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A Vulnerabilidade das Mulheres Negras

Autor original: Felipe Frisch

Seção original:

Jurema Werneck*


Os primeiros anos da epidemia de HIV/AIDS no Brasil foram marcados pela desinformação e, principalmente, pela construção de discursos impregnados pelo viés do preconceito. Passou-se a disseminar, então, inclusive através de campanhas públicas coordenadas pelo Ministério da Saúde, a noção de "grupos de risco". Esta se dirigia especificamente para homens homossexuais e prostitutas, dando alguma ênfase também sobre os hemofílicos e usuários de drogas. As televisões destacavam as celebridades atingidas pelo HIV: cabeleireiros de estrelas, artistas e cantores. Todos homens sabidamente (ou não) homossexuais. Como exceção, havia o Betinho, visto por muitos como mártir da epidemia, infectado através de uma transfusão de sangue.


Nessa época, quem falava das mulheres? E, quando as mulheres surgiram no cenário do HIV, quem entre elas era a dona-de-casa, a mulher comum, aquela que se parecia com cada uma de nós? Quem, entre os rostos presentes na mídia, era uma mulher negra infectada pelo HIV/AIDS? Nestes anos, a epidemia era assunto para outros – os desviantes, os brancos, as prostitutas (cuja face de mulher, a face de mulher negra, não era vista em lugar algum). Erigiu-se um muro de ignorâncias que, ao invés de proteger, nos tornava mais frágeis. Os resultados estão sendo medidos agora: cada vez mais o HIV/ AIDS espalha-se entre mulheres; cada vez mais, veremos a seguir, passa a ser um assunto (e um risco) para as mulheres negras.


Mulher, negra e pobre


O conceito de vulnerabilidade, associado a análises do comportamento da epidemia de HIV/AIDS, é achado recente e coloca lado a lado as variadas dimensões envolvidas. Fatores sociais, político-institucionais e comportamentais passam a ser analisados em conjunto com suscetibilidades individuais e condições específicas a determinados grupos populacionais e/ou nações, de modo a visualizar-se a abrangência da epidemia. A medida da vulnerabilidade de uma pessoa seria, portanto, o resultado da interseção destes diversos fatores. Abandona-se o conceito de "grupos de risco" e reconhece-se a presença de múltiplos fatores – e não somente fatores individuais – na propagação do HIV. Passa-se a checar as chances de cada pessoa a partir de suas condições individuais e/ou sociais de expor-se, infectar-se com o HIV, adoecer em conseqüência da imunodeficiência e, até mesmo, vir a morrer em decorrência da ação do vírus.


A discussão das desigualdades que atingem as mulheres negras no Brasil comumente aponta para a presença de uma tríplice discriminação: o fato de ser mulher, o ser negra e a pobreza. Se por um lado esse esquema de análise torna mais fácil a compreensão de três poderosos fatores determinantes da violência estrutural que nos atinge, por outro requer a compreensão de que a mulher negra, enquanto ser indivisível, vivencia simultaneamente graus extremos de violência decorrente do sexismo, do racismo e dos preconceitos de classe social, em um bloco monolítico e tantas vezes pesado demais.


Assim, uma visão um pouco mais detalhada de cada um destes fatores é um facilitador das análises acerca da vulnerabilidade das mulheres negras à epidemia de HIV/AIDS.


Gênero/sexismo


É sabido por todos que a desigualdade entre os sexos tem produzido entre nós a inferiorização da mulher. Resulta disto o fato de as mulheres permanecerem ainda excluídas das mais variadas instâncias de poder e decisão na vida pública e na vida privada; receberem salários menores que os dos homens para o mesmo trabalho; serem a maioria dos casos de pessoas atingidas pela violência doméstica e sexual; entre outros. Isto implica também dizer que, no cotidiano, as mulheres têm menor liberdade de agenciamento da sua própria vida sexual, como também têm menos poder de decisão acerca do uso da camisinha pelo parceiro sexual, pois há que se lembrar que esse principal método disponível para a prevenção da infecção é de controle e uso masculino.


Assim, a desigualdade entre homens e mulheres produz uma maior vulnerabilidade para as mulheres, resultando daí o caminho cada vez mais impactante da epidemia em direção a este grupo.


Raça/racismo


Pesquisas desenvolvidas no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos, já vêm há tempos demonstrando que o racismo é um fator gerador de doenças e/ou de agravamento de situações patogênicas preexistentes, bem como fator de incidência sobre as taxas de mortalidade da população.


Entre os estudos recentes que têm comprovado o impacto do racismo sobre a população brasileira, um exemplo contundente é o trabalho realizado por Wania Sant'Anna e Marcelo Paixão ("Desenvolvimento Humano e População Afrodescendente: Uma questão de raça", 1997), que analisa o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), instrumento de análise desenvolvido pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).


Avançando em sua análise, Wania Sant'Anna buscou avaliar conjuntamente o IDH dos afrodescendentes e a condição de gênero ("Desigualdades Étnico/Raciais e de Gênero no Brasil – As revelações possíveis do Índice de Desenvolvimento Humano e Índice de Desenvolvimento ajustado ao Gênero", 2000 – leia versão resumida do artigo nesta edição). Nesse estudo, Wania demonstrou que o cruzamento dos dois fatores – condição racial e de gênero – faz com que as mulheres negras ocupem as posições mais inferiores comparativamente aos homens, brancos e negros, e às mulheres brancas.


Condições individuais, condições sociais e ações de prevenção e controle da epidemia. Analisando-se especificamente esses fatores de vulnerabilidade à epidemia descritos por Jonathan Mann (ex-diretor do Programa de AIDS das Nações Unidas) e considerando-se que o racismo tem sido um fator de influência e/ou determinação do lugar do indivíduo na sociedade, definindo seu acesso, maior ou menor, à riqueza, escolaridade, moradia, bens públicos, serviço de saúde, informação, entre outros, pode-se visualizar sua participação na possibilidade de maior incidência do HIV sobre a população negra. Igualmente, pode-se também perceber o racismo como fator determinante de uma barreira mais ou menos intransponível em relação ao acesso aos meios para prevenção, tratamento e controle da infecção, tanto em nível individual como coletivo, para toda a população de afrodescendentes.


A vulnerabilidade da população negra à infecção pelo HIV seria conseqüência também da violência estrutural que incide de modo mais perverso sobre o grupo, principalmente nas comunidades pobres. A exclusão social a que afrodescendentes estão submetidos influencia também o desenvolvimento e continuidade dos programas de prevenção (por exemplo, ao dificultar ou impedir o trabalho nas comunidades excluídas), bem como facilita o acesso às drogas (injetáveis ou não) e suas graves conseqüências – entre elas, a maior exposição ao HIV.


Maioria na exclusão


Nós, mulheres negras, somos maioria na população negra, maioria na população pobre e, caso se consiga provar que a "branquitude" brasileira produzida pelo IBGE está longe de representar o real, provavelmente somos também um dos maiores contingentes da população brasileira.


Por outro lado, conforme já foi mostrado, somos sem sombra de dúvida um dos principais segmentos excluídos da sociedade brasileira. Atingidas pela violência estrutural que se baseia no racismo e no sexismo, a maioria de nós vivencia condições extremas de pobreza, sem acesso a recursos básicos como educação, habitação, saúde e emprego.


Segundo Francisco Inácio Barbosa ("A Feminização da Epidemia de AIDS no Brasil: Determinantes estruturais e alternativas de enfrentamento", 2000):


"(...) existe uma situação particularmente desfavorável às mulheres pobres no que diz respeito à disseminação do HIV e das demais IST (infecções sexualmente transmissíveis), que se amplia quando consideramos condições adicionais e igualmente desfavoráveis, vigentes entre as mulheres negras no âmbito da saúde em geral e da saúde reprodutiva em particular".


Possíveis saídas


O Brasil tem um dos melhores programas de prevenção e tratamento do HIV/AIDS do mundo. No entanto, este nível de excelência – que, diga-se de passagem, foi em grande parte construído pelas organizações não-governamentais – não tem sido suficiente para impedir a feminização da epidemia; e mais, a feminização negrófila, ou seja, sua chegada às mulheres negras.


Assim, é preciso que todos os que estejam envolvidos com as ações de controle da epidemia – governos e ongs – incorporem, para além da questão de gênero, a questão racial/étnica como dimensão essencial de superação do problema.


O primeiro passo para enfrentar de modo eficaz a epidemia do HIV na sociedade brasileira é reconhecer os diferentes níveis de vulnerabilidade que fragilizam de maneira mais intensa segmentos específicos da sociedade. E, principalmente no que se refere à vulnerabilidade das mulheres, é preciso reconhecer a força com que fatores como raça/etnia e pobreza concorrem para expor cada vez mais as mulheres negras ao risco de contrair o vírus.


A partir daí será preciso desenvolver ações dirigidas às mulheres e adolescentes negras, tanto no que se refere às medidas de fortalecimento desses grupos, como também às de ampliação do acesso a informações e meios de prevenção.


É importante notar que organizações não-governamentais dirigidas por mulheres negras já vêm desenvolvendo há anos programas deste tipo, como por exemplo o Geledés – Instituto da Mulher Negra e Fala Preta! (ambas em São Paulo) e Criola (no Rio de Janeiro). Mas é obvio que a abrangência dos programas de ongs é limitada. E, por outro lado, é no nível das políticas públicas – que incorporem as experiências bem-sucedidas da sociedade civil – que os melhores resultados podem ser atingidos.


O que é preciso, como pré-condição, é que cada um, governos e sociedade, coloque em prática os compromissos assumidos pelas nações das Américas e do Caribe em Santiago, no Chile, durante a Conferência das Américas – evento preparatório para a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância – realizada em dezembro de 2000. É preciso, como Sueli Carneiro, coordenadora do Geledés, escreveu no Correio Braziliense (15/12/2000):


"(...) dar visibilidade às diferentes situações que afetam as vítimas do racismo, da xenofobia, da intolerância e da discriminação nas Américas, em especial às sofridas pelos povos afrodescendentes e os povos indígenas".


E Sueli Carneiro vai mais além: é necessário também:


''(...) propor estratégias de igualdade efetiva e plena, assim como medidas de prevenção, reparação ou compensação, frente ao racismo, à xenofobia, à intolerância e aos comportamentos discriminatórios''.


Mas é preciso que os formuladores e executores destas ações levem também em consideração não apenas os fatores que produzem a maior vulnerabilidade das mulheres negras, como também as fortalezas que este segmento vem construindo há centenas de anos. E não têm sido poucos os aportes que as mulheres negras têm trazido para a sociedade brasileira. Esta contribuição se exprime, por exemplo, na implantação da herança cultural africana, que tem sido uma contribuição das mulheres negras desde o século 16. Uma cultura que considera a saúde não apenas como um estado de ausência de doenças e, indo mais além da definição de equilíbrio biopsicossocial da Organização Mundial de Saúde, propõe-se a considerar o equilíbrio dinâmico, fundado em trocas interativas com as diversas dimensões da existência – os vivos e os mortos; as plantas, os animais, os minerais; as dimensões internas e externas, como também anteriores e posteriores ao corpo –, visão esta que traz implicações mais profundas ao conceito de prevenção.


É preciso dar o passo adiante – governos, ongs e ativistas. E a ação de enfrentamento da epidemia é um momento privilegiado e que requer respostas urgentes. Nós, mulheres negras, temos até o momento agido sozinhas neste sentido. Agora é o momento de agir, não por solidariedade apenas, mas pelo profundo compromisso que se pode ter com a vida humana e com a construção de uma sociedade democrática. Onde todos, e em especial as mulheres negras, desfrutem de igualdade de condições e direitos. Inclusive no que se refere à convivência com o HIV/AIDS.


* Jurema Werneck é médica e coordenadora da Criola, ong que luta pelos direitos das mulheres negras no Brasil e no mundo, desde 1992, com sede no Rio de Janeiro.


Artigo publicado no Jornal da Rede Saúde, edição de março de 2001.

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