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Conflito se resolve no Balcão

Autor original: Felipe Frisch

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"Há quatro anos, quando surgiu nas comunidades do Chapéu Mangueira e Babilônia o primeiro Balcão de Direitos, não se podia dimensionar o alcance que aquela idéia teria". É assim que começa a apresentação do livro que está sendo lançado pelo Viva Rio neste início de junho, com apoio da Mauad Editora e do Iser: "Balcão de Direitos – Resoluções de Conflitos em Favelas do Rio de Janeiro". Certamente, essa surpresa de que os organizadores falam só não foi maior do que a das 17 comunidades que hoje são atendidas pelo projeto que, não apenas dá a essa população acesso à justiça, como leva um pouco de cidadania a quem parece ter sido esquecido pelo Estado.


O livro traz uma seleção de artigos que tocam desde a organização de espaços no Rio de Janeiro, até as novas linguagens do Direito e a mediação de conflitos realizada nos Núcleos do Balcão. A obra, que ainda traz algumas estatísticas do trabalho desenvolvido, foi organizada por Paulo Jorge Ribeiro, pesquisador da Coordenação de Informação e Pesquisa do Balcão de Direitos, e Pedro Strozenberg, coordenador-geral do Balcão entre 1998 e 2001, e atualmente coordenador da Área de Segurança Pública e Direitos Humanos do Viva Rio. Em entrevista exclusiva para a Rets, Pedro Strozenberg fala sobre o projeto e a nova publicação.


Rets - Uma das propostas do livro é comprovar "a trajetória bem sucedida de uma experiência (...) pioneira" que pretende levar a Justiça para as comunidades onde o trabalho está sendo desenvolvido. Para você, coordenador geral do Balcão de Direitos nos últimos três anos, o que essa experiência comprova?


Pedro Strozenberg - Bem, creio que a principal virtude do Balcão de Direitos é apresentar uma opção efetiva para resolução de conflitos cotidianos nas comunidades onde o projeto está instalado. Partindo da valorização da cultura local e das percepções que os moradores têm de justiça, pudemos criar espaços onde o Direito não estava representado apenas na letra fria da lei, mas fundado na preservação das relações cotidianas e na difusão dos direitos como instrumento de transformação, e não de repressão. Assim, ao eleger os efeitos positivos dessa experiência, destaco o importante, mas nem sempre fácil, convívio entre os operadores jurídicos e os moradores das favelas onde atuamos, representado no conflito entre o direito positivo e o "direito comunitário".


Rets - De que maneira os artigos selecionados podem fortalecer o sentimento de compromisso na relação asfalto-morro e servir de exemplo para novas iniciativas?


Pedro Strozenberg - O Balcão de Direitos e o Viva Rio, em geral, têm seu foco de ação voltado para encontrar canais de diálogos e aproximação entre o asfalto e a favela, procurando interagir e diminuir as distâncias destas duas "cidades". A primeira parte do livro explora, sob a ótica da sociologia e do planejamento urbano, este cenário, tratando da imagem e dos espaços sociais como fatores essenciais para a percepção da inclusão de direitos, das linguagens e costumes no Rio. Porém, de um modo geral, os textos do livro fazem referências à necessidade de identificarmos novos espaços de convívio e intercâmbio entre as pessoas e suas diferenças sociais e culturais.


Rets - Que projetos têm procurado o Balcão como referência?


Pedro Strozenberg - O inicio do Balcão de Direitos, em 1996, foi baseado na necessidade de facilitarmos o acesso aos mecanismos de justiça e de documentação básica à população de favelas. O panorama era, então, de oferecer serviços. Contudo, no decorrer da realização do trabalho, foram introduzidas inovações como a mediação de conflitos, e reforçados os laços comunitários, delineando uma metodologia própria e inovadora.


Hoje, o Balcão de Direitos tem sido procurado por outras ongs e pelo poder público interessado em implantar o projeto em suas regiões. E, ainda, iniciativas acadêmicas utilizam-se dessa experiência para teses e monografias. Outra esfera importante está sendo desenvolvida pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, nossa parceira no projeto, que está estimulando o seu desenvolvimento em outros estados da federação. Este sempre foi nosso objetivo. Constituir-se efetivamente como uma política pública nacional.


Rets - Marcos P. C. Gomes, em seu artigo, destaca que "o Direito emanado do Estado não é o único e até mesmo nem sempre é preponderante". Que novas construções jurídicas podem ser pensadas a partir da vivência dos balcões nestas comunidades?


Pedro Strozenberg - Vimos, com a prática do Balcão, que os problemas que se apresentavam não eram essencialmente jurídicos. Eram, se considerarmos que o Direito tem como finalidade alcançar a justiça, e serve de instrumento para esse fim, regulando as relações humanas. Mas dizemos que não eram essencialmente jurídicas pois nem sempre a respostas àquelas demandas estavam presentes na leitura fria da lei, ou mesmo em nosso ordenamento jurídico. Dessa forma, passamos a enxergar que o Poder Judiciário, da forma que está constituído, pode não ter como absorver a todas as demandas, pois nem sempre participa da vida daquelas pessoas envolvidas. Em se tratando de área de favela, onde vemos o Estado ocupar um espaço insuficiente, e onde lidamos com uma realidade em que a grande maioria dos moradores detém apenas a posse de suas residências, vimos que não podíamos enxergar o Direito no âmbito estritamente formal. Vimos que era necessário ir além, alcançar o "Direito Comunitário", insurgente, nascido na rua. E é essa a visão de Direito que o Balcão abraça, aquela que não é exclusivamente a do Estado.


Rets - O livro traz um histórico de diversas mudanças que o Balcão sofreu nos últimos anos. Que mudanças você destacaria como essenciais para a forma que ele tem hoje?


Pedro Strozenberg - O Balcão conta atualmente com cerca de 75 profissionais, entre advogados e estudantes de Direito, agentes de cidadania e mais recentemente profissionais de áreas afins como Sociologia e História. Boa parte dessas pessoas são voluntárias, e suas contribuições extrapolam a atividade de atendimento, perpassam pela curiosidade e aprendizado do convívio com diferenças sociais e realidades até então desconhecidas pelos próprios participantes do projeto.


Hoje estamos priorizando a difusão da informação a partir de treinamentos e capacitações em direitos e mediação de conflitos e o trabalho em redes de solidariedade, além do atendimento que já fazemos, tanto nos núcleos, quanto em nosso site. Hoje nossa equipe é ainda mais diversificada em suas atribuições, funciona de forma multidisciplinar e investe fortemente em multiplicadores do Direito, através da capacitação de lideranças comunitárias em noções de Direito, cidadania e mediação de conflitos, procurando assim dar ênfase na atuação comunitária e nas potencialidades presentes nas favelas onde trabalhamos.


Rets - Essa mudanças foram uma conquista ou, de alguma forma, traduzem algumas adaptações limitadoras, mas necessárias em vista das dificuldades encontradas?


Pedro Strozenberg - As mudanças são naturais em qualquer projeto que se avalia. Costumamos dizer que o Balcão é um programa que sempre se renova, pois é moldado de acordo com as demandas postas. Talvez um importante aprendizado que tivemos é de que, sem agregarmos esforços, jamais daríamos respostas suficientes, assim precisamos potencializar nossas ações. As dificuldades de recursos físicos, humanos e financeiros são fontes constantes para planejarmos o futuro.


Rets - A iniciativa do Balcão é, ao mesmo tempo, necessária onde não há acesso formal à Justiça, mas toca em questões perigosas muitas vezes, onde há uma organização social diferente da que existe no asfalto. Que dificuldades o projeto tem encontrado para se instalar dentro das comunidades? Como esses moradores aceitam os trabalhos do Balcão?


Pedro Strozenberg - São diversos atores presentes na comunidade e as relações entre eles compõem o que chamo de "direito comunitário". Estão presentes na representação "oficial" da associação de moradores, nas relações de respeito aos idosos - que funcionam como conselheiros - e de instituições comunitárias. Todos estes personagens contribuem no cotidiano do Balcão e dos moradores das comunidades, em geral produzindo regras informais e muitas vezes baseadas nas relações de força. Nesse contexto, o Balcão atua buscando agregar elementos baseados nos princípios legais e mecanismos alternativos de solução de conflitos. Investimos no processo de mudança cultural, onde senso de justiça possa ter também um significado de qualidade de vida e respeito a direitos. Um fato curioso, dentro dessas relações entre o Balcão e as diversas forças presentes na favela, é o momento em que vemos um desses componentes que, mesmo sem darmos legitimidade, acaba participando do nosso cotidiano: o tráfico de drogas, que é uma instância própria de poder, e como os demais atores sociais deste panorama, instituem regras próprias de funcionamento. É comum notarmos, no atendimento do núcleo, a presença de clientes que, ao ver frustradas as tentativas de se resolver os seus problemas pela utilização da força, e tendo procurado a "boca de fumo", estes mesmos indicaram que a melhor forma seria procurar o Balcão. É a presença, no mínimo curiosa, de uma parceria tácita, sem que precisássemos legitimar essa força.


Os moradores são parte integrante de todo o processo, representados no Balcão pelos Agentes de Cidadania, que atuam como um elo de ligação com a comunidade. O livro é dedicado a eles, verdadeiros guerreiros, apaixonados por suas comunidades e valentes no enfrentamento dos desafios. São eles que legitimam nossa presença na favela, trazem as demandas e identificam os atores sociais.


Rets - O Balcão tem provado que quem pode promover o acesso à Justiça - especialmente no caso da justiça social - não são exclusivamente advogados. Que contribuição cada setor, profissional ou da sociedade, tem a dar?


Pedro Strozenberg - As relações que encontrávamos na rotina do Balcão não eram somente jurídicas. Percebemos que, muitas vezes, a visão do Direito formal não era suficiente – já que as questões encontradas não tinham nada de formais. Nesta ótica, vimos que os problemas apresentados eram essencialmente sociais, tinham suas causas diretamente ligadas a outras questões, não só à lei em si, mas quanto a questões sociológicas, antropológicas, psicológicas... Enfim, não bastava procurar profissionais de Direito que enxergassem essa ciência de forma ampla, mas profissionais – e instituições – que observassem os conflitos a partir de uma ótica multidisciplinar.


Rets - Paulo Jorge Ribeiro, no artigo que escreve, levanta a existência de dois "Rios de Janeiro" diferentes: um, da belle époque, a Cidade Maravilhosa, de 50 anos atrás. Outra, "partida", mais próxima da realidade atual, na qual a favela já não é apenas uma marca das diferenças sociais, mas faz parte de uma geografia e uma identidade criada por esses moradores. Como, além do acesso ao Direito, tornar esses indivíduos cidadãos?


Pedro Strozenberg - O artigo do Paulo é muito provocador, utilizando-se de linguagens e personagens presentes no imaginário coletivo da cidade, busca desnaturalizar alguns conceitos, para segundo suas palavras, "serem reinventadas". Claro que não é suficiente promover o acesso aos mecanismos formais de justiça para um exercício pleno da cidadania, o texto da Corine Davis, nos dá uma bela noção das resistências e dificuldades entre os mecanismos formais de justiça e a população-alvo do Balcão. Há muitas frentes ainda a percorrer, o Balcão oferece sua contribuição, mas cada um de nós pode contribuir, primeiro com nossa prática e em seguida com solidariedade e doação.


Rets - O Balcão de Direitos tem revelado uma competência para lidar com certas peculiaridades da resolução de conflitos em favelas bem maior do que o Estado, que, quando entra, é invasor, com poder de polícia. O que o Balcão tem, que facilita a comunicação com essas comunidades, que o Judiciário não tem?


Pedro Strozenberg - Temos exemplos muito interessantes nas relações da população com as instituições públicas, em particular a polícia e o Judiciário. A ausência de políticas públicas efetivas para áreas de favela, claramente é um dos principais fatores do alto índice de violência da cidade. Temos casos de Oficiais de Justiça que buscam apoio do Balcão para cumprir mandados judiciais, pois não se sentem seguros para subir a comunidade sem aparato estatal. É nesse momento que notamos a importância do Agente de Cidadania, que legitima nossa presença e faz essa ponte.


Rets - Uma das principais estratégias de atuação do Balcão é a mediação entre as partes envolvidas nos conflitos. Cláudio Pereira de Souza Neto, em "Retóricas e Linguagens", destaca que essa forma de aplicação leva vantagem por conta da pluralidade de conflitos não previstos pelo Direito formal que aparecem nessas comunidades. O Judiciário tem como abraçar essa estratégia, a mediação, com eficiência?


Pedro Strozenberg - É importante ressaltar, de início, que existe um Projeto de Lei que regulamenta a Mediação de Conflitos, o qual está tramitando atualmente no Congresso Nacional. Acredito que o Poder Judiciário possa abraçar esta prática, visto que o acordo celebrado entre as partes pode ser homologado pelos juizes, desde que não afronte o ordenamento legal. A Lei de Introdução ao Código Civil determina que os casos não previstos em lei possam ser solucionados pela analogia, costumes ou princípios gerais do Direito, devendo o julgador observar também as exigências do bem comum. Dessa forma, é possível solucionar e formalizar todos os demais conflitos não previstos em lei, porém é necessário que o Judiciário aproxime a linguagem da população.


Rets - Como o Balcão de Direitos pode forçar uma atuação mais presente do poder público nessas áreas e evitar que ele se acomode com as atividades do terceiro setor?


Pedro Strozenberg - O livro discorre em diversos momentos sobre a relação do Balcão, enquanto movimento da sociedade civil, com o Estado. Em nenhum momento pretendemos substituir o papel do Estado, ao contrário, queremos cada vez mais sugerir políticas públicas e buscar parceiras com setor governamental, sem contudo, sermos submissos e perder nossa condição crítica e questionadora. Aposto no papel das organizações civis como parceiras e também como fiscalizadoras dos serviços públicos.


Rets - Quais são as perspectivas do Balcão daqui para frente?


Pedro Strozenberg - O lançamento deste livro marca a importância que damos à reflexão e papel social do Balcão, sua prática e interlocutores. Pretendemos agora reforçar nossas relações com as universidades e faculdades, em especial os cursos de Direito e assim definir uma estratégia de ação conjunta, escrevendo tantas outras páginas no caminho do fortalecimento da cidadania no Brasil.

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