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Crise da agricultura familiar em Roraima

Autor original: Flavia Mattar

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A primeira lei das terras, promulgada em 1850, e a própria escravidão não permitiram o acesso à propriedades rurais aos menos favorecidos. Nesta época, alguns escravos se voltaram contra esta situação e começaram a se organizar em movimentos por um pedaço de chão. Esses foram os primeiros trabalhadores rurais sem terra. No novo milênio, mais de 150 anos depois, a situação não é muito diferente. Continua havendo grandes extensões de terras nas mãos de poucos latifundiários, assim como continuam existindo movimentos que tentam modificar essa realidade. A Central dos Assentados de Roraima (CAR) tem justamente esse papel: foi uma organização criada para denunciar a situação difícil dos trabalhadores rurais do estado, assim como lutar pela melhoria de suas condições de vida. Entre os problemas apontados pelo presidente da instituição - José Garcia Ribeiro Lopes - em entrevista à Rets, estão a crise da agricultura familiar de Roraima, a falta de infra-estrutura para que esses trabalhadores continuem nas terras arrendadas e a corrupção do poder público.


Rets - Qual a importância do estado de Roraima para o Brasil em termos agrícolas?


José Lopes - Roraima é um estado totalmente dependente. Aqui não se produz o suficiente nem para o abastecimento interno, exceto arroz irrigado. O custo dos gêneros alimentícios é altíssimo. Acreditamos que Roraima possa se tornar um centro de produção de frutas tropicais, o clima e o solo são propícios, temos extensa áreas de lavrado. Estamos muito próximo de grandes centros consumidores como: Caribe, Venezuela, Guianas. O que falta é dimensionar o que podemos produzir e contribuir para reduzir os índices de miséria existentes em nosso estado e no Brasil. Está ocorrendo um momento crítico na agricultura familiar de Roraima.


Rets - O que é agricultura familiar?


José Lopes - São famílias de agricultores que vivem em pequenas parcelas de terra com área inferior a 100 hectares, localizadas em projetos de reforma agrária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O trabalho é realizado utilizando exclusivamente a força de trabalho da família. Mas não é uma produção para subsistência - uma vez que, geralmente, comercializam os produtos excedentes, tirando da terra toda a condição para sobreviver.


Rets - Roraima tem como base esse tipo de regime agrícola?


José Lopes - Temos em Roraima aproximadamente 18 mil famílias trabalhando em regime de agricultura familiar, localizadas nos 31 projetos de assentamento do Incra e nas áreas de colonização do Governo do Estado. Produzem arroz, milho, feijão, mandioca, banana e outras frutas para o consumo da família. Alguns utilizam o extrativismo e a pesca para sobreviver. Não há utilização de máquinas, equipamentos no processo produtivo. Suas comunidades são totalmente isoladas no período de inverno, ficando à mercê da malária e da falta de educação durante boa parte do ano. Os assentamentos e áreas de colonização não têm estrutura mínima para se morar e muito menos para se produzir.


Rets - Por que a agricultura familiar está passando por este momento crítico?


José Lopes - A falta de compromisso das autoridades. É preciso que haja determinação das autoridades para tornar as áreas de assentamentos e colonizações em grandes fazendas. É fundamental uma resolução para a falta de infa-estrutura básica para os agricultores continuarem no campo, entre outros exemplos. O Incra assentou várias famílias sem dar condição de continuarem trabalhando: não fez estrada, quando fez a estrada não agüentava um inverno, não tinha escola, nem saúde e muito menos transporte. Em vários casos pagou crédito para quem não devia, ou seja, para falsos colonos. Não selecionou corretamente os agricultores. Hoje, estão tentando identificar os lotes abandonados e fazer a reocupação dos mesmos. Esperamos que isto aconteça.


Rets - O que a CAR está fazendo para modificar essa situação?


José Lopes - Estamos tentando nos organizar para enfrentar essa realidade. Porém, a falta de consciência e organização dos agricultores é um entrave muito forte. Estamos atuando na questão dos lotes abandonados, discutido um modelo de assistência técnica para os assentamentos , aplicando a alfabetização de adultos, executando cursos de qualificação profissional e, por último, discutindo formas de produção e comercialização com os produtores.


Rets - A CAR conta com o apoio de alguma instituição para realizar essa tarefa?


José Lopes - Hoje, estamos tentando desenvolver algumas parcerias com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Roraima (FETAG/RR). Estamos discutindo um plano de atuação conjunto para os anos 2001 e 2002.


Rets - Tirar as terras do domínio da União e passá-las para o domínio estadual aliviaria essa situação? De que maneira?


José Lopes - Nós não queremos que o Estado de Roraima assuma todas as terras, nós queremos que o estado faça alguma coisa pela agricultura familiar. O que existe hoje é uma briga judicial entre a União, representada pelo Incra/RR, e o Governo do Estado, representado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado de Roraima (Iteraima). A discussão gira em torno da posse e utilização das terras sem que haja prejuízo para os agricultores. Em várias áreas de colonização não se faz nada justamente por causa do conflito criado. Não há infra-estrutua, os colonos abandonam os lotes e aí surgem grandes fazendas. O poder público aceita isto como normal. Há locais onde antes existiam várias famílias morando e trabalhando, uma pequena escola, sem estrada e meios de escoar a produção. Hoje estas terras foram transformadas em uma fazenda, com a escola fechada porque não há crianças para estudar.


Rets - Qual a posição de Roraima, no ranking brasileiro, em termos de quantidade de terra para a realização da reforma agrária?


José Lopes - Não sei precisar exatamente a posição no ranking brasileiro, mais Roraima tem hoje capacidade para assentar mais de 25 mil famílias numa área de 1.500.000 hectares, terras da União, fora das reservas indígenas e das reservas ambientais. Repito: Roraima tem hoje 18 mil famílias assentadas ocupando uma área de 1.700.000 hectares.


Rets - Como está sendo conduzida a reforma agrária em Roraima?


José Lopes - É conduzida com o jeitinho brasileiro. A turma de políticos que dava as ordens no Incra até outubro de 2.000 cometeu um monte de irregularidades, efetuou pagamentos de créditos a quem não devia, executou obras de estrada com preço superfaturado, não se preocupou com assistência técnica, jogou recursos públicos e a estrutura do Inca na mão de corruptos. Enfim, fez tudo que uma reforma agrária não merecia e os agricultores, desmobilizados e sem consciência política, deixaram as coisas acontecer. Hoje, estamos tentando correr atrás dos prejuízos. Atualmente é outro grupo político que está administrando o Inca - a turma do PSDB. Falam muito em parcerias e dizem que vão moralizar as atividades da instituição. Estamos esperando as ações, mas acreditamos que pouco possa mudar, uma vez que os funcionários não vão modificar a forma de agir.


Rets - A Região Amazônica é uma área que precisa ser explorada de uma forma consciente, visto que precisa ser preservada e não ter os seus recursos naturais esgotados. Como estão sendo conduzidos os assentamentos nessa região? Está sendo feito algum investimento em capacitação rural para a exploração dessa área?


José Lopes - Sabemos da preocupação internacional com a Amazônia, pela sua preservação. Somos conscientes da importância da preservação, mas entendemos que é possível desenvolver e sobreviver na Amazônia de forma racional sem acabar com os recursos naturais. É uma preocupação da Central dos Assentados de Roraima a questão da capacitação. O Incra e o Governo do Estado têm feito muito pouco neste sentido. Nós estamos com uma proposta conjunta com a CPT, CUT e FETAG para trabalharmos um projeto de capacitação que leve em consideração a sobrevivência na Amazônia e a preservação dos recursos naturais. Há alguns projetos em elaboração, enfim, estamos tentando viabilizar a consciência ecológica nos assentamentos.

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