Autor original: Daniela Muzi
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Negra, feminista, comunicadora social: assim se define a coordenadora do Programa de Comunicação do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Nilza Iraci da Silva. Atuando na ONG desde sua fundação, em 30 de abril de 1988, Nilza será a representante brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, que será realizada em Durban, na África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro. Em entrevista à RETS, Nilza fala sobre os problemas que os negros enfrentam no Brasil, adianta as propostas que serão levadas pelas ONGs brasileiras e revela suas expectativas para a Conferência.
Rets – Como tem sido a participação das ONGs brasileiras na luta contra o racismo?
Nilza Iraci – A participação das organizações negras brasileiras tem sido expressiva nos processos de construção da III Conferência, em nível nacional, regional e internacional. Na Conferência das Américas (Prepcon Regional, realizada no Chile, em dezembro de 2000), o Brasil teve a segunda maior delegação, com 120 pessoas. A maior foi a do Chile. A delegação brasileira na Conferência das Américas (latino-americana e caribenha, incluindo Estados Unidos e Canadá) incluía ONGs e entidades do movimento negro que trabalham com juventude, mulheres negras, quilombolas, rede de advogados e entidades de base. Na II Prepcon (evento preparatório para a conferência), que aconteceu em maio de 2001, em Genebra, a delegação brasileira não-oficial era composta de 28 pessoas, representantes de várias organizações do movimento negro. É importante destacar o papel das mulheres nessa Conferência, em especial das mulheres negras brasileiras, que têm tido um papel fundamental nos trabalhos de mobilização, lobby e formulação. Segundo a Sra. Mary Robinson, alta comissionada das Nações Unidas, "as mulheres negras têm feito toda a diferença”. Esperamos ter uma grande delegação de organizações negras na África do Sul, apesar das dificuldades que temos para obter recursos. Um fato importante a ressaltar é que as organizações brasileiras vêm trabalhando de maneira coletiva na busca de recursos para viabilizar a participação de grupos tradicionalmente excluídos dos processos internacionais de conferências da ONU.
Rets – As ONGs brasileiras que lutam contra o racismo estão obtendo mais resultados do que o próprio governo?
Nilza Iraci – O governo brasileiro é signatário de todos os instrumentos internacionais de proteção que visam à garantia de direitos básicos de eliminação de todas as formas de violência, e muitos desses princípios estão inscritos na Constituição de 1988. Entretanto a realidade demonstra que o governo brasileiro não vem fazendo sua lição de casa no combate ao sexismo e ao racismo. Não tem estabelecido mecanismos necessários, à altura dos documentos assinados ou do seu discurso avançado em instâncias da ONU, através da formulação de políticas para implementação das normas assinadas.
Rets – O Brasil é considerado o país da miscigenação. Dos 169 milhões de brasileiros, cerca de 45% são negros ou pardos, segundo dados de 1999 do IBGE. Você acredita que, mesmo com a marcante presença do negro na sua formação, o Brasil é um país racista?
Nilza Iraci – Para constatar o racismo brasileiro basta consultar qualquer indicador socioeconômico. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil (PNUD) para medir a qualidade de vida, condições materiais e sociais dos povos, classificava o Brasil na 79ª posição. Quando estes dados são desagregados por cor, o Brasil cai para a 109ª posição, enquanto a população branca fica na 49ª posição. Quando estes dados são desagregados por gênero e raça, os resultados são escandalosos: os dados relativos à renda informam que as mulheres negras recebem 0,76 do salário mínimo; homens negros, 1,36; as mulheres brancas, 1,8; e homens brancos, 4,74. Os dados sobre renda dão uma dimensão das desigualdades produzidas pelo racismo brasileiro. Esses indicadores têm impacto em outros setores, como saúde, violência, meio ambiente, acesso à justiça e ao poder.
Rets – Qual o maior obstáculo que o negro enfrenta no Brasil?
Nilza Iraci – Educação. Na educação, a taxa de analfabetismo, em 1999, era de 20% para os afrodescendentes, contra 8,3% para os brancos.
Rets – O que pode ser feito para mudar esta situação?O caminho seriam as ações afirmativas, em que vagas em universidades seriam reservadas aos negros?
Nilza Iraci – O Movimento Negro vem fazendo sua parte no sentido de transformar essa situação de desigualdade. Não podemos pensar nas políticas de ações afirmativas como uma panacéia para resolver as questões provocadas pelo racismo. Entretanto o tema "Reparações" está presente na pauta da III Conferência.
Rets – A III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas será um boa oportunidade para tomar decisões práticas contra o racismo?
Nilza Iraci – Sim, pois iremos pensar globalmente e agir localmente. A Conferência tem sido um importante espaço de mobilização das entidades negras no sentido de visibilizar o racismo para a sociedade em geral, para trabalhar além da denúncia. Mas é importante lembrar que, a exemplo das Conferências anteriores das Nações Unidas, sem uma efetiva mobilização e vigilância da sociedade, esta vai ser apenas mais uma conferência.
Rets – Quais as propostas que as ONGs brasileiras estão levando para a III Conferência?
Nilza Iraci – O Geledés, a Articulação de Mulheres Negras rumo à III Conferência Mundial contra o Racismo (que o Geledés coordena juntamente com os grupos Maria Mulher-RS e Criola-RJ), juntamente com outras organizações do movimento negro e do movimento feminista (Articulação de Mulheres Brasileiras), assinaram um documento no sentido de garantir que sejam respeitadas as decisões tomadas pelos governos da América Latina e do Caribe, na Conferência do Chile. Nesse documento, assinado pelos governos, estão contempladas as principais reivindicações dos afrodescendentes das Américas para a pauta da III Conferência: a condenação do tráfico transatlântico de escravos como crime de lesa-humanidade, a adoção de medidas de reparação para os povos africanos e afrodescendentes, o reconhecimento das bases econômicas do racismo, a adoção de políticas públicas corretivas por parte dos Estados nacionais, a adoção de políticas de desenvolvimento para comunidades ancestrais, a adoção de políticas específicas para mulheres africanas e afrodescendentes, a adoção de mecanismos de combate aos nexos entre racismo e pobreza, a adoção de medidas contra o racismo no sistema penal e reforma dos sistemas legais e a adoção de medidas contra a discriminação múltipla por orientação sexual, raça, cor e origem nacional e de medidas contra o racismo ambiental.
Rets – Você acredita que as decisões tomadas durante a Conferência serão cumpridas?
Nilza Iraci – Se não estivermos atentos e vigilantes, dificilmente. Caberá à sociedade como um todo, e não apenas ao movimento negro, fazer pressão e vigilância no sentido de erradicar essa vergonha nacional que é o racismo, que impede o exercício de cidadania de mais da metade da população brasileira, que é a segunda população negra no mundo (em primeiro está a Nigéria).
Rets – Com que intuito será realizado a III Prepcon, que vai acontecer em agosto?
Nilza Iraci – Fizemos um grande esforço para estarmos presentes na II Prepcon, e os resultados foram frustrantes para quem se organizou e mobilizou para intervir no processo. Problemas de morosidade e desorganização dos governos nos remeteram a essa III Prepcon, que acaba sendo o espaço mais importante da III Conferência, pois nela serão decididas as questões mais importantes para o segmento afetado pelo racismo: a xenofobia e as formas conexas de intolerância, que vêm a ser o nome da Conferência. Sabemos que a ausência da sociedade civil permitirá que os governos assumam posturas mais conservadoras, com perda nos resultados, em especial os já aprovados pelo documento da Conferência do Chile. Entretanto, apesar da sua importância, não sabemos ainda como participar, uma vez que não há recursos destinados para isso, pois não constava da pauta da III Conferência. Estamos buscando esses recursos. Aliás, se alguém do terceiro setor quiser contribuir, será muito bem vindo.
Rets – O que você espera da Conferência?
Nilza Iraci – Que ela seja um espaço efetivo de conscientização de toda a sociedade na construção de um novo processo civilizatório, em que todas as pessoas possam viver com dignidade, prazer, responsabilidade, sem nenhum tipo de preconceito ou discriminação.
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