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TV Mercosul: tevê sem fronteiras

Autor original: Felipe Frisch

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O movimento de formação dos grandes blocos econômicos começa a tomar corpo nos meios de comunicação de massa. Ainda sem data exata, deve ir ao ar, no mês de julho, um canal de televisão que vai dar a chance de produtores brasileiros, argentinos, paraguaios e uruguaios mostrarem a sua cara. É a TV Mercosul, que também não vai excluir produções de outros países parceiros, mesmo que não pertençam formalmente ao bloco.


A idéia, que surgiu há um ano num workshop de cinema e vídeo em Buenos Aires, resultou numa associação sem finalidades de lucro, formada por cerca de 40 cineastas, e com sede no Rio de Janeiro. A constatação geral na ocasião era de que muita coisa boa estava sendo produzida nos países do bloco, mas que não havia espaço para esse trabalho aparecer. Os pensadores do novo canal não querem ditar o que vai ao ar ou não. Num clima mais do que democrático, querem ser apenas seus organizadores.


Enquanto pega fogo a discussão em torno da constituição de um bloco econômico das “Américas”, o diretor executivo do novo canal, Alexei Waichenberg, fala, em entrevista exclusiva para a Rets, da importância de uma real integração entre os países. Para ele, a já vulgarizada ”globalização” não passará de farsa se os blocos formados forem exclusivamente econômicos, e não valorizarem a integração cultural entre os países envolvidos. E lembra “não seguiremos receitas comerciais e não aceitaremos manipulação”.


Rets - O projeto da TV Mercosul está sendo pensado há quase um ano. Que perspectivas fazem crer que sairá do papel em julho?


Alexei Waichenberg - Nesse ano de trabalho reunimos os melhores profissionais do mercado para desenvolver um projeto consistente, compromissado com seu objetivo maior que é a integração das identidades culturais dos países que formam o Bloco ou que venham a fazer interface com o Mercosul. Viajamos toda a América Latina consolidando parcerias e avaliando os estoques de programação disponíveis. Fizemos estudos de viabilidade tecnológica, definimos a grade de programação, participamos de feiras e congressos e conhecemos nossos potenciais investidores. Para um projeto dessa natureza, continental, um ano parece bem pouco. Ademais, em abril de 2000 estávamos reunidos em Buenos Aires para demonstrar as potencialidades da indústria áudio-visual fluminense, quando elaboramos uma carta-compromisso na qual a criação da Rede Difusora era o item prioritário. Tão logo voltamos ao Brasil começamos a trabalhar e, em apenas dois meses, estava fundada a Sociedade. Hoje, estamos prontos para estabelecer os primeiros acordos comerciais e tornar realidade a operação da TV Mercosul. Não queremos, entretanto, fixar datas para a primeira transmissão. A distribuição, que também é continental, ainda depende de algumas parcerias. Acreditamos, por estimativa, que até julho já teremos a configuração mínima necessária para estarmos aptos a entrar no ar em caráter experimental.


Rets - Países como Panamá, Cuba e Chile vêm sendo cotados para participarem futuramente da programação do canal. A negociação com Cuba não pode interferir nos diálogos dos países do Mercosul com a Alca e os Estados Unidos? É proposital forçar essa discussão?


Alexei Waichenberg - Nós fomos procurados por esses países. Cada um, à sua maneira, demonstrou interesse real em fazer parte do projeto. Não queremos provocar nenhum tipo de discussão desagregadora nem tão pouco pretendemos nos envolver em políticas protecionistas ou de qualquer natureza, acreditamos no Mercosul e reforçamos o conceito de que, sem integração cultural, nenhum bloco econômico é viável.


Rets - Pode-se dizer, então, que a TV Mercosul na verdade pretende, no futuro, uma integração que vai além da aliança entre os países realmente envolvidos no Mercosul. Como está sendo a receptividade desses outros países - Cuba, Panamá e Chile, por exemplo?


Alexei Waichenberg - Não estamos apegados a siglas ou tendências. Estamos provocando sim uma discussão mais profunda da necessidade urgente de difusão daquilo que é nosso, que tem nossa identidade. Há séculos permitimos ser invadidos culturalmente e com isso não queremos condenar nenhum tipo de intercâmbio cultural com outros continentes, o fato é que essa é uma via de duas mãos. Precisamos nos apresentar melhor aos nossos vizinhos e mostrar ao resto do mundo que temos qualidade, criatividade e conteúdo. A diversidade em nosso continente tem um ingrediente devastador, o valor do homem e da emoção. Todos os países são bem vindos. Nossa moeda é a troca, nosso capital é cultural.


Rets - A língua não será uma barreira na programação? Que instrumentos estarão sendo utilizados para facilitar esse diálogo, e não criar mais fronteiras ainda?


Alexei Waichenberg - Quando fizemos o workshop em Buenos Aires, no ano passado, assistimos, no último dia, ao filme Bossa Nova - do Bruno Barreto. O filme, se não me engano, estava dublado em inglês e legendado em espanhol. Éramos muitos brasileiros. Alguns privilegiados pelo domínio do espanhol, é verdade, mas eu não me incluo nesse grupo e confesso que não tenho tido dificuldades em me reunir com os produtores de toda a América Latina. Não creio que o idioma seja propriamente uma barreira. Precisamos nos acostumar, espantar a preguiça. É possível que o Brasil leve a pior nesse sentido - somos os únicos com idioma português. Queremos cruzar, transpor fronteiras e a televisão, como um poderoso veículo de comunicação, vai cumprir esse papel. Para a fatia da programação onde a informação precisa é fundamental, como no telejornalismo, estaremos disponibilizando edições em português e espanhol.


Rets - Em vista dos modelos de blocos econômicos que vêm se formando, especialmente nas últimas semanas, você vê como possível uma integração neste nível para a formação de uma "TV Alca" hipoteticamente?


Alexei Waichenberg - O modelo a que precisamos estar atentos é o de gestão desses canais de comunicação que pretenderem representar Blocos Econômicos. A TV Mercosul não terá a minha cara ou a de qualquer um de seus dirigentes. Nosso projeto está fundamentado na melhor representação e apresentação do que é patrimônio cultural de cada unidade produtora. Não seguiremos receitas comerciais e não aceitaremos manipulação.


Rets - Qual será a participação do terceiro setor, das organizações da sociedade civil, no novo canal?


Alexei Waichenberg - A programação do canal é bastante diversificada. Estamos contando com os olhos atentos do terceiro setor para enxergar e mostrar o que somos, assim como vamos dispor da contribuição governamental dos países que se propuserem a oferecê-la e do investimento da iniciativa privada. Nossa sociedade tem o firme propósito, tanto através da televisão como via Internet, de gerar negócios, postos de trabalho e renda, proporcionar entretenimento, oferecer serviços, utilidade pública, informação e sobretudo, integração cultural, como disse anteriormente. Desde a Revolução Industrial um modelo de sociedade vem convivendo bem com a diversidade de regimes políticos e econômicos e servindo à liberdade e à subsistência do homem: o cooperativismo. Eu acredito estar na cooperação o melhor caminho para lograrmos êxito.


Rets - Que diferença o canal poderá ter em relação aos canais convencionais? Por ser dirigido por cineastas, ele propõe um novo modelo de televisão?

Alexei Waichenberg - O canal vai trazer algumas novidades como o telejornalismo pulverizado nos inter-programas. A programação filosófica é bastante diversificada e os programas acabam sendo sempre inovadores, até porque estaremos recebendo material de todos os cantos do continente. O canal não será dirigido apenas por cineastas, apesar de termos reunido alguns dos melhores em nossa sociedade. Só como exemplo, nosso presidente, Fernando Portella, é um empresário de marketing cultural e eu sou radialista e produtor de vídeo. Nosso Conselho de Programação é bastante eclético. A colaboração de cineastas, como Luiz Carlos Barreto e Gustavo Dahl, nosso Diretor de Programação, é sempre um diferencial de qualidade e experiência para uma proposta deste porte. No entanto, como disse em outra oportunidade, a TV Mercosul vai ser feita de fora para dentro. Nós seremos meros agentes organizadores.


Rets - Qual foi o critério de seleção para os temas sobre os quais os programas tratarão? Quem atualmente está, e quem no futuro estará, selecionando a programação? Serão privilegiados programas que envolvam diretamente o bloco e sua formação?


Alexei Waichenberg - Depois de um levantamento dos estoques de programação feito em cada um dos países que compõem o bloco, nosso Diretor de Programação Gustavo Dahl desenhou, com a colaboração do Gerardo Lucas e Fernando Barbosa Lima, aquela que chamamos de Grade Experimental de Programação. Essa grade determina os temas dos programas a serem apresentados nessa ou naquela faixa de horário. Depois de uma seleção feita pela sua equipe, o Gustavo vai propor a programação para um Conselho formado por representantes de vários segmentos da cultura. O Mercosul tem seu DNA, sua planta baixa, mas ele sim ainda está no papel. Cada iniciativa, cada tijolo que pudermos usar para sua consolidação será bem recebido por nós. É importante ressaltar que nos primeiros dois anos só iremos produzir telejornalismo, todo o resto da programação é produto de uma engenharia feita a partir dos estoques culturais já existentes, na sua maioria inéditos.


Rets - Como os cidadãos comuns e produtores, brasileiros e do Mercosul, poderão estar participando, contribuindo para a programação?


Alexei Waichenberg - Nesse primeiro momento é importante que os programas a serem propostos para a TV estejam prontos, pois como disse na sua pergunta anterior não produziremos nada nos dois anos iniciais e nem contrataremos produções. Depois, é preciso que respeitem a qualidade broadcasting praticada hoje no mercado (BETACAM ou Digital). Por último, os programas devem ter relação com os temas propostos e duração compatíveis com a grade. A melhor maneira de contribuir é enviar uma sinopse do programa proposto, suas características, para o e-mail da programação: diprog@tvmercosul.com e aguardar um contato do responsável pela seleção de programas.


Rets - O que essas culturas têm de comum que poderá dar uma cara à sua programação? E o que têm de diferente para o canal estar sempre trazendo novidades?


Alexei Waichenberg - A programação não tem um rosto definido, não pode ter. Nossa proposta é apresentar com qualidade e dinamismo toda sorte de programas que se encaixe na filosofia da grade. A identidade está nas costuras, vinhetas, formatos etc. Trazer novidades não será um desafio. Com tantos enlatados, mal sabemos que gosto tem a comida caseira. Conhecemos muito pouco nossos vizinhos. Essa televisão tem o espírito do latino e a criatividade é uma de nossas maiores virtudes.


Rets - Como as pessoas poderão ter acesso ao canal? Cabo? (Se sim, que outras formas podem e estão sendo pensadas futuramente para fortalecer o sentimento de democratização entre as culturas?)


Alexei Waichenberg - Cada país terá seu próprio canal distribuído por cabo, inicialmente. O sistema de distribuição das tevês fechadas é muito diferente no Brasil em relação a países como Argentina e Uruguai, por exemplo. Ainda estamos estudando a viabilidade do DTH. Além disso, a TV Mercosul vai estar disponível na Internet, através de um grande portal. Da democratização da informação e dos conteúdos depende o trabalho de integração das culturas.


Rets - Como você vê a atuação das iniciativas que tentam promover, de fato, a integração - sobretudo cultural - entre os países? Existe alguma que mereça destaque?


Alexei Waichenberg - Vejo iniciativas isoladas. Esse é o primeiro veículo de comunicação de massa proposto para integrar o bloco. Quando falamos em cultura não falamos apenas em manifestações artísticas, mas nos costumes, crenças, hábitos e conhecimentos adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Tylor definiu mais ou menos assim a cultura em 1871. A cultura vem antes de tudo e é o mais importante diagnóstico a ser feito antes de qualquer iniciativa para promover a integração política, social ou econômica.


Rets - Na sua opinião, a questão da integração cultural é prioritária em relação à própria integração econômica? Como uma se relaciona com a outra?


Alexei Waichenberg - Como eu acabei de dizer deve-se entender a questão da integração cultural como ponto de partida. Dela depende a consolidação econômica do bloco.


Rets - Tem se falado muito atualmente na Internet como ferramenta de integração entre culturas. Um projeto como esse mostra portanto que a tevê ainda tem bastante a contribuir. Que diferenças, positivas e negativas, você vê entre os dois meios para atingir esse objetivo?


Alexei Waichenberg - A Internet é hoje a maior rede de comunicação do mundo e uma poderosa ferramenta para integração entre culturas. Precisamos ver com cautela, entretanto, sua atuação no ramo de negócios, ainda balançada pelo boom de especulações nos últimos dois anos. Ao contrário do que muitos pensam, o sucesso da mega rede está na prestação de serviços, na disponibilização de conteúdos, acessibilidade remota ao conhecimento e em casos específicos e muito particulares de entretenimento. O conhecimento e o capital cultural são os valores que mais crescem no mercado mundial. São mídias diferentes, mas complementares. Não acredito nem mesmo nesse temor que andou assombrando alguns dirigentes de tevês que diziam acreditar na Internet como uma mídia que substituísse a televisão. Não foi assim com o rádio quando surgiu a televisão. É claro que algumas adaptações devem ser feitas, mas nada vai substituir a televisão. A tevê integra as famílias e é até capaz de determinar os horários e a rotina dos lares onde está instalada. Por mais evoluída que venha a ser a Internet, por mais que tenhamos imagem e voz em tempo real, a rede virtual serve àquele que quer se aprofundar nessa ou naquela matéria que viu no jornal da tevê. Serve para entrar em contato com a produção, mandar sugestões. Serve como um grande banco de dados, para que se possa criar uma tevê pessoal, onde podemos selecionar o que desejamos ver e quando podemos fazê-lo. Serve até para fechar negócios, interagir com as outras mídias. Será que deixamos de ir ao cinema quando inventaram o vídeo-cassete? O Portal da TV Mercosul vai tornar disponível ao mundo um conteúdo precioso de informações e serviços no nosso continente.


Rets - O lançamento do canal será acompanhado pelo lançamento do site. Como uma linguagem complementa a outra? Ou a página será apenas uma ferramenta institucional?


Alexei Waichenberg - Suas perguntas são tão pertinentes que eu acabo me antecipando. As mídias vão se complementar. São linguagens sedutoras, mas bastante diferentes. A Internet é solitária controlada pelo usuário, a tevê contracena com seu espectador.


Rets - Como será a relação da TV Mercosul com as tevês comerciais locais?


Alexei Waichenberg - Excelente. Não viemos para competir com ninguém, mas para reunir as grandes idéias das tevês de todo continente, públicas ou privadas, comerciais, educativas, enfim reunir tudo que mostra a cara de nossa gente, tudo que nos faz conhecer um ao outro. Afinal, somos ou não somos a nossa história?

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