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Quando interesses comercias valem mais do que a vida humana

Autor original: Marcos Lobo

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Em recente comunicado enviado a diversas organizações da sociedade civil, o Grupo Pela Vidda/RJ e o Grupo de Incentivo à Vida (GIV/SP) chamaram atenção para um fato que vem ocorrendo desde o final do ano passado: a recusa de duas empresas em venderem testes de carga viral para HIV para o Ministério da Saúde.


O impasse poderá causar o desabastecimento de kits para os exames já a partir de junho. Para Octavio Valente, presidente do Pela Vidda/RJ, é importante a participação da sociedade nesse momento. "Nossa posição foi chamar a atenção de outras ONGS para o assunto. Convocamos várias pessoas e entidades pela Internet para enviar e-mails de protesto para as duas empresas, pedindo para que elas retornem ao processo de compra", explica.


Segundo ele, está claro quais são os verdadeiros objetivos das indústrias por trás dessa manobra. "Para elas, os interesses financeiros sempre estão acima da vida humana", conclui.


Leia, a seguir, a entrevista que Octavio Valente concedeu à RETS:


RETS - No comunicado enviado pela Internet para diversas entidades, o sr. afirma que, desde o ano passado, a Coordenação Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde vem encontrando dificuldades para a compra dos testes de contagem de Carga Viral do HIV. Como isso começou?


Otávio Valente - Até pouco tempo, apenas uma empresa fabricava esse kit para testes de Carga Viral no Brasil, que era a Organon. Agora, a Roche também passou a oferecer esse material no país. No entanto, desde o final do ano passado, o Ministério da Saúde não tem conseguido levar adiante a compra de novos kits. Todas as licitações realizadas acabaram sendo suspensas.


Em outubro de 2000, foi publicado um aviso de concorrência internacional para compra de carga viral no Diário Oficial da União. Logo após o processo de habilitação técnica, uma das empresas fornecedoras entrou com recurso e a licitação foi suspensa. Já em janeiro de 2001, quando era feito o registro de preço, uma segunda licitação foi suspensa, porque as duas fornecedoras alegaram problemas no edital de licitação.


A mais recente delas ocorreu no dia 7 de abril deste ano, quando as duas empresas apresentaram suas propostas de preço. Mesmo assim, logo em seguida, elas se recusaram a abrir os envelopes.


RETS – O que houve?


Octavio Valente - O que ocorreu foi que uma apresentou recurso contra a outra. O que pode acontecer é que uma ou até mesmo as duas empresas entrem com mandado de segurança, o que inviabilizaria todo o processo.


RETS – Quais seriam as conseqüências dessa interrupção no fornecimento de material para testes de contagem de Carga Viral para HIV?


Octavio Valente - Caso isso ocorra, haverá desabastecimento em todo o país. O que pode acontecer é o Ministério da Saúde fazer uma compra emergencial. Mas é certo que, a partir de junho, não teremos mais estoque. Acredito que essa compra emergencial também não seja suficiente. Quanto mais tempo esse impasse durar, maior será o tempo de indisponibilidade do kit.


RETS - Quais interesses estariam por trás dessa manobra?


Octavio Valente - Está claro que o interesse é comercial. O Ministério costuma comprar o material oferecido pela Organon, mas a Roche é nova nesse mercado. Por isso, talvez a Organon não esteja aceitando dividir o mercado com a concorrente. Tudo começou quando as duas criticaram o processo de licitação, ameaçaram entrar com recurso contra o edital que, segundo elas, estaria muito confuso. O que fizeram então foi aplicar recurso uma contra a outra.


O que imaginamos é que a Roche fosse apresentar um preço bem menor daquele oferecido pela Organon, que está querendo inviabilizá-la. Chegamos até a pensar que a Roche fosse concordar, mas não conseguimos entender o motivo pelo qual as duas empresas abandonaram o processo. Isso parece uma queda-de-braço.


RETS – Quantas pessoas sairão prejudicadas por essa "queda-de-braço"?


Octavio Valente - Não há como dizer quantas pessoas poderão ser afetadas por conta disso. Sabemos apenas que o Ministério da Saúde tinha uma previsão de compra de, aproximadamente, 800 mil kits e que, por ano, cada pessoa costuma fazer 3 exames.


RETS – No comunicado, vocês apontam a variação do preço dos materiais como outro problema a ser enfrentado pelo Ministério da Saúde?


Octavio Valente - Deveria haver uma uniformização do preço do kit. Segundo o Ministério, há Secretarias Estaduais comprando o kit a U$100, enquanto que ele próprio paga U$29. Com gente pagando bem mais pelo mesmo material, a possibilidade de faltar recurso para a manutenção dos exames é bem grande. O Ministério da Saúde está pensando em proibir os estados de comprarem esses kits por um preço tão elevado.


RETS – O que está sendo feito para solucionar o impasse na compra dos materiais?


Octavio Valente - O Ministério da Saúde vai receber os recursos e aceitar ou não as justificativas das empresas. Caso o ministério aceite, o processo então estará inviabilizado. Do contrário, o processo de abertura de envelopes continua. Mesmo assim, ainda podem surgir mandados de segurança.


RETS – Como o Pela Vidda e o Grupo de Incentivo à Vida (GIV-SP) entraram nessa discussão?


Octavio Valente - Não existe um controle de qualidade desses materiais. Por isso, o Grupo Pela Vidda e o GIV pediram ao Ministério da Saúde para participar dessas reuniões. O Ministério, reconhecendo essa falha, permitiu a participação de duas pessoas, uma de cada grupo. Pretendemos continuar participando desse processo.


RETS – Por que vocês decidiram produzir o comunicado?


Octavio Valente - Nossa posição foi chamar a atenção de outras ONGs para o assunto. Convocamos várias pessoas e entidades pela Internet para enviar e-mails de protesto para as duas empresas, pedindo para que elas retornem ao processo de compra. Esperávamos mobilizar mais pessoas em torno dessa questão.


Sabemos que isso faz parte de uma manobra política e que nenhuma delas está fugindo das determinações legais, pois estão fazendo o que a legislação permite. O que nos resta é esperar.


RETS – É possível traçar um paralelo entre essa situação e a discussão sobre a Lei de Patentes brasileira, rejeitada pelos Estados Unidos, que garante acesso aos medicamentos para o tratamento da Aids?


Octavio Valente – Uma situação não tem nada a ver com a outra. Mesmo assim, fica claro que, nos dois casos, essas empresas estão exclusivamente interessadas no lucro. Para elas, os interesses financeiros sempre estão acima da vida humana.

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