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Regulação pública e saneamento básico - a bola da vez

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

Ricardo Toledo Silva*


A definição de uma estrutura institucional para o saneamento básico, no Brasil tem ganho, recentemente, um destaque inédito por parte da imprensa. Grande parte desse destaque deve-se ao fato de os serviços de água e esgoto constituírem a "bola da vez" no processo de privatização dos prestadores estatais de serviços públicos. Presença semelhante dessa matéria na grande imprensa só teve paralelo quando da criação do PLANASA, no início da década de 1970, também por força da dimensão econômico-financeira do sistema.


Raramente a estrutura institucional do saneamento básico merece destaque quanto à sua relação com os objetivos finais dos serviços prestados, seja no âmbito da saúde pública, seja no do saneamento ambiental. Tanto é assim que poucos se lembram – de fora da comunidade do saneamento – que o setor tem padecido de um grave esvaziamento institucional desde a extinção do BNH em 1986.


Ao longo do primeiro Governo FHC (1995-98), a estrutura institucional do setor esteve mais próxima de uma reconstrução, quando a política federal de saneamento integrou a Secretaria de Política Urbana do Ministério do Planejamento e Orçamento. Aquele período foi marcado, no setor saneamento, por uma orientação modernizadora mas não necessariamente privatizante, na qual se admitia a coexistência de entidades estatais (companhias estaduais e serviços municipais) e prestadores privados de serviços sob um mesmo arcabouço institucional.


Na passagem para o segundo mandato (1999-2002) e com a retirada da política de saneamento da esfera do planejamento, observa-se uma ênfase mais claramente comprometida com a privatização, um maior peso da lógica financeira no processo decisório do setor – marcada pela inserção no Programa Nacional de Desestatização e pela presença do BNDES em sua organização – e novo esvaziamento institucional quanto aos objetivos finais da política de saneamento. Essa mudança também é refletida no conteúdo dos projetos de lei em debate sobre a matéria.


Um dos pontos nevrálgicos do debate, hoje, diz respeito à titularidade dos serviços. Essa é uma dimensão delicada desde os tempos do PLANASA, que organizou o setor a partir de uma concentração de poderes na esfera estadual, acompanhada de perto pela política federal. Esse processo deu origem a uma justa revolta da parte dos municípios não aderentes às companhias estaduais criadas pelo PLANASA, por terem sido alijados do acesso aos recursos geridos pelo Sistema Financeiro do Saneamento. Hoje, a aparente contradição entre Estado e Município já não se refere mais ao acesso a recursos geridos pela União – praticamente inatingíveis para as entidades estatais em ambas as esferas – mas ao poder concedente, na perspectiva de outorga da operação a organizações privadas.


O problema é complexo, uma vez que envolve questões de ordem legal, econômica e tecnológica de difícil resolução. Do ponto de vista legal, a Constituição de 1988 estabelece titularidade municipal sobre todos os serviços de interesse local. No entanto, a mesma Constituição reconhece, ao estabelecer os princípios de formação das regiões metropolitanas, das microrregiões e das aglomerações urbanas, que há serviços públicos de interesse comum a distintos municípios, que devem ser coordenados por entidades administrativas específicas, criadas por lei estadual. No que respeita os serviços de saneamento básico em particular, o artigo 23 da Constituição os relaciona entre as competências comuns da União, dos Estados e dos Municípios.


Do ponto de vista econômico, as implicações da titularidade também são importantes. Todo o modelo do PLANASA, que na prática determinou a configuração atual dos principais sistemas em operação no país, foi baseado na aplicação de subsídios cruzados como meio para garantir a universalização do acesso.


A justificativa para a agregação dos serviços em sistemas estaduais era de que a operação de áreas distantes e deficitárias seria subsidiada pela operação das concentrações urbanas de maior porte e mais rentáveis. Com diferentes pesos relativos e estratégias específicas de gestão, em praticamente todos os estados se formaram sistemas articulados em subsídios cruzados e hoje seu desmembramento com vistas a novos modelos gerenciais envolve complexas formulações econômicas e operacionais.


No caso da SABESP, por exemplo, a redistribuição de autonomia gerencial de unidades de serviço vem passando por um processo gradual de restruturação de todo o sistema, articulado com a estrutura de gestão dos recursos hídricos do Estado. Evidentemente é possível fazer o desmembramento gerencial de forma mais rápida, com vistas estritamente à privatização – como no caso de Manaus, cuja operadora foi desmembrada da empresa estadual a que pertencia – mas os riscos de abandono das áreas mais vulneráveis é extremamente alto.


Do ponto de vista tecnológico os aspectos envolvidos são também complexos. À parte a estratégia gerencial de subsídios cruzados, a integração dos sistemas em unidades operacionais supra-municipais obedece também a uma lógica de otimização técnica, mediante concentração de capacidades de produção e adução de água e de coleta e tratamento de esgotos em magnitudes e localizações que se mostrem as mais viáveis do ponto de vista de todo o conjunto operado e não de cada subsistema de distribuição isolado.


De novo, várias críticas podem ser feitas às soluções específicas que foram dadas em diferentes casos. No entanto, como princípio geral de gestão tecnológica, este é o único viável para aglomerações interligadas, interdependentes e heterogêneas quanto aos potenciais de cada uma das localidades que as compõem. E isso traz à luz a necessidade de se tratar distintamente – quanto a titularidade e regulação pública – os diferentes segmentos funcionais do serviço. A titularidade sobre um segmento – por exemplo a distribuição, mais afeta ao Poder Público local – não implica reconhecimento de poder concedente sobre outros segmentos dos serviços, que por razões técnicas são remetidos à esfera do Estado ou delegados à entidade regional que se venha a constituir.


Sob a lógica estratégica e operacional dos serviços, os segmentos de maior abrangência territorial – como macrodrenagem, produção e adução de água e tratamento e disposição final de esgotos – tendem a se articular mais proximamente à política de recursos hídricos e isso deve se refletir no plano institucional da regulação. A polarização do debate em torno de um poder concedente pleno na esfera estadual ou municipal acaba por mascarar a complexidade real do problema e, o que é pior, suas possíveis soluções. A se adotar uma política de titularidade municipal plena, se afiguram problemas graves de descompasso entre metas locais – de cobertura, de política tarifária – e custos devidos a componentes de serviço "importados" de outras jurisdições; a atual crise energética da Califórnia, amplamente comentado pela imprensa de todo o mundo, envolve como um de seus principais elementos a defasagem acumulada entre as tarifas reguladas de comercialização final e as não reguladas de energia em bruto importada dos estados vizinhos. Em uma perspectiva de privatização fragmentada de sistemas municipais de distribuição, sem a devida articulação com um sistema regulador mais amplo – e portanto com uma titularidade pública supra-municipal – não se poderá exigir dos operadores locais o cumprimento de metas que venham a ser inviabilizadas pelo possível vazio institucional sobre os segmentos extra-locais de operação. Por outro lado, o modelo de organização centrado exclusivamente na lógica estadual, que se sobrepõe às necessidades locais, é já superado e associado a um cerceamento autoritário da autonomia municipal.


O grande desafio que hoje se impõe à reformulação institucional do setor saneamento – passando pela definição de seu sistema de regulação e outorga de concessões – é o reconhecimento aberto de toda a complexidade envolvida no sistema e sua incorporação, de forma transparente, no arcabouço legal que se forma. Não se trata de queda de braço entre estados e municípios e nem de batalha corporativa entre entidades estatais e privadas. Trata-se de um sistema complexo, com necessidades específicas que devem ser preenchidas pelos agentes mais capacitados e com os meios mais adequados para cada caso. E esse sistema deve ser entendido a partir de seus objetivos finais de eficácia em saúde pública e saneamento ambiental e não sob a ótica exclusiva de seus objetivos parciais de eficiência econômica em cada segmento.


*Ricardo Toledo Silva é arquiteto e urbanista. Professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas – INFURB, da mesma Universidade, que formulou as propostas de reestruturação institucional do setor saneamento na série "Modernização do Setor Saneamento", do PMSS (Ministério do Planejamento e Orçamento, Brasília, 1995). É voluntário na ONG Água e Cidade.

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