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Pernambuco e o Relatório da ONU sobre a Tortura no Brasil

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

Jayme Benvenuto Lima Jr.*


O relatório da ONU sobre a Tortura no Brasil, lançado essa semana em Genebra, reflete a visita ao Brasil do Relator Especial sobre a Tortura, Sir Nigel Rodley, entre 20 de agosto e 12 de setembro de 2000, quando ele esteve em cinco estados brasileiros (entre os quais Pernambuco) considerados com maiores índices de ocorrência de tortura. A visita do Relator Especial teve a finalidade de tomar conhecimento da situação existente no Brasil, através de contatos com organismos governamentais e não governamentais; e fazer recomendações a serem adotadas pelo governo brasileiro e pelos governos estaduais no combate à tortura.


Em Pernambuco, o Relator Especial da ONU visitou as delegacias de Roubos e Furtos, do Ibura e de Cavaleiro, além do Presídio Aníbal Bruno. Surpreendentemente, na ocasião, o Relator Especial não encontrou ninguém preso nos dias das visitas, em nenhuma das delegacias visitadas; o que deixou uma dúvida: teria sido um dia inadequado para uma visita oficialmente anunciada aos estados pelo Governo Federal, ou os índices de criminalidade diminuíram, drasticamente, naqueles dias de setembro de 2000, sem qualquer explicação? Como não nos cabe a tarefa de advinhar, muito menos de fazer acusações levianas, não teremos respostas para a dúvida colocada.


A ausência de presos nos distritos policiais não impossibilitou, porém, o Relator da ONU de ver as péssimas condições de detenção provisória das delegacias (cubículos escuros e sujos usados como celas, banheiros indignos de animais, etc), a falta de condições de trabalho dos policiais (papel, máquinas de escrever, balas, etc); além de encontrar alguns objetos suspeitos de serem usados para a tortura (na delegacia do Ibura, foram encontrados um pedaço de madeira velho e uma palmatória). Para um objeto descrito nos dicionários como instrumento de castigo aos escravos, uma palmatória parece estar bastante deslocada no tempo e no espaço, como a tortura também, afinal. Na delegacia de Roubos e Furtos, o Relator se deparou, ironicamente, com uma bandeira da ONU pendurada na parede, por sobre a mesa do delegado; ao passo em que - também ironicamente - ninguém havia sido detido, em uma semana, nas suas 14 grandes celas (pelo menos de acordo com o livro de registros). Embora não tendo feito, o Relator Especial poderia ter recomendado o fechamento da delegacia por falta de uso.


No Presído Anibal Bruno, o Relator Especial da ONU encontrou um quadro de superpopulação carcerária: 2.971 presos para uma capacidade de 524; pessoas com marcas de tortura nas celas de castigo e na triagem (onde ficam as pessoas provenientes das delegacias); e condições de alojamento inumanas tanto na triagem quanto nas celas de castigo, onde as pessoas presas têm que dormir no chão frio e batido.


No tocante ao sistema penitenciário em particular, o relatório da ONU é enfático ao dizer que, embora a legislação nacional e as normas internacionais prevejam garantias de respeito aos direitos humanos, “a combinação de corrupção, a falta de treinamento profissional para os agentes penitenciários e a falta de normas oficiais e efetivo monitoramento dos abusos, têm levado a uma permanente crise no sistema penitenciário”.


Como alertado pelas entidades de defesa dos direitos humanos locais, o Relator Especial da ONU conclui que os lugares de detenção, no Brasil, de um modo geral, são em si torturantes, dadas as precárias condições de vida dadas pela superpopulação, pela falta de higiene, pela falta de serviços de saúde, além dos atos de tortura e maus tratos.


Os “tapas, murros, socos, ‘telefones’, paus de araras, sufocamento com sacos plásticos” ou o uso de “ferros, pedaços de pau, choque elétrico, palmatória”, entre tantas outras “técnicas” e “tipos de tortura” reportados pela ONU, colocam o Brasil e o Estado de Pernambuco - na difícil situação de ser visto perante a comunidade internacional como um lugar em que a tortura é a regra na atividade policial e penitenciária.


Resta ao país - e ao Estado de Pernambuco - adotar as medidas indicadas no relatório da ONU, entre outras possíveis, para demonstrar a sua real vontade de entrar no mundo civilizado. Entre essas medidas, destacam-se:
a) a demonstração clara de que as autoridades do país não toleram mais o cometimento da tortura, através de ações punitivas dos responsáveis por esses atos;
b) o fim à pratica policial da prisão sem ordem de flagrante delito, como há muito tempo já manda a nossa lei;
c) o cumprimento do dever, por parte da autoridade policial, após a prisão em flagrante, de proceder ao registro sobre a identidade dos presos, sobre a identidade da autoridade policial responsável pela prisão, as condições físicas em que os presos foram encontrados, entre outras tantas informações (devendo uma cópia do registro ficar de posse das pessoas presas);
d) a obrigação da autoridade policial informar imediatamente às familias dos presos sobre a sua prisão, os motivos legais, as circunstâncias, e o acesso privado a elas, como de um advogado, público ou particular;
e) o recolhimento de pessoas presas em delegacias por período não superior a 24 horas, tempo suficiente para a sua transferência legal para os locais de prisão provisória;
f) a gravação em vídeo e áudio dos depoimentos nas delegacias, durante o interrogatório, como forma de limitar a ocorrência de tortura naqueles lugares;
g) a colocação das investigações sobre a criminalidade policial sob a responsabilidade de um órgão independente, como o Ministério Público, e com acesso irrestrito às delegacias de polícia (e nunca das próprias polícias);
h) a investigação eficaz, rápida e apropriada de toda denúncia de tortura feita aos corregedores e ouvidores;
i) a demissão dos funcionários comprovadamente envolvidos em tortura;
j) a extensão do programa de proteção a testemunhas a todos os estados dos Brasil, de acordo com as linhas estabelecidas pelo Provita;
k) o treinamento apropriado dos policiais e dos agentes penitenciários para o correto uso da lei e dos instrumentos internacionais;
l) o fim ao crime de “desacato à autoridade”;
m) o fortalecimento do papel dos conselhos de comunidades, conselhos de direitos humanos e ouvidorias de polícia e do sistema penitenciário;
n) a independência dos Institutos Médicos Legais em relação ao Poder Executivo.


Que o governo de Pernambuco faça a sua parte, procurando seguir o máximo possível as recomendações para que o estado não seja associado internacionalmente ao que há de pior no Brasil, em matéria de segurança pública.


*Jayme Benvenuto Lima Jr é advogado e jornalista, coordena o programa dhINTERNACIONAL, do GAJOP e do Movimento Nacional de Direitos Humanos.

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