Autor original: Flavia Mattar
Seção original:
René Passet *
Em desafio à comemoração anual do capital e do dinheiro, que uma vez mais se reúnem na hospitalidade das montanhas suíças, surge agora, em Porto Alegre, um forum mundial que reúne homens e mulheres do mundo inteiro. Este primeiro encontro demonstrou que à lógica fria do aparelho econômico não corresponde apenas a reação da generosidade, mas também outra lógica, aguçada e não menos rigorosa, inspirada nas exigências da finalidade humana. A economia - atividade de transformação da natureza que tem o objetivo de atender às necessidades dos homens - não tem sentido, por definição, senão no contexto dessa finalidade. Quando os meios se tornam fins e os fins se tornam meios, quando o ser humano está serviço do dinheiro e não o dinheiro a serviço do ser humano, a razão torna-se demência e o mundo perde-se no absurdo.
Enquanto no período de meio século, por exemplo, o produto mundial foi multiplicado por nove, as desigualdades entre os povos se acentuaram e, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), esse mesmo produto regrediu em 80 países. A engrenagem, que deveria aliviar a humanidade do sofrimento, gera, nas nações mais ricas - e mesmo nos períodos de crescimento econômico - a desigualdade, a miséria e a exclusão social. O desafio da produtividade, a que são submetidas as empresas, esgota a natureza, amplia a extração abusiva de recursos naturais, a destruição dos principais mecanismos reguladores da biosfera. A vida humana torna-se objeto de comercialização como um todo e - note-se o novo critério de racionalidade - o lifetime value representa o valor da pessoa em função do que ela poderá adquirir durante toda a sua existência. Se a definição de eficiência é a daquilo "que produz o efeito esperado",1 qual seria o seu significado em economia?
O direito à organização
É preciso opor aos princípios de uma economia baseada na rentabilidade do capital financeiro critérios de investimento e de comércio baseados nas exigências da finalidade humana.
Ao argumento das relativas vantagens naturais, devemos opor a necessidade de considerar as condições em que trabalha o ser humano. Isso porque as ditas vantagens relativas são a conseqüência de uma mão-de-obra abundante, ou da localização privilegiada de determinados recursos - beneficiando unicamente às transnacionais que os controlam, e não às regiões do mundo onde se encontram. Em todos os setores econômicos, os preços de revenda de produtos originários de sistemas de capital altamente intensivo ficam fora do alcance de sistemas produtivos que se apóiem fundamentalmente no trabalho. O critério da competitividade-preço, portanto, condena populações inteiras a desaparecerem. Se for esse o objetivo, então é bom dizê-lo. Caso contrário, é necessário corrigir as desigualdades naturais das condições de produção através de um tratamento econômico que favoreça os que estão em desvantagem.
À chamada cláusula de nação mais favorecida2 da Organização Mundial do Comércio (OMC), devemos opor o direito dos povos a se organizarem livremente, em amplas comunidades de nações solidárias, segundo modalidades destinadas a evitar qualquer tipo de dominação por parte dos mais poderosos sobre os mais fracos; o direito de se proteger por meio de barreiras de preferência comunitária; e o direito de controlar os movimentos de capital cujos fluxos e refluxos brutais - a exemplo do que ocorreu na Ásia em 1997 - possam desorganizar as economias reais e lançar populações ao desespero.
Rentabilidade social e coletiva
Contra a chamada cláusula do tratamento nacional,3 reivindicamos o direitos das nações a protegerem suas atividades vitais, a valorizarem, da forma que o desejarem, os seus territórios, e, prioritariamente, a preservarem ou desenvolverem, a auto-suficiência alimentar contra a invasão devastadora das agriculturas industrializadas. Recusamos que os valores sociais, as culturas e tudo o que constitua a identidade dos povos, possam ser reduzidos às dimensões de meros valores comerciais.
Diante da predominância da rentabilidade mercantil, proclamamos a superioridade dos direitos fundamentais da pessoa humana, da utilidade social e do interesse geral. A rentabilidade das atividades daí decorrentes não é essencialmente monetária e de curto prazo: ela é de ordem social e manifesta-se, através de efeitos indiretos, de longo prazo, sobre o desenvolvimento da coletividade. Foi o que ocorreu no século XIX com a estrada de ferro; e é o que ocorre hoje - ou deveria estar ocorrendo - com a energia nuclear, as biotecnologias etc. Entre essas atividades, algumas - por serem cruciais para o futuro da coletividade ou por dizerem respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana (saúde, educação, segurança, infraestrutura, atividades bancárias e financeiras) - não podem ficar subordinadas aos critérios dos interesses comerciais e do lucro. Cabe ao poder público a tarefa de as assumir, ou pelo menos controlar seus efeitos e o seu desenvolvimento. As fusões, a aquisição de conglomerados e a concentração financeira nas mãos de interesses privados, com poder às vezes superior ao dos Estados, devem ser rigorosamente limitadas, ou mesmo extintas. Essa é a que nos parece ser a função do setor público.
Novas funções e novas lógicas
Existem outras atividades cuja rentabilidade também é social e de longo prazo, sem que, no entanto, elas ameacem colocar o destino coletivo entre as mãos de umas poucas potências privadas. Isso porque se interessam, fundamentalmente, por relações de proximidade, criadoras de cidadania (sistemas comerciais locais, redes comerciais e de conhecimentos recíprocas, vida associativa local etc.), ou porque seu objetivo principal não é o lucro, já que o poder é compartilhado pelo conjunto de seus membros: associações, cooperativas, empresas mútuas, sistemas financeiros alternativos e solidários. Em todos esses casos, cabe ao poder público incentivar a explosão da criatividade individual. É de sua responsabilidade apoiá-los, em nome, e nos limites, de sua produtividade social. Essa nos parece ser a função da economia social e solidária.4 Não se trata aqui, portanto, de defender algumas "exceções" (o que seria o equivalente a atribuir às regras do mercado o estatuto de normas) - culturais, por exemplo -, e sim funções que devem ser assumidas por uma sociedade em seus diferentes níveis de organização.
Ao domínio exclusivista de uma racionalidade unicamente individual, devemos, portanto, opor os princípios da economia "plural". Da mesma forma que, na natureza, a molécula evolui para a célula, e esta para o órgão e para o sistema (respiratório, circulatório, digestivo), através do surgimento de novas funções e de novas lógicas, afirmamos que cada momento da passagem do indivíduo aos diferentes níveis do social é acompanhado por uma mudança de lógica: a racionalidade a que se devem submeter a construção e a gestão de um bem coletivo - uma barragem ou uma via de comunicação, por exemplo - revela um modo de cálculo diferente daquele que se aplica a um bem individual, de um aparelho doméstico, por exemplo. Como cada um dos níveis também faz parte de um todo, não apenas aceitamos, mas confirmamos a legítima existência de uma racionalidade individual mercantil. O que recusamos, e de forma radical, é que a realidade econômica se reduza exclusivamente a essa lógica e que o social seja definido como um somatório de racionalidades individuais.
A supremacia do político
Por isso existem orientações para uma ação política com o objetivo de recolocar a economia em seu lugar, a serviço da comunidade humana, onde encontra seu sentido e sua dignidade.
Em primeiro lugar, garantir a supremacia dos valores sócio-culturais sobre os valores mercantis. Os primeiros representam, por excelência, o que dá sentido à existência de qualquer pessoa e que, portanto, esta valoriza mais do que a si própria. Propõem a sua própria concepção do mundo, além do questionável e do demonstrável. Decorre daí a supremacia natural da função política - encarnação do projeto social que resulta do livre confronto de sistemas de valores sócio-culturais - sobre a função econômica, que, por sua vez, se situa meramente a nível dos meios que viabilizam a realização do projeto coletivo. O fato desses valores se situarem fora do campo do questionável e do demonstrável implica no respeito por sua pluralidade, fundamento básico da democracia.
Marionetes das transnacionais
De um ponto de vista prático, isto significaria que, longe de constituir a lei suprema a que se devem curvar todos os outros, os acordos comerciais - ao contrário do que pretende a OMC - devem ser subordinados ao respeito pelas convenções internacionais referentes aos direitos individuais e sociais da pessoa humana, como os do meio ambiente - em particular, a Declaração da Conferência do Rio, de 1992, a Agenda 215 e os acordos multilaterais sobre o meio ambiente -, às determinações das Nações Unidas sobre a proteção ao consumidor e a todas as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em seguida, submeter as potências econômicas e financeiras à autoridade do poder político. Os desvios incontroláveis da especulação, por exemplo, exigem a ação efetiva da taxa Tobin, ou de outros mecanismos visando ao mesmo resultado, a organização de um novo sistema monetário e financeiro internacional e o controle dos movimentos de capitais no mundo. Enquanto o poder internacional dos senhores das finanças e das empresas transnacionais não tiver que enfrentar senão os governos nacionais, estes, longe de terem o papel de árbitro, continuarão sendo os marionetes que as potências econômicas manipulam como bem entendem. Somente uma ação coordenada dos governos, imposta pela vontade dos povos, poderá elevar o poder político ao nível planetário das forças que lhe cabem controlar.
Atribuições da solidariedade
Torna-se, hoje, intolerável a extraordinária inversão da situação pela qual os que reivindicam a abertura das fronteiras à sua voracidade insaciável conseguiram fazer-se passar por paladinos de uma globalização "feliz", qualificando de "anti-globalizantes"6 todos os que se opõem à sua operação de confiscar o planeta. À Internacional do dinheiro, iremos opor um novo tipo de internacionalismo com o objetivo de reunir a comunidade humana e com uma atribuição tripla, e impreterível, de solidariedade:
O que os governos, agindo de forma desordenada, não podem ou não querem fazer, a mobilização dos povos está começando a realizar. As mesmas tecnologias do imaterial que possibilitaram a globalização do capital permitem agora uma ação coordenada permanente e a mobilização dos movimentos de cidadania no mundo. Ontem fracassou o Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), ocorreu o fiasco da OMC em Seattle, fecharam-se os mercados europeus aos organismos geneticamente modificados (OGM), foi cassado a chamada "patente Terminator" da empresa Monsanto, houve o caso de José Bové em Millau, aconteceram Praga, Nice... E eis que essas mobilizações esporádicas se transformam numa força de propostas permanentes com a qual terão que se ver os senhores do mundo.7
Traduzido por Jô Amado.
* Professor emérito da Universidade de Paris I, autor de L'Illusion néolibérale, ed. Fayard, Paris, 2000; L'Économique et le Vivant, ed. Economica, Paris, 1996. Também preside o Conselho Científico de Attac.
1 Definição do dicionário francês "Le Petit Robert".
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2 A cláusula de nação mais favorecida obriga qualquer país-membro da OMC a conceder, de forma imediata e incondicional a todos os países-membros, qualquer tipo de vantagem concedida a um deles.
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3 Outro princípio fundamental do OMC, a cláusula do tratamento nacional obriga os países-membros a darem o mesmo tratamento a produtos nacionais e estrangeiros.
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4 Ler, de Jean-Loup Motchane, "Álibi ou alternativa ou liberalismo?", Le Monde Diplomatique, julho de 2000.
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5 Adotada pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, a Agenda 21 (ou Ação 21) fixava os objetivos a serem atingidos e os meios de o conseguir durante o período 1992-2000, com relação ao desenvolvimento sustentável. No entanto, as medidas propostas não eram obrigatórias e sua aplicação ficaria a critério dos Estados...
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6 Com respeito ao uso do termo "anti-globalizante", tomado do vocabulário da Frente Nacional (partido de extrema-direita) pelos meios de comunicação e por pessoas interessadas em desqualificar quem se oponha à globalização liberal, leia a nota de rodapé nº 9 do artigo "E se 'ela' não fosse irreversível?...", de Bernard Cassen, Le Monde Diplomatique, janeiro de 2001.
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7 Ler, de Ignacio Ramonet, o editorial "Porto Alegre", Le Monde Diplomatique, janeiro de 2001.
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