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A quem devem pertencer as praias?

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

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Em dezembro, foi aprovado no Senado o projeto de lei nº 617/99, de autoria do Senador Paulo Hartung (PPS - ES), que prevê a transferência da titularidade dos terrenos de Marinha - pertencentes à União – aos municípios. Isto significa que as Prefeituras poderão vender estes terrenos aos possuidores de títulos de Aforamentos ou ocupantes. Em 2001 o projeto será submetido novamente à Câmara e, se aprovado, torna legal a venda dos terrenos de Marinha para particulares. A Rets foi ouvir o professor da Universidade Federal Fluminense e ambientalista Arthur Soffiati sobre as consequências que a nova lei poderia trazer para o meio ambiente. Soffiati entende do assunto: é Conselheiro do Centro Norte Fluminense para Conservação da Natureza, ex- Conselheiro Suplente do Conselho Nacional do Meio Ambiente por dois mandatos e do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, além de autor de vários livros sobre a questão ambiental.


Rets - Se o projeto do Senador Hartung for aprovado pela Câmara em 2001, quais serão as conseqüências que a nova lei acarretará para o meio ambiente?


Arthur Soffiati - O Projeto de Lei do Senador Paulo Hartung pode ser resumido em quatro pontos:
1- Ele muda a linha de referência para a demarcação dos terrenos de marinha, que deixa de ser a linha de preamar média de 1831 e passa a ser a linha de preamar média de 1999 e agora de 2000.
2- Os terrenos de marinha reduzem-se de 33 metros, a contar da preamar média, para 13 metros.
3- A titularidade deles passa da União aos municípios. 4- Os municípios podem alienar os terrenos de marinha mediante venda a particulares.
No que toca ao primeiro ponto, de fato urge uma mudança de referência para demarcar os terrenos de marinha. Como não é possível localizar a linha de 1831, jamais estes terrenos poderão ser demarcados. Sucede que o mesmo é válido para 1999 ou 2000. A linha da costa tem oscilado muito, seja como conseqüência da elevação do nível do mar pelo aquecimento global, seja por avanços localizados em função de outras intervenções antrópicas. Vivo numa região em que o mar está avançando pacientemente sobre a povoação de Atafona, na margem direita do delta do rio Paraíba do Sul. Este avanço já engoliu seis ruas e demoliu uma muralha construída com concreto armado por um engenheiro, capaz de resistir a um exército. Também na foz do rio Itabapoana, entre os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo ocorre fenômeno semelhante, embora menos intenso. Segundo pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, estas mudanças localizadas da linha de costa se devem à quebra do balanço entre as águas do rio e do mar a favor do segundo, por barragens e guias-correntes construídas nos rios, por sangrias e grande perda de vazão na foz. Nos dois casos, e existem outros no Brasil, o mar ignorou tanto a linha de preamar média de 1831 quanto a de 2000.
Com respeito ao segundo ponto, há uma tradição legal que remonta ao período colonial, passa pelo período imperial e chega aos nossos dias, de manter-se uma faixa de domínio da Coroa, do Império e da República para servidão pública. Esta é uma das poucas salutares tradições de nossa história legal. Questiona-se apenas que uma faixa de 33 metros ainda é estreita para uso comum. O Senador Paulo Hartung tentou reduzi-la para 13 metros, mas o Ministério do Meio Ambiente apelou para que ela fosse mantida em seus 33 metros. À luz da Constituição de 1988, esta faixa deve ser entendida como bem de uso difuso comunitário sob responsabilidade da União.
A transferência de sua titularidade da União para os Municípios pode parecer um gesto em prol da democracia e da descentralização de poder, com o fortalecimento do poder local e da gestão participativa dos munícipes. Na prática, nada disso vai acontecer porque nada disso vem acontecendo. O Projeto de Lei do Senador Hartung visa regularizar situações ilegais em todo o Brasil e ele tem plena consciência de tal objetivo, pois viveu com estes problemas enquanto prefeito de Vitória. Tenho assistido por este Brasil afora ocupações ilícitas de terrenos de marinha que o projeto, se convertido em Lei, vai legalizar. Mas não apenas: ele abre a perspectiva de praias semivirgens ou ainda bem protegidas serem legalmente utilizadas pelo poder público municipal para seu uso ou para venda a particulares. A realidade municipal mostra mais a existência de oligarquias retrógradas e corruptas que progressistas, democratas e honestas, infelizmente. O mesmo acontece com a população, mais interessada em apoiar a construção de quiosques na orla marítima que protegê-la. Neste momento, estamos às voltas com alguns casos destes, que serão beneficiados com a transformação do Projeto do Senador Hartung em Lei.
Por fim, o direito que os Municípios podem ganhar de vender terrenos de marinha a particulares terá efeitos catastróficos. Pode-se perguntar quem seria louco em construir na faixa de 33 metros sabendo que a linha de costa desta avançando sobre o continente. O problemas não é este. Certamente, ninguém terá a imprudência de construir em local condenado pelo mar. No entanto, o proprietário do terreno de marinha pode muito bem delimitá-lo com cercas e impedir a passagem e o uso de pessoas em terras secularmente consideradas de domínio público.
Todas estas razões somadas à revogação da Resolução nº 4 do Conselho Nacional do Ambiente, por revogação recente do Art. 18 da Lei Federal nº 6.938/81, acarretarão, sem dúvida, danos gravíssimos aos ecossistemas costeiros. Por esta resolução, revogada por tabela pela Lei nº 9.985, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, uma faixa mínima de 300 metros a contar da preamar máxima, com vegetação nativa, representava, nas restingas, as dimensões da área de preservação permanente prevista na alínea f da Lei 4.771/65, instituindo o novo Código Florestal.


Rets - Como os ambientalistas e as organizações que atuam na defesa do meio ambiente estão encarando esta possibilidade? Que iniciativas estão sendo tomadas?


Arthur Soffiati - Assim como a Conferência Rio-92, uma vez terminada, deixou os movimentos de defesa do meio ambiente mergulhados em profunda ressaca e esgotamento, está parecendo também que a grande manifestação cívica contra o Projeto do Deputado Moacir Micheletto, alterando o Código Florestal, entre dezembro de 1999 e março de 2000, causou efeito semelhante. Que me conste, só se manifestaram, até o presente, Os Argonautas, ONG da Amazônia que tem exercido o papel de tirar do Senado o Projeto de Lei do Senador Hartung e divulgá-la pela internet a uma ínfima parcela da sociedade civil. Também a ONG da qual sou associado, o Centro Norte Fluminense para Conservação da Natureza, assumiu a posição que venho adotando em relação ao Projeto. Vozes isoladas, mas altamente credenciadas, como as de Selene Herculano, Sérgio Boeira, Gert Fisher e Ricardo Nehrer, têm sido ouvidas nas Listas de meio ambiente da Internet. É de se esperar que, passadas as festas de final de ano, as férias e o carnaval, as manifestações comecem a surgir em todo o Brasil.


Rets - Trocando em miúdos, o projeto do Senador Hartung permite a privatização das praias? Como o Ministério do Meio Ambiente está se posicionando quanto a esta questão?


Arthur Soffiati - Permite, desde que os recursos auferidos com a venda revertam em prol da capitalização de fundos de previdência para seus respectivos servidores. Incapaz de controlar o emprego do dinheiro público pelos municípios, o Governo Federal não conseguirá igualmente fiscalizar a aplicação dos recursos obtidos com a venda de terrenos de marinha municipalizados. Teremos, então, outra fonte potencial de recursos que poderão ser malversados ou apropriados indebitamente pelas oligarquias retrógradas e corruptas das quais falei anteriormente. E, mesmo que houvesse mecanismos de controle, ainda assim o Projeto rompe com um direito fundamental do cidadão e do meio ambiente. Quanto ao Ministério do Meio Ambiente, o próprio Senador Paulo Hartung declarou que ele não manifestou qualquer interesse na fase de tramitação e que apenas solicitou o retorno à faixa de 33 metros para os terrenos de marinha.


Rets - O Senador Hartung afirmou, recentemente, que a preservação dos ecossistemas é foco de sua atenção e que o seu projeto apenas atualiza o conceito de terrenos de marinha, que remonta à preamar do ano de 1831, para a preamar de 2000 - já que o mar avançou em direção à terra nesse período. Como cientista, qual a sua opinião sobre os argumentos do Senador?


Arthur Soffiati - A justificativa do Senador é muito simplista. Primeiramente, não se trata só da atualização da linha de referência para demarcar os terrenos de marinha, atualização que eu também considero necessária e urgente. Além disso, ele tentou reduzir em 20 metros estes terrenos, já insuficientes em seus 33 metros. Como estudioso, entendo que o fenômeno do aquecimento global por ação antrópica, além de outras intervenções antrópicas, coloca a grande precariedade em definir uma linha de preamar médio, o que torna a questão crucial. Em princípio, precisamos da figura dos terrenos de marinha públicos, bem de uso comum. Eles deveriam ser estabelecidos em dimensões maiores onde existisse uma certa estabilidade da linha de preamar e serem examinados, caso a caso, onde a linha se mostra muito oscilante. Uma grande falha do Projeto do Senador Hartung é a total ausência da comunidade científica, não sei se pela atitude de auto-suficiência de nossos governantes, não sei se pelo alheamento da academia, muito voltada para suas atividades. Outro aspecto é que o Projeto trata as invasões e as ocupações como fato consumado, quando o correto é tentar ao máximo a reversão de processos de destruição de ecossistemas, como manda a Constituição Federal. Também nos casos de ocupação muito consolidada, cada caso deveria ser examinado de per si. Neste sentido é que deveria nortear-se a redação do Projeto do Senador, e não no de legalizar o ilegal e ainda abrir a perspectiva de ocupação por particulares de áreas ainda protegidas.


Rets - O senhor considera a legislação brasileira efetiva na defesa do meio ambiente?


Arthur Soffiati - Ao contrário da maioria, considero a legislação ambiental brasileira cheia de falhas e buracos que permitem ações e empreendimentos altamente lesivos aos ecossistemas. O Código Florestal não estabelece todas as dimensões das áreas de preservação permanente e, quando as estabelece, as dimensões valem para qualquer bioma e são muito gerais. O instrumento do EIA-RIMA não é obrigatório. Os brejos não contam com proteção legal clara. Os ecossistemas são esquartejados pelo Código Florestal, pelo Código de Proteção à Fauna, pelo Código de Pesca e pela Lei dos Crimes Ambientais. São lacunas enormes que, a meu ver, só poderão ser preenchidas com a promulgação de um Código de Ecossistemas.


Rets - Qual é o papel da sociedade civil organizada nesta questão e como os cidadãos podem se manifestar em relação a este projeto?


Arthur Soffiati - Ela pode se manifestar de diversas formas. Creio que concentrações populares em frente e dentro do Congresso Nacional, bem como o exercício da cidadania pela Internet revelam boa eficiência.


Rets - O senhor acha possível que, em pouco tempo, a população tenha que pagar para freqüentar Copacabana, Itapuã ou Boa Viagem, por exemplo?


Arthur Soffiati - Não acredito que as prefeituras dos municípios em que ficam estas praias tenham força para privatizá-las sem uma grande manifestação de protesto dos seus freqüentadores. Mas não descarto a possibilidade de as prefeituras criarem uma taxa para uso das praias, alegando a necessidade de recursos financeiros para recuperá-las e mantê-las. Estou muito mais preocupado com praias desconhecidas deste nosso grande litoral, muitas delas ainda conservando aspecto agreste, com vegetação nativa, beleza invulgar e função ecológica indiscutível. Estas não merecerão protestos de massa se forem privatizadas.

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