Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original:
André Urani*
Mauriti é um município de cerca de 40.000 habitantes que fica na micro-região do Barro, sudeste do Ceará, a uns 500 quilômetros de Fortaleza. O povo de lá, muito sábio, bolou um ditado segundo o qual, para todas as coisas, é preciso ter ciência, consciência e paciência. Quem me contou foi o Jorge Wilson, da Prefeitura de lá, ao comentar uma palestra que eu tinha acabado de fazer em Fortaleza, a convite do Governo Estadual, sobre estratégias de combate à desigualdade.
Embora o ditado se aplique para muita coisa (muita mesmo), vou me limitar, aqui, a recuperar o sentido do comentário do Jorge em relação a algumas coisas que eu havia dito.
Ciência
Para combater a desigualdade é preciso ter ciência. Por um lado, sem um diagnóstico claro, elaborado a partir de uma análise detalhada e exaustiva das informações disponíveis, as políticas públicas nesta área (e em qualquer outra) só serão eficazes por acaso. Precisamos conhecer as suas causas, para poder enfrentá-las, mas também mensurar suas conseqüências (sobre a pobreza, o crescimento econômico, a violência etc.), para saber minorá-las. Por outro, estas políticas têm que ser avaliadas e monitoradas continuamente, desde o momento em que são lançadas. Finalmente, dado que as causas e as conseqüências da desigualdade não são estáticas (por exemplo, em relação às causas, o termo digital divide nem sequer existia há dez anos atrás; em relação às conseqüências, a desigualdade hoje atrapalha o crescimento econômico bem mais que no passado), elas têm que ser desenhadas e redesenhadas periodicamente (não confundir com descontinuadas sistematicamente), em função da conjugação de diagnóstico, avaliação e monitoria.
Consciência
Para combater a desigualdade é preciso ter consciência. Consciência de que este é o principal problema que existe em nossa sociedade. Parafraseando Ricardo Henriques, não há nada de natural, mas apenas de vergonhoso, numa desigualdade do tamanho da nossa. Nós todos, pobres e ricos, precisamos nos conscientizar que a desigualdade é a nossa maior vergonha. Que ela não é boa para ninguém, que não serve para nada – a não ser para atrapalhar a nossa vida. Se nossa desigualdade fosse condizente com nosso grau de desenvolvimento econômico, haveria milhões de brasileiros a menos passando necessidades (no plural mesmo, pois não é só a fome: é também a doença, a ignorância, o desconforto, a precariedade do transporte, a insegurança etc.). Mas não é só isso não: ela deixa a nós, “bacanas”, medrosos e inseguros; diminui a esperança e a qualidade de vida (nossas vidas); limita nosso mercado doméstico; atravanca nossa competitividade externa; nos apequena e nos acovarda.
Precisamos conscientizar os governos (os três níveis de governo) que o que queremos deles é que priorizem, em suas políticas, o combate à desigualdade. À desigualdade, e não à pobreza – faz a maior diferença. Não para acabá-la, o que não faria sentido nem seria justo, mas para levá-la a patamares civilizados. Precisamos crescer, sim, precisamos também de políticas assistenciais eficazes, mas mesmo que a nossa principal preocupação seja a pobreza, o foco tem que ser na desigualdade. Mudando radicalmente a incidência da carga tributária e do gasto público social (dando mais vez aos que tem pouca ou nenhuma voz, como as crianças), criando incentivos capazes de fazer os mercados funcionarem melhor (reforçando a regulação sobre os serviços públicos, desburocratizando o reconhecimento formal da propriedade, ampliando direta ou indiretamente a infra-estrutura etc.), democratizando o acesso à educação de boa qualidade, à saúde, à tecnologia, ao crédito etc.
O setor privado também tem que se conscientizar. Por um lado, que uma desigualdade menor é estratégica para sua própria sobrevivência, o que o deverá levar a deixar para trás as tradicionais práticas assistenciais tópicas e efêmeras, ditadas essencialmente pela culpa, para vestir de forma mais firme e decidida do que tem feito aqui a camisa de sua própria responsabilidade social. Por outro, que os pobres podem ser excelentes clientes, desde que se chegue a eles com produtos e serviços que façam sentido para eles. Ou seja, tem que deixar de ser preconceituoso. O setor financeiro, por exemplo, tem que se conscientizar de que existe lucro possível nas microfinanças, como mostra a experiência da Riocred, que em dois anos de existência alcançou um patrimônio líquido positivo emprestando sem burocracia e a taxas de juros relativamente baixas (inferiores às registradas nos mercados de crédito pessoal e ao consumidor) a microempresários e trabalhadores autônomos de baixa renda.
O terceiro setor tem que ter consciência. Consciência de que pode ter um papel decisivo na transformação da sociedade brasileira. Por sua intrínseca generosidade, por sua criatividade, por sua capacidade e seu arrojo de estar onde e quando os outros não estão. Consciência também de que tem que buscar ser mais transparente aos olhos dos demais segmentos da sociedade, de que só tem a ganhar se for capaz de atuar em redes não apenas intra – Terceiro Setor mas com governo e setor privado e de que a vaidade, assim como a inveja, é uma m.
A mídia também tem que se conscientizar. Se conscientizar de que é ela quem faz corações e mentes e de que ela tem que cumprir o seu papel de informar. Coisa que ela nem sempre faz; um exemplo: o capítulo sobre segurança do Relatório do Desenvolvimento Humano da Cidade do Rio de Janeiro mostrou que a violência, no Rio, atinge sobretudo os pobres. Quando foi divulgado, recebeu grande destaque nos “grandes jornais”, mas dentre os “populares” de grande circulação na Cidade (e, portanto, os veículos de imprensa mais importantes para as principais vítimas da violência), um se omitiu por inteiro a tratar do assunto e o outro até que tratou, mas deu destaque mesmo ao costumeiro proselitismo do jovem Governador em assuntos desta área. Ou seja, quando se descobriu e se divulgou quais são as principais vítimas potenciais da violência no Rio, estas não tiveram oportunidade de ficar sabendo.
O mundo acadêmico, por fim, também tem que descer do pedestal e chegar mais junto da “vida como ela é”. Até e sobretudo para nos ajudar a entender que coisa é esta. Parafraseando Che (ainda que às avessas), tomar consciência, neste caso, é sujar as mãos, sem perder o rigor jamais.
Todos têm que ter a consciência, enfim, de que nenhum é capaz de dar conta do desafio sozinho. Temos que encontrar um jeito para que eles tenham a capacidade de interagir de forma contínua e a humildade de compartilhar protagonismos, num espaço que certamente não é estatal mas que possa ser reconhecido por todos como público.
Paciência
Para que isto tudo possa acontecer, finalmente, precisamos todos ter muita paciência. Não se trata, de maneira alguma, de reembarcar na velha estória do bolo do Delfim, pelo contrário. É bom que tenhamos claro que mesmo que sejamos capazes, desde já, de virar o jogo e de botar todos os atores relevantes priorizando a redução da desigualdade em suas ações e atuando cooperativamente, vai levar tempo, muito tempo, para chegarmos a um patamar que possamos considerar decente. Políticas contra a desigualdade não são como as macroeconômicas, que são capazes de mudar as vidas de muita gente de uma hora para a outra (e até ter algum efeito, marginal, sobre a desigualdade). Temos que nos dar o luxo de poder errar, e de aprender com os nossos erros.
Parafraseando Nelson Rodrigues e, mais uma vez, Ricardo Henriques, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”. Sua superação exige que saltemos etapas; já o fizemos com sucesso, no passado, no campo do crescimento econômico (que também precisamos retomar), temos que fazê-lo agora no campo ainda mais árduo da desigualdade.
Ainda assim, não é coisa que se resolva no prazo de um mandato de governo (qualquer nível de governo), possivelmente nem de dois.
P.S.: visto que citei tanto o Ricardo Henriques, o livro organizado por ele recentemente (“Desigualdade e Pobreza no Brasil”) é leitura obrigatória para todos os interessados nestes temas. Infelizmente, ele só pode ser encontrado na livraria do IPEA (Av. Presidente Antônio Carlos, 51 – 14.o andar, Centro, Rio de Janeiro).
* André Urani é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Presidente do Conselho do IETS - Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade.
Este artigo foi publicado no site no., em 3 de maio de 2001.
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