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A segunda chegada de Colombo

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

No século XV, a Igreja e as monarquias européias estabeleceram os fundamentos jurídicos e morais para a colonização e o extermínio de povos não-europeus na América através de cartas, patentes ou bulas papais. Quinhentos anos depois de Colombo, uma versão secular desse projeto de colonização tem continuidade através de patentes e direitos de propriedade intelectual.

Vandana Shiva*

Em 17 de abril de 1492, a rainha Isabel e o rei Fernando concederam a Cristovão Colombo os privilégios de “descoberta e conquista”. Um ano depois, em 4 de maio de 1493, o papa Alexandre VI, através da sua “Bula da Doação” cedeu todas as ilhas e territórios “descobertos e ainda por descobrir, cem léguas a oeste e ao sul dos Açores em direção à Índia”, e ainda não ocupadas ou pretendidas por qualquer rei ou príncipe cristão até o Natal de 1492, aos monarcas católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Como afirmou Walter Ullman em Papismo medieval:


“O Papa como o vigário de Deus comandava o mundo, como se ele fosse um instrumento em suas mãos; o Papa, apoiado pelos canonistas, considerou o mundo como sua propriedade para dispor dela de acordo com sua vontade”.


Cartas e patentes transformaram, desta forma, atos de pirataria em vontade divina. Os povos e nações que eram colonizados não pertenciam ao Papa que os “doou”, ainda que esta jurisprudência canônica fizesse dos monarcas cristãos da Europa senhores de todas as nações, “onde quer que elas pudessem ser encontradas e quaisquer que fossem as crenças que elas professassem”. O princípio da “ocupação efetiva” por príncipes cristãos, a “não-ocupação” das terras visadas e o “dever” de incorporar os “selvagens” eram componentes das cartas e patentes.


A Bula Papal, a carta de Colombo e as patentes oferecidas pelos monarcas europeus estabeleceram os fundamentos jurídicos e morais para a colonização e o extermínio de povos não-europeus. A população nativa americana declinou de 72 milhões em 1492 para menos de 4 milhões poucos séculos depois.


Novos fundamentos da colonização


Cinco séculos depois de Colombo, uma versão mais secular do mesmo projeto de colonização tem continuidade através de patentes e direitos de propriedade intelectual. A Bula Papal foi substituída pelo tratado do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT em inglês). O princípio da ocupação efetiva por príncipes cristãos foi substituído pela ocupação efetiva pelas corporações transnacionais apoiadas pelos dominadores modernos. A não-ocupação das terras visadas foi substituída pela não-ocupação das formas de vida visadas e espécies manipuladas pelas novas biotecnologias. O dever de incorporar selvagens na cristandade foi substituído pelo dever de incorporar as economias locais e nacionais no mercado global e de incorporar sistemas de conhecimento não-ocidentais no reducionismo da ciência e da tecnologia ocidentais comercializadas.


A criação da propriedade através da pirataria das riquezas dos outros permanece a mesma que há 500 anos atrás.


A liberdade que as corporações transnacionais estão reclamando através da proteção aos direitos de propriedade intelectual nos acordos do GATT relativos aos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPs em inglês) é a liberdade que os colonizadores europeus têm reclamado desde 1492. Colombo estabeleceu um precedente quando ele tratou a licença para conquistar os povos não-europeus como um direito natural dos homens europeus. Os títulos de terras oferecidos pelo papa através dos reis e rainhas europeus foram as primeiras patentes. A liberdade do colonizador foi construída através da escravidão e subjugação dos povos com direitos originais à terra. Esta apropriação violenta foi tornada “natural” definindo-se o povo colonizado como natureza, negando-lhes então sua humanidade e liberdade.


O texto de John Locke sobre a propriedade (os Dois tratados sobre o governo) efetivamente legitimou este processo de saque e roubo durante o movimento dos cercamentos das terras comunitárias feudais na Europa. Locke claramente articulou a liberdade do capitalismo para construir à liberdade para roubar; cria-se propriedade removendo recursos da natureza e misturando-os com trabalho. Este “trabalho” não é físico, mas trabalho em sua forma “espiritual”, como manifesta no controle do capital. De acordo com Locke, apenas aqueles que possuíam capital têm o direito natural de possuir recursos naturais, um direito que supera os direitos comuns dos outros. O capital é assim definido como uma fonte de liberdade que, ao mesmo tempo, nega a liberdade à terra, florestas, rios e biodiversidade que o capital afirma como seus e a outros cujos direitos são baseados no seu trabalho. A devolução da propriedade privada ao povo comum é percebida como expropriação pelos detentores do capital da liberdade. Assim, camponeses e povos tribais que reivindicam o retorno de seus direitos e acesso aos recursos são vistos como ladrões.


Propriedade intelectual e pirataria


Estas noções eurocêntricas de propriedade e pirataria são nas bases sobre as quais as leis sobre Direitos de Propriedade Intelectual do GATT e da Organização Mundial do Comércio foram formuladas. Quando os europeus primeiro colonizaram o mundo não-europeu, eles sentiram que era seu dever “descobrir e conquistar”, “subordinar, ocupar e tomar posse”. Parece que os poderes ocidentais ainda são conduzidos pelo impulso colonizador para descobrir, conquistar, apropriar-se e tomar posse de tudo, de cada sociedade, de cada cultura. As colônias foram agora estendidas ao espaço interior, os “códigos genéticos” das formas de vida, dos micróbios e plantas aos animais, incluindo humanos.


John Moore, um paciente de câncer, teve as linhagens de suas células patenteadas por seu próprio médico. Em 1996, Myriad Pharmaceuticals, uma companhia com base nos Estados Unidos, patenteou o gene do câncer do seio nas mulheres para obter um monopólio sobre diagnósticos e testes. As linhagens de células dos Hagahai da Papua Nova Guiné e dos Guami do Panamá foram patenteadas pela Secretaria de Comércio dos Estados Unidos.


O desenvolvimento e troca naturais de conhecimentos foi, de fato, criminalizado pelo Ato de Espionagem Econômica de 1996, que se tornou uma lei norte-americana em 17 de setembro e dá poderes às agências de inteligência daquele país para investigar as atividades normais dos povos pelo mundo afora. O Ato considera os direitos de propriedade intelectual das corporações norte-americanas como vitais à segurança nacional.


A presunção de terras vazias, terra nullius, está agora sendo estendida à “vida vazia”, sementes e plantas medicinais. A apropriação de recursos nativos durante a colonização foi justificada com base em que os povos indígenas não “desenvolviam” sua terra. Como John Winthrop escreveu em 1869:


“Os nativos na Nova Inglaterra não cercavam terras, nem estabeleciam casas ou domesticavam gado para desenvolverem a terra; por si eles apenas tinham um direito natural nestes países. Na medida em que nós deixemos o suficiente para o seu uso, nós podemos legalmente tomar o resto” (citado por Djelal Kadir, Columbus and the Ends of the Earth, Berkeley: University of California Press, 1992, p. 171).


A mesma lógica é agora utilizada para tomar a biodiversidade de seus proprietários originais e criadores, definindo suas sementes, plantas medicinais e conhecimentos médicos como natureza, como não-ciência, e tratando os instrumentos da engenharia genética como porretes do “desenvolvimento”. A definição do cristianismo como a única religião e todas as outras crenças e cosmologias como primitivas encontra seu paralelo na definição da ciência comercializada do Ocidente como a única ciência, e todos os outros sistemas de conhecimento como primitivos.


Direito natural das corporações


500 anos atrás era o bastante ser uma cultura não-cristã para perder todas suas posses e direitos. 500 anos depois de Colombo, é o bastante ser uma cultura não-ocidental com uma visão de mundo distinta e sistemas de conhecimento diversos para perder todas estas posses e direitos. A humanidade dos outros foi encoberta neles e seu intelecto está sendo encoberto agora. Territórios conquistados foram tratados como despovoados pelas patentes dos séculos XV e XVI. Pessoas foram naturalizadas como “nossos súditos”. Na seqüência desta conquista através da naturalização, a biodiversidade está sendo definida como natureza – as contribuições culturais e intelectuais dos sistemas de conhecimento não-ocidentais estão sendo sistematicamente erodidas.


As patentes de hoje são uma continuidade daquelas oferecidas a Colombo, Sir John Cabot, Sir Humphery Gilbert e Sir Walter Raleigh. Os conflitos que foram desencadeados pelos tratados do GATT, pelo patenteamento de formas de vida, pelo patenteamento de conhecimentos indígenas e pela engenharia genética estão enraizados em processos que podem ser resumidos e simbolizados como a segunda chegada de Colombo.


No coração da “descoberta” de Colombo estava o tratamento da pirataria como um direito natural do colonizador, necessário para o benefício do colonizado. No coração do tratado do GATT e de suas leis de patentes está o tratamento da biopirataria como um direito natural das corporações ocidentais, necessário para o “desenvolvimento” das comunidades do Terceiro Mundo.


A biopirataria é a “descoberta” de Colombo 500 anos depois de Colombo. As patentes ainda são o meio para legitimar e proteger esta pirataria das riquezas dos povos não-europeus como se fosse um direito das potências ocidentais.


Através de patentes e da engenharia genética, novas colônias estão sendo estabelecidas. A terra, os rios, os oceanos e a atmosfera foram todas colonizadas, erodidas e poluídas. O capital tem agora que procurar por novas colônias para invadir e explorar na sua acumulação. Estas novas colônias estão, na minha opinião, nos espaços interiores dos corpos das mulheres, plantas e animais. Resistir à biopirataria é resistir à própria colonização final – do futuro da evolução bem como do futuro das tradições não-ocidentais relacionadas com a natureza e seu conhecimento. É uma luta para proteger a liberdade de culturas diversas evoluírem. É uma luta para conservar tanto a biodiverdidade cultural como a biológica.


*Vandana Shiva é física, filósofa,autora de inúmeras obras e uma destacada ativista do movimento ecológico.


Fórum Social Mundial 2001


Biblioteca das Alternativas


Capítulo introdutório do livro de Vandana Shiva, Biopiracy: the plunder of nature and knowledge, Boston (MA): South End Press, 1997. Texto publicado no Brasil no jornal Em Tempo.

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