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Quem dá e quem não dá - eis a questão

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

Leilah Landim e Maria Celi Scalon*

Che Guevara já definia que el trabajo voluntario es una escuela creadora de conciencias, em frase imortalizada num monumento de Havana. Por aqui e mais recentemente, segundo o Programa Voluntários do Conselho da Comunidade Solidária lançado em 97, “o voluntário é o cidadão que, motivado pelos valores de participação e solidariedade, doa seu tempo, trabalho e talento, de maneira espontânea e não remunerada, para causas de interesse social e comunitário”. Por outro lado, há três meses atrás na capa do The New York Times Magazine um enorme Tio Sam de cara ameaçadora convocava os leitores: I WANT YOU To Do Everything The Government Used To Do. O subtítulo - Why Volunteerism Doesn't Work - completava a chamada para artigo sobre a ineficácia do voluntariado, diante de tal missão.


O denominado trabalho voluntário, ao qual vem associada a também não compulsória doação de bens ou dinheiro por indivíduos para alguma causa social, é expressão que geralmente recobre relações variadas e estruturantes da sociedade, nos mais diferentes contextos, com os mais diversos significados, consequências, possibilidades de enquadramento: dar, receber, retribuir, participar, pertencer...


Na terra onde o giving of time and money para associações de todo o tipo e feitio faz parte do quotidiano da maioria da população (69% doam dinheiro e 50% fazem trabalho voluntário, nos Estados Unidos) - doações por sua vez referenciadas a um imaginário cívico e marcadas pelos ideários da precedência da sociedade com relação ao Estado - o debate sobre essas práticas entra na moda com os tons dos anos 90. Como se viu, também lá faz parte da discussão a possível funcionalidade de atividades antigas da "sociedade civil" diante, agora, do enfraquecimento das políticas sociais. Mas sobretudo, voluntariado e doações vêm aí ocupando um lugar em discussões que acumulam vasta literatura, como a da suposta crise do engajamento cívico, do capital social, da tradição associativista norte-americana, nas décadas finais do século. E debates análogos se desenvolvem em contextos diversos. Sobre um pano de fundo global e bem conhecido de fenômenos diferenciados (transformações do Estado e predominância do mercado, desprestígio de organizações representativas tradicionais, afirmação de identidades étnicas e religiosas, a chamada exclusão social etc.), retomam-se velhos conceitos ou categorias como solidariedade, caridade, reciprocidade, dádiva, filantropia, discutindo-se o possível reposicionamento de práticas e valores a eles associados, na cena contemporânea - e acrescente-se a já prolongada revisita ao conceito de sociedade civil.


No Brasil de repente, nos finais dos anos 90, começa a aparecer uma inédita discussão sobre o "trabalho voluntário" e a "doação individual". Um debate quase nada acadêmico e desenvolvido sobretudo em campo fronteiriço ao das próprias instituições privadas de ação social, de algumas agências governamentais e dos grupos do setor privado que vêm criando o novo campo do "investimento social empresarial". Se práticas que podem ser reconhecidas e enquadradas como doações e voluntariado sempre existiram na sociedade brasileira, elas raramente se constituíram como uma questão, da forma como está sendo agora construída e levada a público - como atestam por exemplo as frequentes matérias na mídia sobre iniciativas individuais exemplares, campanhas de doação, páginas de internet de oferta e procura de voluntários, cursos de capacitação ou promoção do "voluntariado empresarial" entre funcionários, e por aí vai.


Nesse campo de novos reconhecimentos, sem dúvida têm peso iniciativas em instâncias oficiais que legitimam e colocam no espaço público a doação de tempo e dinheiro como questão. Mais precisamente no caso do voluntariado, pela primeira vez objeto de regulação jurídica. A Lei do Voluntariado, sancionada em 18 de fevereiro de 1998, formaliza que “considera-se serviço voluntário”: “a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive, mutualidade” (Lei no 9.608, Diário Oficial da União, 18/02/98).


Ao mesmo tempo a Comunidade Solidária, através da Primeira Dama Ruth Cardoso, lança o Programa Voluntários (novembro de 1997), acompanhado de Seminários Regionais de Promoção do Voluntariado e da criação de Centros de Referência do Voluntariado espalhados por diversas regiões do país. Visa-se aí a “implantação de uma cultura moderna do voluntariado, preocupada principalmente com a eficiência dos serviços e a qualificação dos voluntários e instituições”. Não se excluem ações e disposições preexistentes: “Reconhecendo o vigor e a amplitude do esforço generoso de cidadãos e instituições”, no entanto o Programa “tem como missão contribuir para a promoção, valorização e qualificação do trabalho voluntário no Brasil”, sendo que " A nova visão do trabalho voluntário não tem nada a ver com caridade e esmola nem com ocupação de quem sofre de tédio”. Tem a ver com “cidadania participativa”, ao mesmo tempo que com “eficiência e resultados”.(Documento da Comunidade Solidária, s/d). Como diz Miguel Darcy de Oliveira, conselheiro da entidade, a Lei chega quando o “próprio conceito de voluntariado está passando por um profundo processo de transformação no país.” (Agir, Informativo do Programa Voluntários no 4, abril de 1998).


Essas são concepções, por sua vez, que se vêm produzindo e disseminando através dos canais internacionalizados compostos por fundações – sobretudo norte-americanas - ONGs e organismos das Nações Unidas. Multiplicam-se encontros, articulações, financiamentos para projetos de capacitação e promoção do trabalho voluntário. E muito mais às vésperas de 2001, que foi escolhido pela ONU como o Ano do Voluntariado.


Essas questões caem, no Brasil, em terreno de fertilidade incerta. Não é à toa que estudos e documentos sempre têm a necessidade de definir, afinal de contas, de que estamos falando. As idéias de voluntariado e doações nos remetem para o vasto campo de práticas abaixo da linha d'água, das formas de sociabilidade marcadas pela pessoalização, dos laços de solidariedade e variadas redes comunicativas e de reciprocidade às quais correspondem obrigações diversas - como se sabe terrenos, por aqui, significativos na composição do tecido social e particularmente frágeis quanto a componentes cívicos. Atravessamos fronteiras pouco nítidas entre o religioso e o secular, entre o público e o privado, onde tudo indica que as idéias associadas a esses termos tendem a se distanciar dos processos de individualização, enquanto atividades de "talentos" autônomos, qualificadas e instrumentais para atingir objetivos cívicos baseadas em padrões de qualidade dos resultados. Mas chegando mais perto das propostas modernizadoras acima, doações e voluntariado remetem também ao amplo universo de organizações privadas voltadas para a ação social, parte dele recente e permeado pelos valores e práticas relacionados à lógica de direitos e cidadania, representando papéis significativos no cenário político e social do país. É quando inclusive o jogo de enquadramentos chega até as práticas socialmente definidas como "militância", também rebatizadas: conforme se diz em um trabalho da ABRINQ (associação de fabricantes de brinquedos), pioneira na ação social empresarial, "Em síntese, acreditamos que o voluntário esclarecido trabalhe como um militante(...) Por que então não ver o voluntário de hoje também como um militante?" (Voluntários - Programa de Estímulo ao Trabalho Voluntário no Brasil, Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, 1996).


Observe-se que, se não há tanta discussão envolvendo as doações individuais - essa tem-se dado sobretudo com relação a iniciativas do setor empresarial - os que fazem trabalhos voluntários, como se verá adiante, caracterizam-se por também realizarem doações, ou donativos, termo mais usual e que evoca o mundo da caridade e do dom.


Em resumo e como se vê, um passeio por determinados canais onde a "doação de tempo e dinheiro" tem sido colocada na agenda, leva a questões clássicas como a das vicissitudes brasileiras nos encontros e desencontros, superposições ou combinações entre as lógicas da cultura cívica e a de relações tradicionais, da igualdade e da hierarquia, ou como se queira - questões colocadas, nesse caso, no quadro de um projeto que, como tantos outros, pretende uma conversão de consciências e práticas.


No entanto, não há dados que permitam conhecer os significados - e o alcance do reconhecimento social - que assumem os termos "doação" e "voluntariado", no Brasil. E nesse sentido, como não poderia deixar de ser, seria inevitável passar pela história de iniciativas governamentais. O último programa de estímulo ao voluntariado, anterior ao implantado no atual governo, durou de 79 até os inícios dos anos 90: o PRONAV - Programa Nacional do Voluntariado da LBA (Legião Brasileira de Assistência). Esse atuava através de Núcleos do Voluntariado, e um relatório de 1987 nos informa que estavam então funcionando no país 1040 Núcleos de Voluntariado e 5454 grupos de voluntários, dedicados à "promoção social das populações carentes, procurando alcançar não só o equacionamento, mas a redução dos problemas sociais". Fazia também parte do programa a criação de campanhas de doação variadas, incluindo o eterno modelo "adoção" (onde o nordeste era questão importante, chegando a provocar projetos originais como o "Adote uma Viúva da Seca"). A presidência de honra do PRONAV cabia à Primeira Dama do país e sua estrutura era centralizada (vale dizer, diferentemente da dos Centros de Referência atual, que são organizações autônomas formadas por entidades da sociedade civil), com as primeiras damas dos estados assumindo as funções de Coordenadoras Estaduais e as mulheres dos prefeitos a de Coordenação Municipal, no clássico modelo de facilitação do clientelismo e da assistência por mulheres da elite. Mas como funcionavam esses núcleos e grupos? O que aconteceu com esses ditos milhares de voluntários, uma vez extinto o programa? Sem poder responder a essas perguntas, cabe no entanto observar que uma iniciativa governamental tão longa e generalizada não pode ter passado em branco, em termos de marcar representações sobre o "voluntariado" e as "doações", no país.


Bem, mas em que pesem passadas e presentes interpretações, enquadramentos e apropriações, nesse terreno o brasileiro, no entanto, se move.


Quantos são os que fazem doações (ou donativos, como incluímos na pergunta) e trabalhos voluntários no país?


No Brasil,[1] 50% das pessoas fazem doações em dinheiro ou bens para instituições - 21% doam dinheiro e 29%, apenas bens (esses, na sua grande parte, alimentos).


São 44.200.000 indivíduos, ou o equivalente à população da África do Sul. Se somarmos a esses os que fazem doações apenas para pessoas, diretamente (sem passar por instituições), chegamos a quase 80%, perto de 70.000.000 - 4 entre cinco indivíduos adultos doa algo para alguma entidade ou alguém, em algum momento. Isso, levando-se em conta que a amostra incluiu pessoas com mais de 18 anos e que vivem em cidades com mais de 10.000 habitantes, em todo o país.


E quantos realizam "trabalho voluntário, ou seja, atividades que as pessoas fazem de graça para ajudar instituições ou pessoas que não sejam parentes e amigos", conforme se perguntou no questionário? São 22,6% os que doam alguma parte que seja do seu tempo para ações de "ajuda" a alguma entidade ou pessoa fora de suas relações mais próximas. Dessas, as que fazem voluntariado apenas em instituições são 16%, ou 13.905.532 pessoas, com uma média de 6 horas mensais.


Quanto às doações: que volume é doado? Os 21% que doam dinheiro, acumularam a cerca de R$1.703.000.000 em doações. O valor médio da doação individual é de R$ 158,00 por ano (esses valores são da época em que o real se equiparava nominalmente ao dólar).


Isso é muito, isso é pouco? É valor insignificante, se colocado por exemplo ao lado do que se arrecada no campeão Estados Unidos, a partir das doações que são feitas por quase 70% da população adulta - U$ 111 bilhões, com valor médio de U$ 1.017,00 anual por doação. É menor, também, (mas não tanto) do que os dados que se conhecem para outros países desenvolvidos na maioria dos quais, diga-se de passagem, há incentivos fiscais para doações individuais, benefício que foi suprimido recentemente no Brasil (mas que, também, pouco se teve o costume de usar). Esses confrontos de quantidades, no entanto, a pouco levam se os números não forem analisados dentro de seu contexto. No caso do Brasil, considerando fatores como o grau de pobreza existente, a debilidade da cultura associativista ou da participação institucional, a quantidade de pessoas e as doações realizadas parecem significativas. Outra possibilidade de analisar o significado material dessas doações individuais é medir seu peso pelo lado das instituições que as recebem. Uma pesquisa sobre as fontes de recursos para o enorme conjunto das organizações registradas como sem fins lucrativos revelou que as doações de indivíduos são responsáveis por 14% do financiamento total do "setor" (as empresas doam 3,2%, o governo participa com 14,5% e 68% de recursos vêm de receitas próprias - proporções que estão na média para a América Latina, segundo dados da mesma pesquisa).


Quanto à distribuição, o padrão brasileiro não foge ao também encontrado em outros contextos: uma enorme quantidade de pequenas doações - 65% dentre elas é de menos de R$ 100,00 anuais, sendo que 41% doa menos que R$ 20,00 por ano. O pessoal doa pouco, mas doa. As grandes doações - acima de R$ 500,00 - somam apenas 4% dos casos. A desigualdade econômica parece estar refletida também na enorme desigualdade de faixas de quantidades doadas: essas 4% de pessoas que fazem "grandes" doações são responsáveis, no entanto, por 56% do volume total das doações.


Para que tipo de instituição são feitas as doações? Considerando-se o total do volume de recursos doados, 50% vai para as instituições religiosas (igrejas, paróquias, locais de culto - através das quais fazem-se também trabalhos sociais) e 46% para as de assistência social (consideradas como tal instituições dedicadas a práticas assistenciais diversas, como creches, abrigos, orfanatos, atendimento a população que vive na rua etc.). Apenas 2,8% da quantidade doada destina-se a outras instituições (de saúde, educação, defesa de direitos, ação comunitária). Observe-se que, apesar de mobilizarem doações de maior vulto, as instituições religiosas caem em representação proporcional, caso se considere não o volume de dinheiro, mas o número de doadores: dentre esses, são 36% os que escolhem doar através de espaços religiosos, subindo para 50% a proporção das pessoas que preferem fazer doações para entidades assistenciais.


Quem são esses milhões de doadores de bens ou dinheiro para instituições? Idade, renda, nível educacional e religião são fatores que contam na propensão das pessoas a realizarem doações.


Idade. Se você passou dos 40, está na faixa dos que mais se predispõem a fazer donativos (em dinheiro, porque no caso dos bens a idade não influi). A média de idade dos que fazem doações em dinheiro para instituições é de 44 anos. Mais da metade dentre eles (55%) estão acima dos 45 anos.


É claro que a idade está relacionada ao nível sócio-econômico, que inclui por sua parte renda e educação.


Educação. Quanto maior a escolaridade, mais propensão têm os indivíduos para fazer donativos tanto em dinheiro, como em bens. Os que doam para instituições têm uma média de escolaridade de 6 anos de estudo, ao passo que os que não fazem doações têm 4,3 anos, em média - estando todos, vale observar, na faixa de escolaridade que concentra a maior parte da população brasileira (35% da população acima de 10 anos está na faixa entre 4 e 7 anos de estudo).


Renda. Nenhuma surpresa: a renda tem a ver com a probabilidade de doar, havendo diferenças significativas nas médias de renda familiar entre as pessoas que doam dinheiro, doam bens e não fazem doações: respectivamente, 7,4 salários mínimos, 5,2 e 3,7 salários. Em termos de quantidade, 49% da população adulta de renda familiar acima de 20 salários mínimos doa dinheiro para instituições, proporção que vai diminuindo conforme se ganha menos.


No entanto, outra leitura dos dados traz algo que dá o que pensar: entre mais pobres - e bota pobre nisso - há quem abra mão de alguma parte do que têm para fazer donativos. Cerca de 8% das pessoas que recebem até um salário mínimo fazem doações em dinheiro. Mais que isso, entre as pessoas que têm renda familiar entre um e dois salários, 13% doam dinheiro para instituições (sendo que aí a proporção dos que doam bens - 26% - é idêntica à dos que possuem mais de 20 salários). É muita gente. Qual a proporção de sua renda da qual abrem mão? Nada menos do que 3,6% do que possuem - uma proporção muito maior, é claro, do que a observada quanto aos mais ricos: para os que recebem acima de 20 salários, a quantidade doada representa apenas 0,8% da sua renda.


O que significa essa "generosidade" dos mais pobres? Óbvio que qualquer pequena doação vai representar uma proporção mais alta, em uma renda muito baixa. Mas também não deixa de fazer mais falta no orçamento, diz igualmente o senso comum. Estamos aí certamente às voltas com diferentes orçamentos e suas prioridades. Pode-se pensar que estão em jogo formas de sociabilidade e redes de reciprocidade específicas da vida e sobrevivência quotidiana de determinadas camadas da população. Um indicador é claro, a partir dos nossos resultados: os mais pobres escolhem doar, em sua maioria, através de igrejas ou centros religiosos. Dentre os que têm até 2 salários mínimos, 64% faz doações em dinheiro para estas instituições, contra 36% do total dos doadores que o fazem através de espaços religiosos, no país.


Religião. Ter religião, mas não praticar, pouca diferença faz na propensão a fazer donativos para instituições. Mas conta, e muito, a prática religiosa efetiva: quanto maior a frequência a cultos religiosos, maior a propensão a se fazerem doações, tanto em bens como em dinheiro. Assim, 53,3% dos que frequentam cultos religiosos ao menos uma vez por semana fazem doações, proporção que vai decrescendo até os que participam de cultos algumas vezes por ano: apenas 39% dentre esses doa algo, para instituições.


Mas nem todas as religiões são igualmente dadivosas: os espíritas kardecitas, com sua doutrina em que a caridade ocupa posição central, são os mais propensos a fazer doações para instituições, tanto em dinheiro como em bens.. E a maior parte dessas doações vai para entidades dedicadas à assistência social, e não aos centros religiosos (se bem que, no caso, estudos têm demonstrado as vicissitudes envolvidas na separação entre as práticas desses dois domínios, quando se trata particularmente dessa tradição religiosa). Esses resultado são coerentes com os de pesquisas revelando que os espiritismo, se comparado a outras religiões, tem maior proporção de adeptos com mais alta escolaridade e nível de renda. Católicos e evangélicos praticamente se igualam nas doações de dinheiro embora, como era de se prever a partir do dízimo e de outras obrigações peculiares às denominações evangélicas, esses últimos doam mais para os espaços religiosos: 65% (enquanto que entre os católicos, apenas 38% dos que doam o fazem para a igreja).


Finalmente, ainda quanto à questão do perfil dos doadores, padrões gerais parecem repetir-se, a julgar por comparações internacionais. Tomando-se países de tradições diferentes - por exemplo França e Estados Unidos - a relação entre propensão para doar e a frequência religiosa se repete, assim como a maior proporção de renda doada pelos que menos recebem e, igualmente, a maior frequência de doações para instituições religiosas nesses segmentos. No entanto, para maiores análises, evitem-se comparações indevidas: certamente o campo religioso assume posições e tem histórias diversas em cada sociedade, assim como o significado e as consequências da participação e pertencimento religiosos. Assim como as faixas de menor renda da população, em países diversos, expressam diferentes "pobrezas".


O voluntariado. Quanto aos menos numerosos que fazem trabalhos voluntários, o perfil não é exatamente o mesmo.


Coincidem com os que fazem doações materiais apenas quanto aos tipos de instituição que se escolhem para ajudar: também nesse caso, são as instituições religiosas e de assistência social as que monopolizam a quase totalidade dos voluntários: 57% e 17% respectivamente, totalizando portanto 74% dentre eles. O restante é distribuído em pequenas porções entre as áreas de saúde, educação, defesa de direitos e ação comunitária. Não deixa de ser significativa, no entanto, a proporção de pessoas que declara fazer trabalho voluntário nessas duas últimas áreas: 8%. É o terreno das organizações mais recentes na história do país, permeadas pela questão da construção de práticas e valores ligados à cidadania (como as chamadas ONGs), as quais inclusive são significativamente menos numerosas do que as entidades filantrópicas, ou assistenciais mais tradicionais - embora tenham um papel político e social nada desprezível.


O que fazem? Mais da metade, 53%, prestam serviços de limpeza e infra-estrutura (obras, consertos etc.); outros 15% trabalham para levantar recursos (como quermesses, campanhas, bazares) e 14% fazem atividades religiosas. Os demais se distribuem em funções de ensino e treinamento; apoio psicológico e aconselhamento; cuidados pessoais, serviços profissionais em geral, entre outros.


Qual o perfil dessas pessoas? A não ser pela influência da participação religiosa, em tudo mais o perfil do voluntário é o do brasileiro médio, do cidadão comum. Pode ser eu, você, o vizinho... Pessoas de diversas idades, rendas, níveis educacionais e religiões se oferecem para doar seu tempo - nenhuma dessas variáveis demonstrou ser significativa na diferença entre pessoas que fazem ou não fazem o trabalho voluntário.


Feita a regressão logística, somente duas variáveis mostraram ser significativas: frequência a culto religioso e doação de bens e dinheiro. Ou seja, no segundo caso, quem faz trabalho voluntário tem maior propensão a fazer doações, ou vice-versa.


E também há um aumento contínuo na proporção de pessoas que exercem trabalhos voluntários, conforme cresce a sua frequência a cultos religiosos. Se, dentre os que fequentam cultos mais de uma vez por semana, 27,8% doa algum tempo de trabalho voluntário, entre os que afirmaram frequentar somente algumas vezes por ano apenas 6,6% fazem trabalho voluntário. E apenas 1,4% trabalhou voluntariamente entre os que afirmaram não participar de cultos religiosos.


Portanto, como se disse, o voluntário é o cidadão comum brasileiro, sendo os mais propensos a doar seu tempo aqueles que têm uma prática religiosa frequente. Segundo pesquisas em outros países, um fator que conta, na tendência das pessoas a doarem seu tempo, é o pertencimento a associações ou a determinadas redes de sociabilidade - o que, a não ser com relação aos espaços religiosos, não se chegou a medir nessa pesquisa.


Chamados a dar opinião a respeito do assunto, os entrevistados revelaram que predomina largamente uma visão positiva tanto do ato de fazer doações, como da ajuda não remunerada, independentemente de as realizarem ou não.


Em uma observação geral sobre as repostas, pode-se dizer que coexistem duas lógicas, nas percepções quanto aos motivos para doar bens ou dinheiro. Por um lado, houve o mais alto grau de concordância com relação às asserções referidas ao domínio da reciprocidade e da obrigação moral e religiosa, assim como a formas integradoras de sociabilidade. São as do tipo "fazer doações a pessoas mais necessitadas é uma forma de retribuir as oportunidades que se teve na vida", assim como "fazer caridade através de doações" - ou "me dedicar a atividades sem pagamento para ajudar os outros" - "faz parte de minha crença religiosa", ou ainda "uma vantagem de colaborar em instituições é poder encontrar e conhecer pessoas". Mas a mesma proporção de concordância mereceram as afirmações que remetem a ideários de participação cidadã e resultados para sociedade, como "todo cidadão deve doar algo para melhorar a sociedade", ou "o trabalho voluntário faz parte da cidadania e ajuda a construir uma sociedade melhor". São lógicas que coexistem na percepção tanto dos que declararam doar tempo e dinheiro, como dos que afirmaram não doar.


E nada disso é contraditório tampouco, na cabeça dos entrevistados, com o a idéia de que cabe ao governo "assumir as suas responsabilidades", ou "cumprir o seu dever", nessa área de carências sociais. Por um lado, é importante que as pessoas façam, por diversos motivos; por outro lado, o Estado deve fazer. Portanto, não se deixa de reafirmar a cultura "estatizante" brasileira - ou uma reação à ainda maior precarização das políticas sociais em tempos presentes. De fato essas concepções convivem historicamente no Brasil, quanto à ação social, com os valores associados à caridade pessoalizada ou outros análogos, vistos como pertencentes ao domínio do privado. Essas duas faces da medalha - Estado ou caridade - deixaram pouco espaço para o reconhecimento de uma ação "privada, porém pública" nesse campo, conforme modelos anglo-saxões. Isso só recentemente vem se afirmando, como revelam também as idéias "cidadãs" acima.


É nesse terreno de ações - ao que parece, quantitativamente significativo e bastante relacionado ao mundo das religiões e da assistência social - que se inserem as novas invenções da doação e do voluntariado.


Finalmente, para não esquecer outra fonte de reconhecimento, no Brasil o sentido estabelecido dessas palavras estaria mais perto da guerra do que da paz, das conotações jurídicas do que das relacionais, dos órgãos de segurança pública do que da sociedade civil. Segundo o Aurélio, doação, além de ser o ato de doar ou aquilo que se doou, é "documento que legaliza a doação. Doação inoficiosa. Jur. Aquela que excede a legítima mais a metade disponível", e ponto. Já voluntário, além de ser o que age espontaneamente e o derivado da vontade própria, em que não há coação, é também "Aquele que se alista nas forças armadas (...) Voluntário da Pátria. Bras. Cada um dos integrantes dos Voluntários da Pátria, batalhões organizados, em 1865, para suprir a necessidade de homens nas tropas brasileiras então empenhadas na Guerra do Paraguai". Mas há mais uma acepção da palavra voluntário: "Bras, RS. Diz-se do cavalo que marcha espontaneamente, com facilidade, sem ser preciso fustigá-lo". (Aurélio Buarque de Hollanda, Dicionário da Língua Portuguesa).


Os significados dessas práticas que, segundo os números encontrados, são bastante generalizadas no país, estão na berlinda.



*Artigo publicado na revista Insight - Inteligência, outubro/novembro/dezembro de 2000. Trechos extraídos do livro "Doações e Trabalho Voluntário no Brasil - uma Pesquisa", de Leilah landim e Maria Celi Scalon, Rio de Janeiro, Ed. Sette Letras, 2000


(1) Os dados apresentados são resultado do survey nacional encomendado pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião) ao IBOPE e realizado em maio de 1998. Este survey é parte da pesquisa sobre educação e trabalho voluntário coordenada por Leilah Landim.

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