", que ali passa sua vida inteira a comprar e vender montanhas de objetos e pessoas que não conhecerá jamais. Que podemos dizer deste ideal de homem moderno, senão: "Que pobre tipo!"


Quatro princípios soberanos, portanto, que não se deixariam mais destruir uns pelos outros:


1. A natureza, primeiro, enquanto representa (simbolicamente, claro) o que não é manipulado. Seria por simples acaso que os José Bové se tornam os raros heróis de um mundo onde capitalismo e ciência se reúnem para se dedicar a nossa relação com a exterioridade, com a auteridade radical da vida "selvagem"? Queremos respirar outra, além de nós mesmos. Recusamos uma relação incestuosa, uma relação autofágica. Pretendendo comer queijos de leite cru (sob risco de engolir alguns inevitáveis listeriae), recusamos que a fobia asseptizante seja uma percepção normal do real. Resistindo aos organismos geneticamente modificados, criticamos o aprendiz de feiticeiro multinacional que pretende captar a vida nas redes de seus genes industriais. Desejamos aceder a espaços não contaminados pela exploração técnica do mundo, afim de aí viver um pouco (ou muito) de aventura direta, não inserida na lógica da mercadoria, não organizada "para nosso bem". Eis aí uma primeira soberania (algo a instaurar talvez no contexto de um patrimônio mundial) que o capitalismo deverá, pacificamente ou na violência engendrada por sua obstinação, aprender a reconhecer.


2. Os corpos em seguida, em sua atualidade localizada. Será um acaso que uma das grandes lutas da nossa época é aquela dos jovens "habitantes dos bairros"? Estes heróis reivindicam o direito de existir de entidades locais, dotadas de costumes, de estilos corporais e de falares bem identificados sobre uma base geográfica (eu sou de tal cidade, do bairro 93, etc.). Considerados deste ponto de vista, eles não são "vítimas da exclusão", mas, ao contrário, vanguardas da resistência à abstração virtual internetizada, à qual opõem o lugar, o corpo, o atual, a vizinhança e a convivialidade. Certamente eles são censurados freqüentemente por serem fascinados por ícones do consumo de massa, por serem os futuros "idiotas da ralé", por favorecerem, contra as elites cultivadas de sua própria sociedade, a união do McDonald's e do djihad. Trata-se de maus argumentos na verdade (mesmo quando apresentam algo de verdadeiro), pois não levam em conta o essencial: a subversão urbana antecipa a resistência das comunidades de situação e de partilha de lugares de vida à homogeneização sem limites. Ela representa a defesa do próprio corpo, sempre encarnado aqui e agora, em constante movimento, dançante, alimentando-se do "tu" (e também contra "eles"), em sua recusa da imobilização diante das telas do universal. Evidentemente, permanece quase tudo a inventar neste domínio de luta, especialmente em termos de bens e de serviços comunitários inalienáveis à propriedade mercantil.


Déficit cultural, déficit político e totalitarismo


3. A cultura, igualmente, em sua característica primordial de palavra partilhada, de criação contínua de experiências, de "maneiras de ver", transcende a fabricação industrial de folhetins e merece a salvaguarda e a promoção de redes de distribuição que não organizam a raridade e não generalizam o deserto cultural. Será também um acaso que ela constitua um dos principais pontos de discórdia dos debates sobre a desregulamentação do comércio internacional? A questão aqui não é somente que o produto hollywoodiano mais medíocre agrade as pessoas (o que reenvia à questão da real participação de massa, do empobrecimento cultural, fenômeno do tipo "servidão voluntária"). É que o confisco das possibilidades concretas de encenação dos jogos humanos pelos membros de tal sociedade proíbe no fim das contas o comentário sobre a própria universalidade. Nos tornamos incapazes de endereçar nossa avaliação do mundo social e de suas relações a outros sujeitos deste mesmo mundo. O déficit cultural cava um déficit político que, por sua vez, reforça o totalitarismo opressivo da máquina automática "acultural". A independência financeira das instituições de cultura e de ensino é provavelmente uma das vias de resistência, com a condição de que sua função de diversão e livre criação dos meios cultos prevaleça finalmente na opinião pública sobre a busca quimérica de "empregos".


4. E, enfim, a própria informação. Se nós a submetemos a uma crítica virulenta na sua pretensão mesma de abarcar toda a realidade humana, não se trata evidentemente de buscar sua destruição, posto que --, não nos esqueçamos --, é graças a ela que a questão da diversidade no universal foi colocada como centro de nossa história. A informação endossa, não há dúvida, a construção da humanidade como tal mas, ciente de sua responsabilidade gigantesca, ela não deve precipitar imediatamente esta mesma humanidade na absoluta inumanidade da transparência contábil. Nas grandes empresas, os executivos coletivamente sádicos infligem a muitos assalariados os sofrimentos que se pode esperar de casernas cibernéticas. Sobre o manto da adaptação às normas globalizadas eles espetam os assalariados como os insetos de um novo taylorismo mais próximo, desta vez, do controle dos espíritos. É preciso frear esta tendência monstruosa como também será muito útil introduzir a presença das três outras instâncias independentes (cultura, corpo e natureza) no interior dessas fortalezas da perversão produtiva. Por exemplo: a luta dos pesquisadores da Elf, em Pau, para conservar algo do pensamento não imediatamente rentável (sob pretexto de reclamar daquilo que deveriam agradecer aos acionistas mais ávidos) antecipa uma luta muito mais global para limitar a vida ativa a pura contabilidade.


As quatro instâncias cardeais


Para resumir "o negócio do século": quer queiramos ou não, a universalidade, já adquirida na globalização, só será suportável através do reconhecimento do princípio da pluralidade. Este não tem nada a ver com a infinita fragmentação dos objetos e dos homens que nos propõem os catálogos comerciais. Ele representa, inicialmente, a dualidade, a saber, eu e o outro, e não zero e um; o espírito e o corpo, e não os corpos decifrados pelo espírito e desmembrados por suas ferramentas de "relação". Desta dualidade elementar, se deduz a presença de livres comentadores: é na cultura, e somente nela, que podemos discutir qual "a boa maneira" de contar uma história de respeito mútuo. Nenhuma ciência do homem, nenhuma invenção estatística das opiniões, nenhum sistema de vídeo-vigilância pode substituí-la. Nela reside provavelmente o registro político maior: aquele onde discutimos a peça que vamos encenar, e não somente os detalhes de um determinado ato, ou a escolha dos atores e de seus salários. Enfim, tudo isso exige uma testemunha silenciosa: a natureza, sobre uma parte da qual, por pura convenção, decidimos não agir, a fim de não nos deixarmos encerrar em uma confusão louca entre nós mesmos e o mundo, entre a vida e nossas intenções de ser a fonte dela.


Um mundo plural não é assim um mundo ordinal (onde tudo torna-se seguido de números), nem mesmo um mundo fracionário (onde todos os números são finalmente colocados em um círculo entre 0 e 1). É um mundo onde ao menos quatro instâncias cardeais se consideram mutuamente e respeitam seus próprios modos, irredutíveis, de pensar e de agir, seus próprios símbolos fundamentais distintos e separados: o dinheiro (para a informação), o lugar do presente (para o corpo), a palavra (para a cultura), a vida selvagem (para a natureza).


Saberemos fazer surgir este mínimo de pluralidade?


Traduzido por Marco Aurélio Weissheimer.


* Sociólogo, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), em Paris. Autor, entre outros, de Nature et democratie des passions, Presses universitaires de France, Paris, 1996.


Este artigo foi publicado no Le Monde Diplomatique.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer