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Novo imposto estadual afeta o terceiro setor

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

Anna Cynthia Oliveira*


A Constituição de 1988 atribuiu competência aos estados e Distrito Federal para instituir Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e por Doação de quaisquer bens ou direitos – ITCMD(1). A Constituição entrou em vigor em 1° de março de 1989, mas a maioria dos estados continua tributando apenas a transmissão “causa mortis” ou por doação de bens imóveis e direitos sobre eles. Só agora começam a surgir as leis de ITCMD, afetando as entidades que compõem o chamado terceiro setor na medida em que oneram as doações recebidas a qualquer título. É urgente que organizações da sociedade civil, e principalmente suas redes e associações, se articulem em frentes de vigilância e lobby: influenciando deputados e governo estadual, se há anteprojeto de lei em fase de elaboração, ou denunciando falhas e excessos, se há maus projetos de lei em tramitação ou na presença de lei inadequada, já promulgada.


Em São Paulo, a lei estadual n° 10.705, de 28.12.00, encontra-se em vigor desde o dia 1° de janeiro e um mundo de entidades sem fins lucrativos continua a ignorá-la. Esta lei, de iniciativa da área de arrecadação do governo, é a maior expressão de miopia política de que se tem notícia, no País, desde 1995(2). E claro, nunca é demais lembrar, outros estados podem se inspirar nela... Por isso a urgência da articulação, ampla e em todo o País, sobre essa matéria. Também por isso, vale a pena examinar a lei paulista e conhecer muito bem alguns argumentos de resistência – a ela e a qualquer outra que pretenda impor disposições semelhantes.


ITCMD e a Lei paulista


É importante saber que algumas normas da lei paulista n° 10.705 são próprias desse tipo de imposto; assemelham-se a legislação encontrada em outros países, cumprem o que dispõe a Constituição Federal(3), e serão comuns a toda lei de ITCMD, em qualquer estado. Tanto maior a utilidade de conhecê-la, usando-a como referência numa leitura dirigida.


O ITCMD incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito a título de sucessão ou de doação (lei 10.705, art. 2°). Mais explicitamente, aplica-se à transmissão (lei 10.705, art. 3°):


§ de imóveis situados no estado de São Paulo, ou de seu domínio útil ou direito relacionado a eles (por ex., o usufruto);


§ e dos bens móveis, títulos e direitos em geral (isto é: dinheiro ou crédito, ações, licença para uso de software, direitos autorais), quando o doador tiver domicílio no estado de São Paulo.


No primeiro caso, incide o imposto ainda que doador e donatário tenham domicílio fora de São Paulo e o ônus de pagá-lo cabe ao donatário. No segundo, quatro situações são possíveis:


a) se doador e donatário têm domicílio em São Paulo, aplica-se o imposto que deve ser pago pelo donatário;
b) mas as doações originárias de São Paulo em favor de donatários de outros estados são tributadas em São Paulo, e o pagamento do imposto cabe ao doador;
c) já as doações provenientes de outros estados para donatário domiciliado em São Paulo são excluídas do ITCMD paulista, pois serão taxadas pelo estado de origem;
d) por outro lado, as doações de fonte estrangeira estão por enquanto fora do alcance do ITCMD de qualquer estado – segundo a Constituição, o assunto será tratado por lei complementar.


Assim, doações da Fundação Telefônica a qualquer entidade do Brasil passam a ser tributadas pelo imposto paulista; mas não as do Instituto Xerox nem as da Ashoka. Por quê? Porque a Fundação Telefônica tem sede em São Paulo, enquanto o Instituto Xerox está no Rio de Janeiro e a Ashoka libera recursos diretamente dos Estados Unidos. O exemplo da Fundação Telefônica se aplica a qualquer outra instituição, empresa ou pessoa física que façam doações a partir do estado de São Paulo(4).


Outra norma geral do ITCMD é que o pagamento do imposto cabe, via de regra, ao beneficiário; pela lei 10.705 (art. 7°), seja ele herdeiro ou legatário (bens imóveis), ou donatário (bens móveis, direitos), ou cessionário (se há cessão de direito). Se no entanto a doação se destina a um outro estado, como vimos, quem responde pelo imposto é o doador.


Passando agora a especificidades da lei paulista, o pagamento deve necessariamente anteceder (lei 10.705, art. 18): a transmissão do título de propriedade, na hipótese da doação de qualquer bem com registro em cartório; e a própria celebração do contrato ou termo de doação de outros bens, dinheiro ou direitos – incluindo-se o contrato por instrumento particular e até as doações ajustadas verbalmente, com o mandamento de que “todo aquele que praticar, registrar ou intervier em ato ou contrato relativo à doação de bem está obrigado a exigir dos contratantes a apresentação da respectiva guia de recolhimento do imposto” (Ibid., § 5°).


O artigo 6° da lei 10.705 isenta do imposto a transmissão “causa mortis” se o patrimônio total do espólio for de até 7.500 UFESP (R$ 73.725); e doações no valor de até 2.500 UFESP (R$ 24.575). A partir daí, a incidência será (§ único do art. 6° e art. 16): de 2,5% na parcela compreendida entre 2.500 e 12.000 UFESP (R$ 24.575 e R$ 117.960); e de 4% sobre o montante que exceder 12.000 UFESP (R$ 117.960).


O valor base para cálculo do imposto é o valor venal, assim considerado o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação (art. 9°, § 1°). Em se tratando da transmissão gratuita de domínio sobre bem móvel ou imóvel, a base do imposto será igual: a 1/3 do valor do bem para a transmissão de domínio útil; a 2/3, se o que se transfere é o domínio direto; e a 1/3 no caso de usufruto.


Usando alíquotas e limites da lei paulista, podemos ilustrar com doações em dinheiro, mais correntes.


1) Se, por exemplo, a AACD (que em 1999 beneficiou 90.339 crianças portadoras de deficiência[5]) receber uma doação de R$ 150 mil de uma pessoa física domiciliada em São Paulo, fará esse cálculo:


Veja a tabela 01


2) Noutro exemplo, se o GAPA Bahia (respeitado nacionalmente por seus projetos de combate à AIDS) receber R$ 300 mil de uma fundação em São Paulo:


Veja a tabela 02


3) Ou ainda, se o Instituto Socioambiental – ISA (cujos projetos de desenvolvimento sustentável beneficiaram 30 mil pessoas em 1999[6]) receber de uma empresa paulista equipamentos no valor de R$ 500 mil:


Veja a tabela 03


O valor do imposto a recolher, nesses exemplos, pode até parecer suportável porque a alíquota efetiva não é alta. O problema está em sua aplicação universal: a transmissão de bens a herdeiros, familiares e amigos é ato substancialmente distinto da doação a entidades sem fins lucrativos que servem a causas de interesse geral. Nem a ditadura impediu que o Chile reconhecesse isso desde 1965: a lei do “Impuesto sobre las Herencias, Asignaciones y Donaciones” garante a isenção das entidades beneficentes e das que se dedicam à difusão de conhecimentos ou ao desenvolvimento científico.


A surpresa com a Lei


Estimular a distribuição de riqueza privada para benefício público é princípio historicamente consagrado na civilização ocidental, erigindo-se em lei na medida da secularização do Estado e, depois, da filantropia. Um marco exemplar disso é o “Elizabethan Statute of Charitable Uses”, de 1601, na Inglaterra. Este ato da rainha Elizabeth I estabeleceu os fundamentos de caracterização das “charity organizations” (de iniciativa privada e independentes da Igreja Anglicana), que até hoje são categoria privilegiada de OSC no Reino Unido e EUA, figurando também no cenário de Canadá e Austrália. Nesses quatrocentos anos, o incentivo ao fluxo de recursos privados para causas públicas firmou-se como boa política e conquistou adeptos, no mundo desenvolvido.


Uma rápida resenha mostra o atraso da legislação tributária brasileira, com destaque para o estado de São Paulo e sua nova lei.


? Nos Estados Unidos, os incentivos do imposto de renda da pessoa física para a doação de bens e direitos no interesse da coletividade existem desde 1917 e permitem recuperação efetiva de 30%, em média, do custo da doação. Não existe imposto sobre transmissão, mas o imposto sobre propriedade (“estate tax”) é tão alto que os legados e doações de grande monta são lugar comum entre os ricos; do lado da organização donatária, o recebimento se configura como receita ou incremento patrimonial isentos de qualquer imposto.


? O Canadá tampouco tem o imposto sobre transmissão, mas seu imposto de renda inclui benefícios ainda maiores que os dos EUA notabilizando-se por adotar o crédito contra o imposto devido para corrigir o efeito regressivo (maior recuperação para o doador de maior renda) da simples dedução.


? Na Alemanha, heranças e legados assim como as doações de grande monta, feitas por indivíduos ou empresas, são não só dedutíveis do imposto de renda mas também isentos do imposto sobre a transmissão de bens e heranças. O “gift and inheritance tax” alemão tem alíquotas crescentes entre 17% e 50%, mas deixa de incidir se a entidade beneficiária demonstrar que a doação recebida se destina exclusivamente a fins de interesse público.


? O imposto equivalente, no Reino Unido, tem alíquotas de até 40% mas não incide para doações às entidades registradas junto à Charity Commission e a isenção é extensiva a outras organizações qualificadas pela autoridade de arrecadação.


? A legislação da França pode parecer menos liberal, limitando a isenção do imposto sobre transmissões a título gratuito às entidades reconhecidas como de utilidade pública mais um leque estreito de outras organizações. Além disso, a base de incidência do imposto exclui expressamente a transmissão de obras de arte, monumentos, livros, objetos e imóveis de valor histórico ou cultural, desde que destinados a coleções públicas ou às quais se garanta acesso do público em geral.


Comparando com o sistema vigente em qualquer um desses países, os incentivos do imposto de renda brasileiro mostram-se ridículos, exceto pelo tratamento generoso da cultura e do cinema e suas notórias distorções. Já o ITCMD paulista causa espanto: nem a cultura mereceu o mínimo de atenção.


Em todo o hemisfério, vem-se generalizando a percepção do terceiro setor como aliado do Estado no combate à pobreza e à exclusão social. O conceito da “caridade” evoluiu, desde o estatuto elizabetano, junto com os usos e costumes. Além das universidades e estabelecimentos de ensino, além de ambulatórios, abrigos e orfanatos, muitos sistemas legais passaram a privilegiar a produção de conhecimento em variadas frentes, bem como a defesa de direitos das minorias e das próximas gerações.


Mesmo no Brasil, graças ao crescente interesse da mídia, é impossível ignorar a existência e o porte das várias redes que compõem o chamado terceiro setor. A infeliz omissão de OSCs como categoria isenta de donatários, pela lei paulista, é prova de miopia política que se pode aquilatar com alguns dados extraídos do ranking “Filantropia 400”, produzido por Kanitz & Associados e divulgado recentemente no site filantropia.org.(7) Esquadrinhando os dados disponíveis, pode-se saber:


§ Que, das 400 maiores entidades do País, 253 ou 63,25% estão no estado de São Paulo sendo que 127 (ou 31,75% das 400) têm sede na capital;


§ O dispêndio das 253 maiores no estado foi superior a R$ 2,5 bilhão no ano-base considerado pela pesquisa (1999).


§ As 40 maiores entre as maiores paulistas concentraram quase a metade do dispêndio das 253, gastando pouco mais de R$ 1,174 bilhão em benefício de pelo menos 9,3 milhões de pessoas; empregam cerca de 26 mil funcionários e coordenaram o trabalho de mais de 55 mil voluntários.


Embora conceitualmente condenáveis e com todas as ressalvas devidas, os filtros burocráticos existentes na legislação federal –dos quais tem dependido, na prática, o gozo dos maiores benefícios de natureza tributária– poderiam ancorar a isenção do ITCMD paulista. Dentre as mesmas 40 maiores entidades do estado de São Paulo, 36 têm o Registro no CNAS; 37 têm título de utilidade pública federal; 34 têm o mesmo reconhecimento por parte do estado e 38 por seus diversos municípios. Exatamente porque esses filtros privilegiam as entidades de maior porte, não admira que 31 das entidades examinadas (77,5%) tenham os quatro tipos de reconhecimento dos poderes públicos, cumulativamente(8). Em tese haveria ainda a alternativa de, interessando ao estado reforçar a pretensamente inovadora qualificação de OSC de Interesse Público (OSC-IP), remeter à lei federal 9790/99 para a isenção.


 Simples omissão, miopia; talvez não. Podemos estar diante do mesmo vale-tudo de arrecadação que prevalece, desde 95, em Brasília. Os dados consultados não revelam, mas é razoável supor que a principal parcela dos gastos das entidades não hospitalares provenha da receita de doações. E em se tratando do terceiro setor, é preciso ter em mente, doações são receita operacional. Quanto seria possível arrecadar dessas entidades? A base de doadores das gigantes da assistência social pode ser enorme; a pulverização de doações de pequena monta implicaria isenção do imposto pela lei. A situação mais comum nas fundações instituídas por empresas, no entanto, seria exatamente o contrário. O governo paulista talvez pretendesse atingir esse quinhão privilegiado do setor, e com peculiar arrogância –sem consulta pública, sem medir conseqüências– subtrair recursos de programas comprovadamente bem-sucedidos.


Que fazer?


Entidades imunes


No cipoal da legislação vigente para as OSCs brasileiras, sabe-se que uma ínfima parcela tem a segurança de auto-declarar-se “imunes” pela Constituição Federal (art. 155-VI “c” e § 4°). Isso provavelmente se aplica à maioria das 253 entidades paulistas classificadas pelo “Filantropia 400”, desde que se dediquem à assistência ou à educação. Podem levar a vida ignorando o ITCMD, até que venha a visita de fiscalização. Com o suporte de bons registros contábeis e a assessoria de advogados, será fácil demonstrar a não incidência do imposto porquanto as doações recebidas constituem renda ou patrimônio vinculados ao cumprimento de suas finalidades essenciais.


A dificuldade é o reconhecimento do status, de antemão. A imunidade de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços foi instituída para as “instituições de educação e de assistência social” pela Constituição de 1946 e mantida desde então, mas estas categorias nunca foram objeto de tipificação em lei complementar ou por emenda constitucional. Em princípio, e com o endosso de algumas manifestações do STF, a imunidade é um direito das instituições dedicadas à educação formal ou à assistência social desde que, segundo o Código Tributário Nacional (art. 14, I a III): não distribuam “qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título”(9); apliquem “integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais”; e mantenham “escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão(10)".


Mas o que se tem visto nos últimos anos é uma sucessão de tentativas, capitaneadas pela equipe econômica do governo FHC, no sentido de tolher a plenitude desse direito. Na falta de pronunciamento cabal do STF, quem é ou deixa de ser imune é questão juridicamente irresolvida.


Embora ordinaríssima, a Lei 9532/97 expressamente se arvora a regular a imunidade constitucional.


§ Acrescenta importante exigência –ausente do CTN e antes exclusiva à isenção do imposto de renda–: nenhuma entidade pode remunerar, “por qualquer forma, seus dirigentes pelos serviços prestados” (art. 12 § 2°-“a” e art 15 § 1°).


§ Repetindo esforços anteriores, excetua a receita financeira da renda imune a imposto (§1° ao art. 12); mas nenhuma renda destinada às atividades essenciais de entidade imune pode ser tributada, segundo a Constituição.


§ Pior: Disposições que condicionam a fruição do direito chegam a ser “testadas” frente à opinião pública e depois revistas. Este foi o caso da absurda vedação de superávit na apuração de resultado anual, admitida apenas a hipótese de, em existindo, a entidade imune destiná-lo “integralmente ao incremento de seu ativo imobilizado” (Lei 9532/97: §3° ao art. 12 – totalmente reformulado, um ano depois, pela Lei 9718/98).


Com o agravante da incerteza jurídica, é fato que, para a maioria das entidades de educação ou assistência social, esperar visita da fiscalização para então demonstrar a própria imunidade seria uma decisão temerária. Não podem arcar com a consultoria contínua de advogados, não estão seguras da qualidade da própria contabilidade, terceirizada; no limite, uma fiscalização rigorosa levaria um punhado delas à bancarrota.


Por outro lado, centros de pesquisa ou de atividades culturais não correspondem à educação em sentido estreito e talvez por isso estariam excluídos do grupo imune das “instituições de educação”. Conforme as circunstâncias de sua atuação, talvez pratiquem assistência social – tal e qual alguns centros de capacitação para o trabalho, ou de artes e esportes. Já um imenso contingente de entidades lida com direitos e participação política, e não oferece nenhum serviço direto a certas faixas da população. Na prática, a caracterização de qualquer dessas entidades como “instituição de assistência social” fica a depender do reconhecimento do CNAS, segundo as diretrizes da LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social).


No mundo de entidades a que popularmente se chama terceiro setor, por conseguinte, a imunidade deveria abraçar a muitas mas sua discussão somente anima uma minúscula minoria. Uma minoria composta pelas maiores organizações, em volume de recursos, as quais podem se dar o luxo de ignorar o ITCMD paulista. Se o governo mirava esse grupo, com o intuito de fazer caixa, teve péssima pontaria.


Doação ou cooperação?


Importantíssima forma de captação de recursos por OSCs é a conquista de apoiadores para o desenvolvimento de projetos específicos. É raro encontrar, entre as ONGs da ABONG, por exemplo, a captação de doações para uso indeterminado; aliás, uma dor de cabeça permanente neste segmento é a escassez de recursos em “apoio institucional” – assim entendidos os que se podem destinar à remuneração de custos fixos, inclusive salários de funções administrativas, ou do trabalho extra que atividades estratégicas imprescindíveis requerem para maior eficácia da atuação. Também entre as transferências feitas a OSCs por fundações e outros membros do GIFE, ou ainda por empresas, em geral, o mais freqüente é o financiamento de atividades bem determinadas, com metas detalhadas e cronogramas de execução. Os contratos que documentam esses aportes incluem a obrigação de prestar contas, e é cada vez mais comum a exigência de auditoria externa. Sendo assim, cabe a pergunta: que negócio jurídico é este?


A discussão técnica nessa matéria tem-se limitado a diferenciar “doações” e “doações com encargo”, tratando sempre de doadores e donatários, sem questionar a essência da relação. A essa visão tradicional responde a lei paulista: a doação com encargo está sujeita ao ITCMD como se não o fosse (lei 10.705, § 3° ao art. 2°), e fim de conversa.


Mas é forçoso admitir que a qualidade das relações mais freqüentes foi-se tornando outra. Estamos diante do apoio ao projeto X, e não à organização A ou B (aliás, se o projeto pertence a um consórcio de entidades, a quem competiria pagar o imposto?). “Doador” e “donatário” na verdade COOPERAM para atingir objetivos desejados por ambos, nos termos de projeto ou série de atividades predeterminados. Uma parte oferece recursos materiais, e cada vez mais também humanos (horas de discussão, planejamento e avaliação conjunta, ou até o trabalho de agentes voluntários mobilizados pelo “cooperante”); a outra parte administra esses recursos e detém a responsabilidade geral pela execução.


O mesmo fenômeno, visto por outro ângulo: para as OSCs que recebem apoio financeiro de fundações e outras fontes internacionais, tornou-se comum assistir à substituição do termo “grant”[xi] por referências a “partnership”. Nem sempre a novidade formal corresponde a inovações de conteúdo, mas em tese trata-se de uma renovação das relações tradicionais, precisamente entre doador (“grant maker”) e donatário (“grantee”), implicando maior envolvimento do primeiro no desenvolvimento dos projetos apoiados e a cooperação em mão dupla entre as partes. A noção de parceria tem feito muitos adeptos no Brasil, até no governo FHC, embora aqui o uso do termo raramente reflita a realidade das relações. Do lado de algumas empresas e fundações, propaga-se o paradigma do “investimento social” em substituição à filantropia. Embora gere desconfiança em círculos de OSCs, pode-se enxergar aí uma transição conceitual relevante para o reconhecimento recíproco (mercado e terceiro setor), até que um dia se alcance a desejada “mão dupla” de verdadeiros parceiros institucionais.


Este cenário real crescentemente se afasta da fórmula clássica “doação = liberalidade”, abraçada pelo Código Civil, que as leis estaduais de ITCMD viriam agora atingir. Reconhecer a novidade independe de manifestação de autoridade pública, pois o mesmo código garante enorme liberdade de negociar e contratar no âmbito privado. Cooperantes e parceiros podem designar o instrumento de expressão da sua vontade como “Contrato de Cooperação para Desenvolvimento do Projeto X”, alinhando as obrigações de parte a parte, e formalizar com isso o que de fato já não se confundiria, essencialmente, com uma doação.


Quando a cooperação é com o Governo


Outra questão pertinente à natureza dos aportes a OSCs e o ITCMD diz respeito às relações entre essas entidades e organismos do governo. É comum a remuneração, pelo Estado, de serviços prestados à população por entidades de certas áreas de atuação; o convênio é instrumento clássico para isso. Ocorre que os convênios também são usados para financiar projetos que não correspondem ao atendimento direto e mensurável de beneficiários. Em ambos os casos, é de presumir que o governo paulista reconheça que o conteúdo dessas relações não se confunde com as doações sujeitas ao ITCMD. Tampouco deveria haver imposto sobre aportes recebidos por OSC-IPs no cumprimento de Termos de Parceria firmados com o governo local. Mas, e o que dizer do anacrônico financiamento por “subvenções” e “auxílios”?


O fato é que a lei 10.705 não excetua expressamente as transferências feitas pelo estado de São Paulo ou qualquer das prefeituras paulistas a entidades de seu interesse. Aplicando-se a regra geral, caberia a elas o ônus do imposto.


Conclusão


Como se vê, a lei 10.705 ignorou questões cruciais. Esqueceu o terceiro setor completamente, e não resguardou sequer a conservadora aliança entre governantes e patronos das artes e cultura. Os maiores estabelecimentos de ensino e as organizações assistenciais de peso estarão excluídos do alcance do imposto pela imunidade. Em boa medida, as organizações da sociedade civil trabalham em regime de cooperação e parceria, e tampouco serão afetadas. Por descaso ou precipitação, fica claro que há falhas na lei. Ao terceiro setor paulista, resta exigir do governo que as reconheça e empreenda esforços para saná-las.


Nos estados onde até agora não se aprovou uma lei equivalente, é preciso que OSCs, instituições doadoras e imprensa dediquem atenção imediata a essa matéria.


*Anna Cynthia Oliveira é consultora independente e colaboradora da ABONG, RITS e CETS/FGV. Escreveu “Terceiro Setor: Uma agenda para reforma do marco legal” (Conselho da Comunidade Solidária / BID / Unesco / Fundação Banco do Brasil, Brasília, 1997), “La Autorregulación de las OSCs” (Fundación Arias, San José, 1998) e “New law offers Brazilian public purpose non-profits privileged status but few privileges” (Alliance / Charity Aid Foundation, Londres, setembro 1999), entre outros estudos publicados.


Notas:


(1) CF-88, art. 155 e inciso I (com redação dada pela Emenda Constitucional n° 3, de 17.03.93). 


(2) Com a aprovação das leis federais n° 9249 e 9250, cortando drasticamente a dedução de doações no cálculo do imposto de renda.


(3) CF-88, art. 155-I e parágrafo 1° (redação da Emenda Constitucional n° 3).


(4) Domicílio - Da pessoa física: confunde-se com o local de residência (Cód. Civil, arts. 31-34). Da pessoa jurídica, “o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial em seus estatutos ou atos constitutivos” (Cód. Civil, art. 35); sendo que: § tratando-se de pessoa jurídica de direito privado com diversos estabelecimentos em lugares diferentes, “cada um será considerado domicílio para os atos nele praticados” (Idem, ibid., § 3°) § e “[se] a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder” (idem, ibid., § 4°).


(5) Fonte: Filantropia 400, Kanitz & Associados.


(6) Idem.


(7) Em que pese a dificuldade de manejar esses conceitos, pode-se afirmar, com base em literatura comparada, que hospitais e fundações de empresa não correspondem propriamente à noção de organizações da sociedade civil (OSCs). Das 40 gigantes do estado de São Paulo, uma meia dúzia seria excluída com essa visão. Por outro lado, organizações assistenciais compõem, sim, a esmagadora maioria das entidades do “Filantropia 400” (embora as 40 maiores de São Paulo incluam tanto o ISA como o CENPEC, pertencentes ao segmento especial das ONGs, ou ainda o Instituto Ayrton Senna, membro do GIFE). A noção de “terceiro setor” em voga no Brasil (i.e.: imenso universo sem fins lucrativos, excluindo-se apenas as aberrações) abriga muito bem toda essa heterogeneidade, útil às vezes, como agora. Para enfrentar o absurdo do imposto paulista –e de outros estados, atraídos pela fórmula–, convém centrar pressão a partir de uma frente ampla. 


(8) A pesquisa não informa sobre o mais difícil entre tantos títulos, o Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos – necessário ao gozo da isenção constitucional da contribuição patronal ao INSS e da CPMF.


(9) Redação dada pela Lei Complementar n° 104, de 10.01.2001.


(10) Requisito injustamente interpretado pelo Fisco como exigência de escrituração comercial completa.


(11) Tal e qual o indevido uso de “convênio” para as relações privadas, no Brasil. Originalmente “grant” designava aportes governamentais; o uso corrente é como sinônimo de doação, embora “donor” e “donee” sejam as expressões adotadas quando o doador é pessoa física.







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