Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original:
Márcio André dos Santos*
Desde o surgimento da televisão no Brasil, o negro e os elementos de seu universo e cultura têm sido representados sistematicamente de maneira subalternizada e inferiorizante. Não é de hoje que se denuncia tal caráter. A TV --cujo ideário segue padrões eurocêntricos de beleza-- projeta imagens do negro que o desqualifica e literalmente nega (em uma expressão cara e emprestada ao comunicólogo e cineasta Joel Zito de Oliveira, que lançou recentemente um livro sobre o negro na teledramaturgia brasileira) sua humanidade. Sejam novelas, seriados, reportagens, programas de humor ou documentários, está sempre presente a tentativa de se demarcar e fixar no imaginário coletivo um lugar psicológico e social para negros e não-brancos através das imagens teleprojetadas pela televisão.
Em um episódio da série chamada "Brava Gente Brasileira", exibida em 30/03/01 pela Rede Globo, a ficção aspira retratar a realidade tal qual se vê. Um drama policial típico, sem muita novidade, exceto pelo fato de que ali o conflito racial entre brancos e negros aparece na tela através do conflito cotidiano entre policias e bandidos. Nada que surpreenda olhares metropolitanos já tão marcados pela violência de todo dia. Mais do que uma aparente disputa entre as forças do bem e do mal o drama quer comunicar o dia-a-dia de uma instituição --a polícia-- historicamente construída para a manutenção da ordem social e, objetivamente, para manter organizado o caos social dos locais onde tradicionalmente habitam ao que durante muito tempo se chamou de "classes perigosas": tudo aquilo que foge ao ideário e a prática elitizante a se perpetuar (negros, migrantes pobres, favelados, etc). E, neste caso, é a polícia civil que ganha o centro da trama caracterizada pela prática rotineira da tortura e da corrupção em que o drama ficcionalizado tenta, fielmente, retratar.
A favela é vista e retratada como o palco imaginário do malandro e do crime, da desordem e da degradação social, lugar de pobres, desempregados e desqualificados e, sem surpresa, onde se encontra uma maioria negra. O drama faz disso uma cópia supostamente autêntica da geografia decadente em que as forças de segurança e repressão estatais cumprirão seu ofício maior que é o de restaurar a paz social na cidade. A violência real transforma-se, numa típica encantaria que a tevê se especializou em fazer, em violência simbólica. A favela, enquanto cenário principal da trama, é esvaziada na sua coletividade pensante e dignidade, de expressividade, de voz. É lugar ermo, lugar sem lugar, mesmo que habitado densamente. Ali se pode entrar, revistar e subordinar seus moradores, tendo-se como justificativa o fato de estar ao lado da "paz social" que se quer preservar. A trama cala as vozes daqueles supostamente representados. O negro favelizado é então visto enquanto humanidade perdida e degradada, sem direito até mesmo a manifestação sonora de sua existência.
A prática policial ficcionalizada testemunha a ambigüidade cortante do modus operandi do aparato armado do Estado nos lugares socialmente construídos como suspeitos e, quiçá, perigosos. A televisão, através da ficção, tenta ser o retrato de uma realidade que imagina conhecer, pois investida de capital simbólico mantido a ferro-e-fogo. Simulacro de representações eurocêntricas e preconceituosas que artificializam sua própria lógica, pois inscrita numa falsa representação do real.
Ser negro (a), de origem nordestina e morador de favelas e periferias é ser o "Outro" absolutamente indesejado pelo padrão de normalidade e beleza que a tevê pretende eternizar. A favela é, tanto no drama quanto na realidade, -de acordo com a ótica televisiva- o (não) lugar onde habitam os que de alguma forma precisam ser inoculados. Corpo estranho em uma ordem que se deseja saudável. O doente precisa ser isolado e neutralizado em todos os aspectos sociais que o envolvem, inclusive em sua condição humana. A população negra favelizada é tratada no drama como a portadora de problemas cujas soluções passam ao largo de medidas políticas e sócio-educacionais. Seu problema é caso de polícia! A série, deste modo, faz jus ao ideário hegemônico dos meios de comunicação de massa no Brasil nos quais, de acordo com o comunicólogo Muniz Sodré, "a forma televisiva pode instaurar-se fora do espaço técnico da tevê stricto sensu e ganhar as ruas como um meio de artificializar o real e, por aí mesmo, de neutraliza-lo imaginariamente, inclusive em nível político".
A partir do trecho da fala de um dos personagens, um policial branco e corrupto, podemos ter uma espécie de razão de ser que paira sobre toda a trama: "cada bandido que morre é menos um". O mesmo que dizer que para cada bandido/traficante negro-nordestino que é higienicamente exterminado pela polícia (Estado) têm-se a garantia, mesmo que provisória, da ordem. Em uma perfeita demonstração do racismo tipicamente brasileiro televisionado temos a sensação de que, de fato, todo bandido já nasce negro e de que todo negro morador de favelas e periferias já é ou, tornar-se-á, essencialmente, um marginal.O aparente denuncismo da série revela sua sutileza na fixação de lugares psicossociais aos negros e marginalizados na estética social e urbana que a tevê não se cansa de pregar.
O único ponto a favor da série fica por conta da trilha sonora do rapper MV Bill, que interpreta com seriedade e ganho de causa o drama nada ficcional das favelas e periferias cariocas e, por extensão, do Brasil inteiro em sua esmagadora maioria negra e pobre. Na TV, especialmente em determinados canais, a arte não imita a vida. Ela a falsifica de acordo com a estética que quer irradiar em um jogo de simulações onde o falso ganha estatuto de verdadeiro e quem sai perdendo nem sequer entra em cena.
*Marcio André dos Santos é coordenador geral de Afirma Revista Negra Online e coordenador de pesquisas e projetos de Afirma Comunicação e Pesquisa.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
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