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Os corpos falantes da Babilônia e do Chapéu Mangueira

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

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No dia 31 de dezembro de 1999 e em 1º de janeiro de 2000 o cineasta Eduardo Coutinho esteve com sua equipe em duas favelas cariocas - Babilônia e Chapéu Mangueira - para documentar as expectativas das pessoas dessas comunidades para o ano que se iniciava. No Reveillon de 2001 - entrada do novo milênio - Coutinho voltou a subir o morro, desta vez para a pré-estréia do filme Babilônia 2000. O cineasta conversou com a Rets sobre a realidade que reproduziu no seu trabalho, sua visão da favela e os sonhos das pessoas destas comunidades que, segundo ele, "falam com os corpos".


Rets - Você fez o filme "Santa Marta" em 1986, na favela Dona Marta. Em 1999, fez o Babilônia 2000 no Morro da Babilônia e na favela do Chapéu Mangueira. O que mudou nos morros cariocas nesses 13 anos?


Eduardo Coutinho - A mudança na favela daquele tempo pra cá é o domínio do tráfico. Em 86, havia espaço para a participação popular nas associações de moradores. Isso acabou, e é uma tragédia. Hoje o tráfico domina o morro. No caso do Babilônia, eu filmei numa época favorável - o final do ano. Os traficantes "entram em férias", então não vi o tráfico ostensivo, não vi armas. Mas a diferença entre aquela época e hoje é evidente. Outra diferença é que em 86 havia mais esperança entre a população por causa do Plano Cruzado. Era o auge do plano e o Sarney tinha um estilo populista. Hoje, as pessoas estão desesperançadas quanto às instituições, há muito pouca esperança no Brasil, nos governos e eles nem vêem perspectivas. O essencial é que a esperança privada deles ainda é muito grande - na vida, na criação dos filhos. O que eles têm é isso: o corpo, o filho, a família - valores que já não existem na classe média. Outra coisa que percebi é que a família popular não existe sem a mulher, quem dá a estrutura da família é a figura feminina. Ou elas vivem sozinhas, ou ganham mais do que os maridos. Além disso, no filme, quem fala são elas.


Rets - Na sua opinião, como o cinema pode ajudar na construção da cidadania entre estas populações?


Eduardo Coutinho - Fora experiências pontuais, o cinema não pode fazer muito. O tipo de filme que eu faço contribui muito mais para que as pessoas de fora confrontem seus estigmas a respeito das favelas. Em todo trabalho antropológico ou estético, o essencial é a sua repercussão fora da comunidade. Se o trabalho desperta o interesse fora da favela, é muito mais importante do que eles próprios, da comunidade, se verem. É fato que ninguém vai deixar de ser racista - um filme não muda ninguém dessa forma. Mas as pessoas podem passar a pensar mais, a refletir sobre o que viram a partir do filme. A vida deles na favela - apesar da violência - não é um inferno. E isso, o filme mostra.


Rets - Você afirma que não acredita que os documentários possam mudar a vida nestas comunidades, e diz que está atrás de boas histórias, apenas. Você acredita que as boas histórias que você conta possa mudar a realidade do público que assiste aos seus filmes?


Eduardo Coutinho - Se for uma boa história que sugira o que é o Brasil....eu tento fazer histórias que transcendam o nível paroquial, tocando em temas universais, visualizando o que é o Brasil. Um filme tem pouco poder frente ao bombardeio de imagens da TV. Eu acho que ninguém aprende nada, as pessoas só reconhecem o que já sabem. Mas o filme pode deixar no público a marca da riqueza do imaginário das populações da favela, que é muito mais intensa que a da classe média (a escassez faz isso, deixa as pessoas mais livres para falar para a câmera). A partir dessas imagens que ficam, cada um faz o que pode. O cinema é democrático e cada um vai interpretar a mensagem dos filmes com as armas que tem. Acho que momentos, cenas, redes de personagens podem ficar nas pessoas de alguma forma. E, quem sabe, um dia, provocar uma mudança a partir da reflexão que suscitaram.


Rets - Você está muito familiarizado com o dia-a-dia da favela. Tem um canal aberto com as comunidades. O que ainda o surpreende nelas?


Eduardo Coutinho - Sempre me surpreendo, porque não procuro o típico, mas o singular. Por exemplo: uma mulher conta sobre a morte do irmão. Antes da filmagem, ela já havia contado o episódio várias vezes, para a TV, por exemplo - sem se emocionar. Na hora de falar para a câmera, aquele discurso fica único, e ela falou com profunda emoção. O corpo dela falou junto coma cabeça. Os corpos é que falam, não as cabeças. O discurso visceral, ainda que teatral, é essencial. Ali se consegue isso. No mundo popular há uma liberdade para falar do privado que é extraordinária.


Rets - Qual foi o principal desafio que você encontrou na realização do Babilônia 2000?


Eduardo Coutinho - A própria proposta do filme. Tive sete dias de preparação e um dia para filmar. Podia chover, podia haver mil contratempos. A pressa, a loucura, esse foi o maior desafio. Eu também descentralizei o poder entre a equipe - formei cinco equipes. Uma estava comigo e outras três ficaram inteiramente soltas. A pauta era: 31 de dezembro, 1º de janeiro. O resto era impulso. Foi uma experiência muito rica.


Rets - Como o Cecip (Centro de Criação e Imagem Popular) participou da produção?


Eduardo Coutinho - O Cecip entrou com uma máquina de edição eletrônica. O dinheiro para a produção foi todo doado pela Videofilmes, graças ao João Salles. Em dinheiro, eles investiram 120 mil reais - fora as máquinas que cederam. O filme custou entre 350 e 400 mil reais. O Cecip entrou como co-produtor, disponibilizou equipamento. A presença do Cecip no projeto é fundamental pelo apoio moral, institucional - é aqui que eu tenho o meu escritório, é aqui que trabalho há 18 anos.


Rets - Como o público recebeu a pré-estréia do Babilônia 2000, no dia 31 de dezembro passado?


Eduardo Coutinho - Eu não tinha ilusões. As pessoas estavam preocupadas com o Reveillon, e eu não esperava grande público. Choveu muito, a apresentação começou e foi interrompida várias vezes. De qualquer modo, foi muito bacana e eu pretendo montar um telão dentro de alguns meses, quando o Babilônia for lançado em vídeo. Vamos fazer uma projeção e ver o que acontece. As reações têm sido muito boas, depois da pré-estréia muitas das pessoas que apareceram no filme foram ao cinema para assistir.


Rets - Você retrata os sonhos e as esperanças das pessoas de duas comunidades - Babilônia e Chapéu Mangueira. Há um sonho comum a todos? Qual é a maior esperança dessas pessoas?


Eduardo Coutinho - Explicitamente, não há um sonho comum. Eu dispensei os discursos prontos, como "paz e amor para o ano 2000". O forte é que todos têm grandes esperanças em si mesmos - em enfrentar a vida e fazer algum sentido no mundo. Contra toda esperança, eles têm esperança. As pessoas negociam até morrer. Esse fato é inegável: é extraordinário como as pessoas negociam com a vida, negociam com a morte. Quanto mais impotente, mais a pessoa tenta negociar. Esse é o lado positivo. O lado sombrio disso tudo é a capacidade de adaptação que o homem tem. As pessoas se adaptam a qualquer coisa.


Rets - Você tem algum outro projeto engatilhado?


Eduardo Coutinho - Se eu tivesse dinheiro, gostaria de fazer um filme na periferia de São Paulo. A impressão que eu tenho de lá é que a população é mais fechada, e talvez fosse mais difícil encontrar pessoas eloquentes. Também gostaria de filmar numa pequena cidade do Nordeste. Mas faltam os recursos. O assunto não importa: quero ir lá e ver o cotidiano das pessoas.

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