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Aborto e crime

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

Sonia Corrêa*


Ao tomar posse, no final de janeiro, George Bush restringiu o uso de recursos da Usaid em projetos desenvolvidos por ONGs relacionados ao aborto. Em fevereiro a imprensa brasileira publicou as conclusões de pesquisa feita pelos economistas Steven Levitt e Jonh Donahue: nos Estados Unidos, a legalização do aborto era uma explicação para a redução da criminalidade. Minha primeira reação foi de cautela, pois pesquisadores e formuladores de políticas americanos, com freqüência, sacam da cartola soluções fáceis para problemas difíceis. Um exemplo: desde os anos 60 foram investidos milhões de dólares na invenção de tecnologias de contracepção, vistas como solução mágica para erradicar a pobreza e ampliar a poupança dos países ao Sul do Equador. Hoje já se sabe que as coisas não se passam assim. O Brasil é uma boa ilustração, pois a fecundidade caiu, mas não erradicamos a pobreza nem tampouco resolvemos nossos problemas fiscais.


Mas no clima político da era Bush, não era absurdo supor que Levitt e Donahue estivessem apenas buscando argumentos quantitativos para fustigar os conservadores que são contra o aborto e propõem políticas duras contra a criminalidade. O problema é que a proposta de legalizar o aborto para reduzir o crime retira o debate da esfera do direito. Interromper a gravidez indesejada deixa de ser prerrogativa de autodeterminação das mulheres, convertendo-se em medida do Estado para reduzir o crime. Também é muito problemático transportar o argumento para o Brasil sem pontuar diferenças. Nos EUA, está em jogo a defesa de um direito adquirido em 1973. Aqui, nem mesmo retiramos o aborto do Código Penal e a relação entre aborto e crime tem outros meandros. No início da década de 90, foi proibida a comercialização do Cytotec, medicamento para úlcera que tem efeitos abortivos e cujo uso extensivo reduziu a mortalidade por aborto. A proibição favoreceu o surgimento de uma rede ilegal de contrabando e distribuição. Hoje, nas grande cidades do país, vende-se Cytotec nos mesmos lugares onde se compram maconha e cocaína.


Esta semana, a pesquisa entrou novamente em pauta e a leitura das entrevistas com os pesquisadores e do texto original dirimiu minhas preocupações. A motivação de Levitt e Donahue não é instrumental. A investigação analisa o acesso ao aborto em relação a outros fatores: o aumento vertiginoso do encarceramento, maior número de policiais e melhores políticas de segurança (em Nova Iorque por exemplo), diminuição do tráfico de cocaína e crack, aumento dos gastos em segurança privada e ainda o crescimento econômico da década de 90. Levitt e Donahue fazem uma comparação muito convincente entre estados, demonstrando que a redução da criminalidade foi antecipada nos casos em que o aborto foi legalizado antes.


Contudo, há aspectos que devem ser lidos com cuidado. Os pesquisadores tomam como ponto de partida estudo feito por Levine, Staiger, Kane e Zimmerman segundo o qual as mulheres que mais recorrem ao aborto são aquelas cujos filhos são mais facilmente envolvidos com o crime: adolescentes, chefes de família e mais pobres. Mas usam dados agregados e taxas de aborto que não permitem verificar se, de fato, o maior número de abortos ocorreu entre essas mulheres. É importante pontuar esse aspecto, pois sempre que o aborto é legalizado todas as mulheres recorrem a ele e não apenas as mais pobres. Foi assim nos EUA, mas também na França.


Tampouco estou convencida de que o crescimento do número de abortos tenha um peso maior na redução da criminalidade do que outros fatores considerados. Nos EUA, o aborto legal coincidiu, no tempo, com o crescimento geométrico da população carcerária. Há alguns milhões de pessoas nas prisões americanas, na sua maioria homens negros, latinos e pobres. Um estudo qualitativo feito entre os grupos mais pobres, que procurasse vincular número de abortos e redes sociais, poderia revelar, por exemplo, que as gerações nascidas após 1973 não estiveram tão expostas às redes de recrutamento para o crime, pois os homens adultos já estavam presos. Não quero sugerir com isto que a solução seria legalizar o aborto e prender mais gente. É bom dizer que, hoje, o debate sobre a situação prisional mobiliza a juventude americana num movimento que reproduz, em vários aspectos, a dinâmica política dos anos 60. Meu objetivo é apenas sugerir que há outras maneiras de interpretar os dados trabalhados por Levitt e Donahue.


Mas, entre o joio e o trigo, a divulgação da pesquisa contribui para qualificar o debate brasileiro. A visibilidade que teve na mídia nos diz que, felizmente, deixamos para trás os tempos em que aborto era apenas assunto das páginas policiais. É, sobretudo, excelente que Levitt e Donahue enfatizem os efeitos sociais e econômicos das decisões reprodutivas e que não o façam numa perspectiva instrumental e autoritária. Como bem dizem os próprios autores, as conclusões não devem ser interpretadas como um apelo à intervenção do Estado nas decisões tomadas pelas mulheres. Levitt, na entrevista publicada por no.com.br, vai mais longe ao afirmar que as mulheres sabem o que fazem quando têm a liberdade de escolha, ou seja, quando exercem plenamente seus direitos reprodutivos.


Nós, feministas, há muito tempo temos dito a mesma coisa. Também sempre dissemos que o aborto não é um problema exclusivo das mulheres. Tem significados sociais e econômicos – e não apenas jurídicos e morais – que dizem respeito à sociedade como um todo. Vamos torcer para que Levitt e Donahue levem essas mensagens aos corações e mentes que não estão convencidos. É importante lembrar que a política de Bush em relação ao aborto tende a endurecer e isto terá efeitos em outros países. No dia 23 de maio, John Klink, assessor do Vaticano nas Nações Unidas, foi indicado para dirigir uma agência do Departamento de Estado. Essa escolha se deu contra a vontade de Collin Powell, que é a favor do aborto. Ou seja, a multiplicação de vozes favoráveis à interrupção da gravidez indesejada é cada vez mais crucial, tanto nos EUA quanto no resto do mundo.


*Sonia Corrêa é Pesquisadora do Ibase e atua na Comissão Nacional de População e Desenvolvimento


Publicado em 27 de maio de 2001 no Jornal do Brasil







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