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O Brasil tem uma alma de água

Autor original: Flavia Mattar

Seção original:

José Pedro Martins*


O Brasil tem água na alma. A formação do País e de seu povo se deu em função da água. Os povos indígenas encontrados pelos portugueses tinham a sua cultura solidamente fundada no contato com a água. Os rios eram os seus meios de comunicação, eram as fontes principais de suas lendas, mitos e divindades, como Yara ou Moema, depois celebrizada por pinturas e textos literários da cultura branca e que se tornariam clássicos.


Em sua obra-prima "Casa Grande & Senzala", Gilberto Freyre destaca como o brasileiro deve aos povos indígenas, e sobretudo às mulheres índias, o gosto pelo banho. Diz Freyre, em seu estilo tão peculiar, lembrando-se que o livro foi publicado em 1933: "Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós".


Os portugueses, como outros europeus, assinalava Freyre, não gostavam de banho, e se espantavam com o hábito das cunhãs. Mas não se pode esquecer que, para chegar à terra do pau-brasil, os portugueses tiveram de atravessar o Mar Ignoto, aquele marzão desconhecido que eles domaram entre os séculos 15 e 16 e que os tornou por algum tempo senhores de grande parte do planeta.


Sim, o mar tem uma importância enorme para o caráter dos portugueses. O livro que imortalizou a epopéia dos portugueses pelos mares antes desconhecidos, "Os Lusíadas", de Camões, é a síntese dessa aventura, que impregnou o coração e a mente dos lusitanos com o cheiro, a magia e o perigo dos oceanos.


"As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia lusitana,/ Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana", afirmam os célebres versos iniciais de "Os Lusíadas", introduzindo o leitor na epopéia em que a aventura dos portugueses se dá também no contato com as forças dos mitos e divindades próprios da época.


O mesmo pode ser dito em relação à cultura africana, que chegou até o Brasil na dolorosa trajetória dos navios negreiros pelo Oceano Atlântico. Antes de enfrentar os horrores das senzalas, os escravos lutavam contra os riscos inevitáveis de uma travessia oceânica como era feita na época, com o agravante das péssimas condições em que viajavam. Calcula-se que cerca de 30 a 40% de quem embarcava na África não chegava vivo às costas brasileiras.


Os mortos eram, claro, atirados ao mar. O mesmo mar para quem a cultura negra presta terna reverência até hoje, como pode ser visto especialmente nas belas festas para Yemanjá nos finais de ano. Festas que comovem e envolvem a todos, negros, brancos e mulatos, como uma das mais finas expressões do rico sincretismo religioso alicerçado em solo tupiniquim.


Os brasileiros estamos, portanto, localizados na confluência hídrica das culturas índia, branca e negra, banhados pela sabedoria, pela beleza, pela tristeza e pela esperança que essa tríplice herança significa. Os nossos poetas são os arautos dessa múltipla influência cultural e religiosas, como Manoel de Barros deixa claro em "Vespral de Chuva", em seu "Livro de Pré-Coisas": "Tudo está preparado para a vinda das águas. Tem uma festa secreta na alma dos seres. O homem nos seus refolhos pressente o desabrochar. Caem os primeiros pingos. Perfume de terra molhada invade a fazenda. O jardim está pensando... Em florescer".


A nossa alma tem água, e ainda mais porque o Brasil é, ou pelo menos deveria ser, o guardião de nada menos do que 13,7% da água doce disponível do planeta e de mais de dois terços do maior aquífero subterrâneo do mundo, o Aquífero Guarani. Nenhum povo de nenhum país foi tão abençoado pela natureza como o brasileiro por esse impressionante patrimônio, mas o que estamos fazendo com isso?


O rio Tietê, que corta a cidade de São Paulo, é o símbolo máximo de qual é o destino dos recursos hídricos no Brasil, se o chamado progresso não for construído com equilíbrio ambiental e em particular com o respeito à água que percorre as nossas veias. Mas não é só ele que está sofrendo. Rios da Amazônia foram contaminados com mercúrio, a Baía da Guanabara recebe regularmente os despejos de óleo, riachos no Nordeste desapareceram pela falta de cuidado no manejo com a terra, os rios da região de Campinas, no interior de São Paulo, estão saturados de esgotos urbanos e de algas, que põem em xeque de modo permanente os sistemas públicos de abastecimento.


Um olhar histórico pode ajudar a explicar por que os rios brasileiros chegaram a essa situação. No documento considerado como o de fundação do País, a Carta de Pero Vaz de Caminha, assim o cronista descreve a abundância de água que viu: "Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem".


Enfim, as águas brasileiras, na visão do cronista, eram infinitas, e o Brasil poderia ser um país muito rico, "por bem das águas que tem". E essa parece ter sido a marca desses 500 anos de construção do Brasil. Os recursos naturais brasileiros, e particularmente a água, são tão grandes, aparentemente tão inesgotáveis, que não houve de fato uma preocupação com o limite de sua exploração. Esquecemos de que deveríamos ser os guardiões da água e, pelo contrário, estamos tornando-a como um produto qualquer, que pode ser usado e jogado fora sem mais nem menos, que pode ser definitivamente maculado com os esgotos urbanos, os agrotóxicos ou com os metais pesados dos despejos industriais criminosos. Quando abrimos a torneira, nos esquecemos de que, até chegar ali, a água passou por tantos caminhos, foi captada em rios geralmente poluídos, recebeu tratamento com uma bateria de produtos químicos, foi transportada por "milhares" de km por canos, perdeu-se eventualmente pelo caminho, até chegar às nossas casas.


Em suma, no País da água não sabemos o real valor que ela tem. O brasileiro infelizmente foi acostumado à cultura do desperdício, do usa e descarta, tão típicos da sociedade industrial mais selvagem (no mau sentido). De acordo com várias fontes, a média de desperdício de água no Brasil é de 40%, duas vezes a média mundial. Ou seja, quase a metade do que é captado acaba se perdendo por vazamentos e outras falhas no sistema de distribuição, o que em termos exclusivamente monetários significa algo em torno de US$ 2 bilhões. Isso sem contar com o desperdício cultural mesmo, aquele de quem lava as calçadas ou o carro todo dia, mesmo em situações críticas de estiagem como a que a Região Sudeste do Brasil viveu no Inverno de 2000.


Uma revolução cultural, para reverter a postura que se tornou utilitária do brasileiro em relação à água, é um imperativo para a conquista do almejado desenvolvimento sustentado. É preciso construir uma cultura do não-desperdício, a partir da consolidação do espírito de cidadania também em relação à água. Algumas iniciativas sérias estão sendo feitas nesse sentido, como a das Semanas da Água promovidas pelo Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba e Capivari, na região de Campinas. O Movimento Cidadania pela Água, que vem se desenvolvendo em escala nacional, também é outra luz no horizonte. Em Campinas, a Sanasa, empresa local autônoma de água, tem feito uma campanha importante contra o desperdício.


Mas muito ainda precisa ser feito. O brasileiro tem água na alma. Por isso, ele é muito mais água do que a maioria dos seres humanos, que têm mais de 70% de seus corpos feitos... de água. Talvez não seja por acaso que os rios e mares brasileiros tenham atingido o máximo de degradação e poluição, justamente no momento em que em mais o País se sente degradado com a poluição na esfera política, com a corrupção impune, com a violência que corrói os sonhos de várias gerações. A destruição das águas e a crise ética vivida no Brasil têm uma relação muito maior do que se pensa. Água é transparência, é leveza, é cordialidade e solidariedade. Isso é tudo com que estamos sonhando. O brasileiro tem água na alma, e esta água está desaparecendo e ficando suja. É hora de acabar com esse desperdício de natureza e de reserva moral.


Como diz Maria do Rosário Lino, em Deixa a Água: "Água – champagne dos deuses./ Deixe a água cantar/Deixa a água contar/Suas histórias angelicais/ Deixa a água hidratar/ nossas sedes mananciais/ Deixa a água cessar/ as inquietações existenciais/ Deixa a água energizar/ O corpo, a alma, a mente,/ tudo mais/na paz./Deixa a água".


*José Pedro Martins é jornalista e escritor, editor do site Mundo Azul (www.mundoazul.jor.br)


Fev.01 / Publicado no Non!

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