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Ongs se manifestam contra ação americana junto à OMC.

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

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No começo de fevereiro, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras lançou uma nota, fazendo um apelo para que o governo dos Estados Unidos retire o pedido feito à Organização Mundial do Comércio (OMC), para que se instale um tribunal sobre a lei de patentes brasileira. Os Estados Unidos fizeram uma reclamação ante a OMC em Genebra, solicitando medidas que podem prejudicar o bem-sucedido programa brasileiro de combate à Aids, amplamente baseado na habilidade de o Brasil produzir tratamento a custos acessíveis. Em particular, os Estados Unidos estão se opondo ao sistema brasileiro de garantia de licenças compulsórias, um direito do governo de sobrepor-se às patentes em algumas circunstâncias. A política brasileira de patentes tem sido a chave para o sucesso das estratégias para oferecer acesso universal aos medicamentos para HIV/Aids no Brasil. Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, a queixa dos Estados Unidos ameaça a política brasileira para Aids, que inclui o fornecimento gratuito de medicamentos a pessoas infectadas pelo HIV. As vidas de centenas de milhares de pessoas dependem deste sistema. A Rets entrevistou o coordenador da MSF, Dirk Bogaert, para saber detalhes sobre esta situação e as possíveis consequências da ação norte-americana junto à OMC.


Rits - Qual é a queixa dos Estados Unidos junto à Organização Mundial do Comércio a respeito da Lei de Patentes Brasileira?


Dirk Bogaert - O Governo dos Estados Unidos alega que a Lei de Patentes Brasileira fere os regulamentos da Organização Mundial do Comércio, por permitir ao Governo Brasileiro suspender os efeitos de patentes e autorizar a fabricação ‘genérica’ caso o Governo avalie que houve abuso do poder econômico por parte do detentor da patente.


Rits - Como esta reclamação pode atingir o programa brasileiro de combate à Aids?


Dirk Bogaert - Esta reclamação faz parte da pressão americana para proteger os interesses da sua indústria farmacêutica, que através de patentes detém uma posição de monopólio no mercado dos remédios anti-retrovirais e de vários outros remédios utilizados no tratamento das doenças associadas à Aids.
O monopólio permite à industria manter os preços artificialmente altos, fora do alcance de governos de países como o Brasil, e fora do alcance da maioria da população mundial. Foi a produção paralela destes remédios nos laboratórios brasileiros que resultou em preços mais razoáveis, e possibilitou a disponibilização dos remédios para os pacientes brasileiros dentro do programa de combate à Aids.
Se a posição dos Estados Unidos for confirmada pela OMC, isso talvez não tenha efeitos imediatos para os remédios já disponíveis no Brasil, mas com certeza terá conseqüências seriíssimas para a produção de novos remédios.


Rits - Como o Brasil consegue produzir medicamentos a custo acessível?


Dirk Bogaert - O custo de produção é fator pouco importante no preço do remédio fixado pela indústria. A indústria farmacêutica alega ter custos mais altos por causa do investimento em pesquisa e desenvolvimento. Só que isso explica só uma pequena parte da diferença entre o custo de produção e o “custo de mercado”, e não a multiplicação por 5, por 10 ou mais como vemos agora. Uma outra alegação da indústria é o investimento na qualidade. Só que os fabricantes brasileiros também investem na qualidade – para alguns remédios, a produção brasileira até superou em vários aspectos testados a produção estrangeira.


Rits - Que repercussão esta ação americana contra a legislação brasileira pode ter, em âmbito internacional?


Dirk Bogaert - Na verdade, a repercussão internacional pode ser maior do que no Brasil: o exemplo do Brasil encorajou muitos governos a repensar o tratamento de pessoas vivendo com Aids. Antes, era quase um dogma que em países fora do primeiro mundo não era possível tratar os pacientes. Agora, eles viram que pode ser não só uma proposta viável, mas até uma proposta economicamente interessante: o investimento em tratamento dá um retorno na prevenção e nos custos de hospitalização. Só que isso precisa de preços acessíveis, e se os Estados Unidos conseguirem impedir o trabalho que é feito no Brasil, outros governos vão perder o ânimo e voltar a se conformar com uma realidade inaceitável.


Rits - Como o governo brasileiro está se posicionando frente a esta situação?


Dirk Bogaert - Acho que o governo mantém por enquanto uma posição muito correta, defendendo a Lei com firmeza. Me parece que eles sabem muito bem a importância desta questão, não só para o Brasil mas para os demais países.


Rits - Como as ongs brasileiras estão se articulando para impedir que o programa brasileiro de combate à Aids seja prejudicado?


Dirk Bogaert - Elas estão se reunindo nos seus fóruns e mobilizando os seus membros para criar um apoio forte da sociedade civil à posição do governo brasileiro. As ONGs estão também mobilizando os seus contatos em outros países para ampliar este apoio também internacionalmente.


Rits - Que organizações estão se mobilizando e qual a atuação da MSF neste movimento?


Dirk Bogaert - Os Médicos Sem Fronteiras estão trabalhando em muitos países onde os pacientes infelizmente ainda não têm acesso ao tratamento – imagine a frustração do nosso médico em Angola que vê morrer um paciente porque o remédio está caro demais, e que sabe que isso não é um fato inevitável, mas a conseqüência de uma política expressa de um laboratório internacional. No Brasil, a gente viu que há uma alternativa para esta situação, e estamos utilizando a visibilidade internacional que ganhamos através de nossas ações para ajudar a defender esta alternativa.


Rits - O que é a Campanha para Acesso a Medicamentos Essenciais?


Dirk Bogaert - Como já falamos, os nossos médicos e enfermeiros vêem cada vez mais que pacientes na maioria dos países não têm acesso a remédios adequados. Ou os remédios existem, mas ficam fora do alcance por causa de mau uso de posições de monopólio, ou os remédios nem existem porque a indústria farmacêutica tem mais interesse em desenvolver o próximo ‘Viagra’ do que um remédio para a doença do sono, por exemplo, que atinge pessoas sem recursos – quer dizer um “remédio que não tem mercado”. Trabalhamos com a opinião pública, com acadêmicos, com institutos de pesquisa, com governos, e – sim ! – com a indústria para primeiro todos saberem desta situação, e segundo cada um tentar contribuir para uma solução. Dedicamos o dinheiro que ganhamos com o Prêmio Nobel da Paz de 1999 inteiramente a esta causa.


Rits - Que alternativas o Brasil tem para continuar atendendo aos portadores do HIV com o nível de qualidade atual, se não puder mais produzir os medicamentos necessários a estes pacientes?


Dirk Bogaert - Há poucas alternativas – há outros países (Tailândia, Índia) investigando soluções parecidas, mas eles têm os mesmos problemas, as mesmas pressões do que o Brasil – e se o Brasil for condenado pela OMC, a posição dos outros países ficara ainda mais frágil. Uma alternativa seria a indústria farmacêutica baixar os preços até um nível razoável – só que apesar de todas as promessas, ela ainda está longe disso, e nunca tomará esta atitude sem a pressão no mercado de produção genérica como a brasileira.

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