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A quem pertence o conhecimento?

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

Philippe Quéau*


A maioria das inovações e invenções baseia-se em ideias que são parte do bem comum da humanidade. Por isso é inaceitável limitar o acesso à informação e ao conhecimento para proteger interesses particulares.


Longe de ser uma mera adaptação técnica à "sociedade da informação", a evolução do direito da propriedade intelectual é uma aposta política. Com efeito, tomando como pretexto a "revolução multimídia", certos lobbies mobilizaram-se para pedir uma revisão do direito da propriedade intelectual, fortalecendo-o em proveito de seus detentores.


Conseguiram um prolongamento da duração da protecção das obras, a criação de novos direitos de propriedade intelectual (como o chamado direito sui generis, que protege a actividade, não inventiva, de constituição de bases de dados a partir de elementos pré-existentes), a limitação das excepções legais (como o uso legal das obras protegidas, chamado fair use), o questionamento de direitos adquiridos (o caso das bibliotecas públicas) e até a possibilidade de patentear programas de computador.


Em 1985, todos os dados do programa público americano de observação da Terra por satélite Landsat foram concedidos à EOPSat, uma associada da General Motors e da General Electric. Resultado: o acesso aos dados ficou vinte vezes mais caro. As instituições universitárias não podiam mais conseguir essas informações custosas que, no entanto, foram obtidas graças a um financiamento inteiramente público. A sua exploração favoreceu sobretudo as grandes companhias petrolíferas, que assim receberam um subsídio directo.


Por trás desta mudança, delineia-se uma modificação da correlação de forças entre Estados – os puramente exportadores e os importadores de produções intelectuais – e entre grupos sociais com interesses contrários (accionistas de empresas, professores, educadores, pesquisadores, utilizadores). Impõe-se, portanto, uma reflexão sobre a noção de "interesse geral", para evitar que os grupos dominantes façam pender para o seu lado a balança do direito da propriedade intelectual.


A maioria das inovações e invenções baseia-se em ideias que fazem parte do bem comum da humanidade. É portanto uma aberração limitar o acesso à informação e ao conhecimento que constituem esse bem comum, por força de um direito excessivamente preocupado em proteger interesses particulares.


Ofensiva restritiva, a pretexto da "revolução multimédia"


Garantir a protecção de um "domínio público" mundial da informação e do conhecimento é um aspecto importante da defesa do interesse geral. Além disso, o mercado aproveita-se dos "bens públicos mundiais" actualmente disponíveis, como o conhecimento pertencente ao domínio público ou as informações e pesquisas financiadas por verbas públicas, mas não contribui directamente para a sua promoção e defesa. As organizações internacionais, em contrapartida, teriam tudo para fazê-lo.


A "revolução multimédia" serviu de detonador e de pretexto para iniciar um ciclo de revisão do direito de propriedade intelectual que começou em 1976, com a revisão da lei do direito autoral (Copyright Act) nos Estados Unidos.


As directrizes europeias sobre as bases de dados(1), ou sobre a protecção a programas de computador(2), os dois tratados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) assinados em 1996 – Tratado sobre Interpretações, Execuções e Fonogramas e Tratado sobre o Direito Autoral– , o Digital Millennium Copyright Act (Lei do Direito Autoral para o Milénio Digital) ou o Sonny Bonno Copyright Term Extension Act (Prolongamento da Duração do Direito Autoral) assinados em Outubro de 1998, nos Estados Unidos, o TRIPS(3), etc., são prova de uma forte voracidade jurídica. Note-se particularmente que, se ingressar na OMC, a China será forçada a aceitar os termos desse acordo.


Antes do TRIPS, países como a China, o Egipto ou a Índia concediam e reconheciam patentes de procedimentos farmacêuticos, mas não de produtos finais. Isto permitiu a fabricação local de medicamentos genéricos com uma considerável redução de custos. Como salientava o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 1999, o preço dos medicamentos pode ser até 13 vezes mais alto no Paquistão, que aceita as patentes sobre os produtos, do que na Índia.


É exemplar o caso da África do Sul, que está prestes a autorizar a fabricação de medicamentos contra a SIDA pela indústria farmacêutica local, embora companhias americanas ou europeias detenham as patentes. Num mundo em que a ciência permanece como uma prerrogativa dos países ricos, enquanto os pobres continuam a morrer, ninguém duvida de que os refinamentos da propriedade intelectual pareçam menos convincentes do que a realidade social. As empresas transnacionais e as instituições dos países ricos patenteiam tudo o que podem, do genoma humano às plantas tropicais, exercendo um verdadeiro sequestro sobre o bem comum da humanidade.


Consenso euro-americano


É preciso reflectir colectivamente sobre a defesa e o financiamento dos "bens públicos mundiais" sem os quais a humanidade se verá reduzida a uma miríade de interesses corporativos. No momento em que os operadores privados tentam ampliar o seu domínio de apropriação da informação, é urgente reavivar, fortalecer e proteger a noção de "domínio público" contra a voracidade dos interesses particulares


Consideremos, por exemplo, a propriedade dos dados brutos e dos factos. Por toda a parte o Estado se "desobriga" e entrega a gestão de várias bases de dados públicos a terceiros, que assumem, dessa forma, os direitos de exploração desses dados. Foi assim que a Securities and Exchange Comission – SEC, o "guarda-costas da Bolsa" americana – se viu forçada a recomprar os seus próprios dados de uma empresa comercial, que agora é "proprietária" deles.


A publicação das leis privatizada


O Ministério da Justiça norte-americano cedera os direitos de publicação das leis federais à West Publishing. Uma versão comercial desta publicação possuía uma numeração de páginas que fora utilizada para índices de referência em processos posteriores: a West Publishing pôde então reivindicar um "direito de propriedade intelectual" da íntegra da base de dados das leis federais, com base nesse pretenso "valor agregado". Durante a 104ª sessão do Congresso americano, a West Publishing chegou inclusive a tentar inserir uma cláusula especial no Paperwork Reduction Act, assinado em Maio de 1995, o qual lhe teria permitido garantir o seu monopólio de facto sobre a publicação das leis federais. Esta manobra só foi impedida graças ao envio maciço de cartas de protesto de uma associação de contribuintes.


Na França, a ORT explora no sistema de rede Minitel e na Internet as bases de dados dos registros de comércio – balanços de empresas, lançamentos contabilísiticos – no âmbito de uma missão de serviço público concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Esta concessão exclusiva rende à empresa um volume de negócios de cerca de quase 50 milhões de dólares por ano e um lucro aproximado de 1,2 milhões de dólares. O Estado, que lhe fornece os dados, é um de seus maiores clientes. Em 9 de Dezembro de 1999, o grupo Reuters confirmou a compra da ORT.


As informações contidas nas bases de dados públicas não pertencem, de pleno direito, ao domínio público? Se o Estado detém o monopólio da colecta dessas informações, ele não pode abrir mão delas sem prejuízo do cidadão. Além disso, esse tipo de transferência da propriedade pode afectar o direito à informação, condicionando o acesso aos dados públicos a um pagamento e a uma autorização privados e arbitrários.


Tal mudança é fruto de um consenso entre os Estados Unidos e a Europa, camuflado pelo debate recorrente, porém necessário, sobre a "excepção cultural". A comissária europeia para a Educação e Cultura, Viviane Reding, relatava assim o seu encontro com M. Jack Valenti, presidente da Motion Picture Association of America, que representa os interesses de Hollywood: "Os americanos (…) consideram a nossa inquietação quanto à "diversidade cultural" completamente ultrapassada. A preocupação deles é com a pirataria, com a protecção ao direito autoral nos novos médias. Disseram que não atacariam as nossas cotas e subvenções, mas querem que pensemos como podemos enfrentar juntos estes novos desafios. Se subsidiarmos a produção e a difusão, mas depois as obras forem roubadas graças às novas tecnologias, será todo o nosso sistema que terá caducado. Em vez de lutarmos contra os americanos, devemos tentar preservar juntos a nossa diversidade cultural."(4)


As patentes contra o Sul


Mas quem são os "piratas", esses "ladrões"? A resposta pode ser encontrada numa recente nota da Comissão Europeia sobre os Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPICs): "Deve-se esperar", lemos nela, "certa resistência por parte de alguns países em desenvolvimento, membros da Organização Mundial do Comércio. Eles consideram que a protecção dada pela Convenção Internacional para a Protecção das Novas Variedades Vegetais(5) beneficia demais seus proprietários e não leva em conta as necessidades dos agricultores tradicionais."


A mesma nota termina lembrando um "problema estratégico": "Os países em desenvolvimento vão resistir ao início das negociações substanciais sobre a protecção à propriedade intelectual. Poderão até lançar um debate sobre a relação entre os ADPICs e outros aspectos como a concorrência, o meio ambiente, bem como seu impacto sobre a saúde e o bem-estar. Deve-se resistir a esse intento, a fim de preservar os interesses de todas as partes."(6)


Qual é a finalidade da protecção à propriedade intelectual? Trata-se por acaso, conforme o expresso no princípio em que ela se funda, de proteger o interesse geral, garantindo a difusão universal do conhecimento e das invenções, em troca de um monopólio da exploração concedido aos autores por um período de tempo limitado? A extensão do monopólio sobre a exploração das obras, até 95 anos depois da morte do autor – como no caso americano, depois do Sonny Bono Copyright Act –, não é essencialmente favorável à criação. Tende mais a incentivar os editores a viverem do seu catálogo de autores consagrados do que a estimular a busca de novos talentos.


O ser humano, animal mimético


O que está em jogo é o estímulo à criação, o seu resgate, e não apenas a protecção dos detentores dos direitos. Se a sociedade concede certa protecção ao inventor, isto dá-se em troca de contrapartidas, concebidas segundo "os altos interesses da humanidade": fazer com que a invenção caia por fim no domínio público, que seja descrita com precisão e publicada, para que todos possam apropriar-se dela


É mais vantajoso para a humanidade fazer circular livremente as ideias e o conhecimento que restringir essa circulação. Aristóteles afirma que o homem é o animal mimético por excelência. O Iluminismo retomou esta ideia, assim como o filósofo francês Etienne Bonnot de Condillac (1715-1780): "Os homens acabam por ser tão diferentes porque começaram sendo copistas e continuam a sê-lo."


Além disso, uma protecção demasiadamente forte da propriedade intelectual abala a "livre concorrência", trave mestra do funcionamento do mercado. O decreto de Allarde e Le Chapelier, expedido no ano revolucionário de 1791, expressa o princípio da liberdade de comércio e de indústria e, portanto, o direito de concorrência. Implica, por definição, na possibilidade de oferecer ao mercado o mesmo produto que outro e, por conseguinte, a liberdade de copiar.


Existem aí duas tendências contraditórias: a vontade de desregulação e de "concorrência leal", por um lado, e a escalada potencial dos oligopólios e monopólios, por outro.


Por último, direitos fundamentais como o acesso à informação e a liberdade de expressão devem ser levados em conta quando se estende a propriedade intelectual à informação. Nos Estados Unidos, a noção de acesso público à informação remonta aos patriarcas e em particular a Thomas Jefferson, pensador do conceito de "biblioteca pública" e da doutrina do fair use, que permite o uso didáctico e as citações com fins universitários de textos protegidos.(7)


Por uma "justiça social mundial"


Embora alguns teóricos liberais, como Friedrich Hayek, considerem a "justiça social" como um "tolo encantamento", uma "superstição quase religiosa"(8), é fundamental compreender que os próprios fundamentos de um direito tão importante como o da propriedade intelectual na sociedade mundial da informação não podem ser analisados sem uma reflexão sobre o que poderíamos denominar "justiça social mundial".


No final de 1997, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) decidia reduzir em cerca de 15% as taxas impostas às empresas desejosas de depositar patentes industriais. O motivo? O número crescente dos pedidos de depósito, que passaram, em apenas 10 anos, de alguns milhares por ano a mais de 50 mil em 1997. Em função disso, a organização atingiu superavits consideráveis, sem saber o que fazer com eles. O facto de uma organização internacional ganhar muito dinheiro é, hoje em dia, raríssimo. E o que não falta são ideias para destinar ao interesse geral tais fundos, vindos continuamente de uma das fontes financeiras mais vastas que existem.


As patentes industriais e, de forma mais geral, todas as produções intelectuais protegidas pelas leis da propriedade intelectual utilizam, em grande parte, um fundo comum de informação, saberes e conhecimentos que pertencem, como um todo, à humanidade inteira. Seria justo, portanto, do ponto de vista do "bem comum mundial", utilizar os rendimentos obtidos pela OMPI graças ao depósito das patentes, para, por exemplo, estimular a criação de uma biblioteca pública virtual mundial, constituída somente por textos pertencentes ao domínio público e, portanto, acessíveis a todos gratuitamente.


Isto seria ainda mais justo porque, em organizações internacionais como a OMPI, é o poder público combinado dos países membros que é posto a serviço da defesa dos interesses privados dos depositantes. Quem arca inteiramente com os custos da infra-estrutura jurídica e policial que permite o fortalecimento efectivo da propriedade intelectual são, de facto, os fundos públicos.


Uma parte dos fundos arrecadados junto dos titulares de patentes também poderia servir para financiar pesquisas negligenciadas devido à sua falta de interesse para o "mercado", como sugere um recente relatório do PNUD.(9) Estas somas poderiam ser alocadas nas agências das Nações Unidas notoriamente sub-financiadas, que desempenhariam então muito melhor o papel que delas se espera, de reguladoras da pesquisa em nível planetário – papel este que o mercado por si mesmo é absolutamente incapaz de desempenhar.


*Philippe Quéau é Diretor da Divisão de Informação e Informática da UNESCO.


Este texto foi publicado no NON!


NOTAS
1. Directriz 96/9/CE do Parlamento e do Conselho, de 11/03/1996.
2. Directriz 91/250 do Conselho, de 14/05 /1991.
3. Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, objecto do anexo 1C do acordo que instituiu a Organização Mundial do Comércio (TRIPS em inglês).
4. Libération, 29/10/1999.
5. Convenção Internacional para a Protecção das Novas Variedades Vegetais, ratificada em Março de 1991, vigente a partir de Abril de 1998. Ver http://www.upov.int/eng/convntns/1991/content.htm.
6. Nota de 24/02/1999, DG 1, Comissão Europeia.
7. "Offensive insidieuse contre le droit du public à l'information", Le Monde Diplomatique, Fev. 1997.
8. Friedrich A. Hayek, Droit,législation, et liberté, tomo 2, Le mirage de la justice social, PUF, Paris,1982.
9. Inge Kaul, Isabelle Grunberg, Marc A. Stern (ed.), Global public Good: International Cooperation in the 21st Century. PNUD-Oxford University Press, Nova York e Oxford, 1999.







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