Você está aqui

Prisão especial

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

Sueli Carneiro*


Cada vez que um destes sujeitos que a plebe rude costuma chamar de figurão cai nas garras da lei é que se tem a possibilidade de conhecer toda a positividade do direito brasileiro no resguardo da cidadania. É quando, em sua plenitude, estes direitos do cidadão são avocados. Por isto, o criminoso de colarinho branco tornou-se quase um agente de cidadania no Brasil, pois, por meio dele, aprendemos mais sobre os direitos assegurados aos detentores de plena cidadania em nossa sociedade, assim como também podemos melhor compreender as razões da subcidadania da maioria. Tudo de acordo com a lei.


Graças ao juiz Nicolau, estamos tendo a oportunidade de conhecer em maior profundidade um desses institutos legais: a prisão especial e, conseqüentemente, o seu destinatário, o preso especial.


Walter Ceneviva, em artigo na Folha de S. Paulo (20/01) sobre o tema da prisão especial e a devolução do juiz Nicolau dos Santos Neto à Polícia Federal, nos desafia com a seguinte questão, "Verifique, por favor, a situação de três profissionais: a de um juiz criminal, que condenou muitos delinqüentes; a de um policial civil ou militar, que teve atuação destacada na perseguição e prisão de criminosos; a de um promotor que brilhou no Tribunal do Júri, acusando autores de crimes de morte. (...) Agora me responda: o juiz, o policial ou o promotor devem ficar em cela comum, com os delinqüentes que condenaram, prenderam e acusaram, ou é razoável que, pelo menos no curso de seu processo, fiquem separados deles?"


O problema assim colocado me levou ao nocaute, fazendo-me ponderar que, de fato, considerando-se as condições do sistema carcerário do país, seria quase que decretar a pena de morte para estas pessoas colocá-las junto com aqueles por cuja prisão seriam responsáveis, e me vi obrigada a considerar a pertinência da prisão especial em certos casos e suspeitar que uma tendência paranóica incurável me impeliria a desconfiar destas situações especiais oferecidas a certos setores, vendo nelas, quase sempre, subterfúgios para a reprodução das desigualdades de tratamento correntes em nossa sociedade.


No entanto, um outro artigo dos magistrados Urbano Ruiz e Dyrceu Cintra, no mesmo dia e no mesmo jornal, desvaneceu o meu autodiagnóstico da síndrome da discriminação.


Ainda que concordando com Ceneviva que casos como aqueles por ele levantados seriam, sob certas circunstâncias, passíveis de tratamento diferenciado, estes magistrados advertem que, no entanto, "não foi tal singela exigência de separação que motivou o legislador". E de forma contundente afirmam que "o texto legal mal esconde o objetivo original de beneficiar pessoas de certos extratos sociais (diplomados em curso superior, pessoas de destaque na comunidade) ou ocupantes de alguns cargos (ministros, governadores, magistrados). Privilegiados, tal como os barões de antanho, seriam agora a burguesia e a classe média 'estudada'".
Então, se o problema em questão remonta aos tempos dos barões de antanho, é anterior à emergência dos presídios que conhecemos e está inscrito em nossa tradição cultural.


O historiador James William Goodwin Junior, no estudo "Império do Brasil: nesta nação nem todo mundo é cidadão", ilumina a compreensão da questão da cidadania no país. Tendo por objeto de análise os códigos de postura e da imprensa na cidade de Juiz de Fora, ele mostra como a "cidadania é balizada pela instituição da escravidão e insere-se no projeto de modernização e construção nacionais implantado especialmente a partir do Segundo Reinado". A conclusão do estudo é que há, neste período, "um esforço deliberado em traçar a linha de quem é e quem não é cidadão (...) Esta linha é traçada de diversas maneiras. Uma delas é a imposição da lei, clara no caso dos escravos (...). À medida que avança o processo de desagregação do escravismo, torna-se imperioso delimitar o espaço entre a 'negrada' e a 'boa sociedade' (...) No momento que vive o Império do Brasil, há a necessidade de ampliar os limites da cidadania, incluindo os emergentes setores médios da população que surgem do desenvolvimento urbano. Setores que, apesar de não pertencerem à 'boa sociedade', são vistos como aliados contra os inimigos da ordem e da tranqüilidade".


Voltando então para Ruiz e Cintra e considerando-se que menos de 2% dos negros atingem o nível universitário e que, via de regra, também não são ministros, governadores ou magistrados e não compõem os estratos burgueses e que a classe média negra é diminuta, fica evidente tanto quem é o preso comum quanto a quem, preferencialmente, se destinam as prisões inumanas.


A prisão especial representa mais uma dimensão da apartação racial e de classe instituída em nossa sociedade; mais um mecanismo de distinguir, mesmo entre criminosos, aqueles aos quais se aplicaria o direito a um tratamento digno por serem oriundos da 'boa sociedade'. É um dos múltiplos instrumentos por meio dos quais se realiza o projeto de cidadania excludente que vem sendo a opção da nação ao longo de sua história.


Na contramão desta tradição, os magistrados citados entendem que a separação de certos presos só se justifica quando há base concreta para supor que a sua segurança física e moral esteja em risco.


E este risco, na maioria das vezes, em nossas prisões, não decorre da profissão, do cargo, ou do grau de escolaridade do prisioneiro.


*Sueli Carneiro, pós-graduanda em Filosofia da Educação pela USP, é pesquisadora do CNPq e diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra.


Este artigo foi publicado na Revista Afirma.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer