Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original:
A Família Anti-Globalização rompe o silêncio e se caracteriza como um novo movimento mundial.
*Fernando Evangelista
Quando se fala muito sobre um assunto, bom ou ruim, medíocre ou grandioso, surge entre outras coisas, a possibilidade de banalização. Já se falou tanto da má sorte do brasileiro Rubens Barrichello que ninguém mais se importa. Derrapagens, máquina quebrada, falta de talento, choros. Azar e frustração, tornaram-se lugar comum no cotidiano do piloto. Já não é mais assunto que valha piada, discursos ou lamentações. Isso penso eu, e ao contrário, pensam os jornais italianos que todos os dias falam da Ferrari e seus pilotos. É uma paixão obsessiva um tanto incômoda e constrangedora aos forasteiros.
Além da Ferrari, outro assunto ocupa espaço no noticiário italiano. Há algumas semanas, todos os jornais, rádios e tvs falam sobre o mesmo assunto. O G8, o grupo dos oito países mais poderosos do planeta que se reunirá em Gênova nos dias 20, 21, 22 de julho. Mas o assunto não é o presidente americano e seus súditos, Tony Blair e a Terceira Via, Berlusconni e suas gafes, o assunto é a "Família Anti-Globalização". No dia 17 de junho, o jornal La Repubblica,um dos principais da Itália, apresentava em letras garrafais a seguinte manchete: "G8 em Gênova, Itália com medo". So faltou um ponto de exclamação e um comentário do Nelson Rodrigues. Mas a verdade é que a Europa vive um clima de guerra anunciada. Pelas manchetes e previsões mais de 100 mil pessoas irão a Gênova gritar contra a globalização. Por isso um esquema de segurança extraordinário esta sendo montado. A cidade será isolada, por muros e pela polícia. " Não deixaremos que aconteça em Gênova o que aconteceu em Gotemburgo", sentenciou um dos ministros italianos.
O mesmo jornal, no dia 16 de junho, estampava a "radiografia" da família anti- globalização. Uma pequena lista "identificava" os líderes do movimento. Ao lado de figuras como o subcomandante Marcos, José Bove, Eduardo Galeano, José Saramago, Noam Chomsky, Noami Klein, Jeremy Rifkin, Samir Amin, Vandana Shiva, Tony Clarke e outros, aparecia um pouquinho do Brasil, um Brasil coerente e respeitado. Um Brasil com memória. E lá estavam: João Pedro Stedile, Sebastião Salgado, Frei Betto, Leonardo Boff.
É certo que a Família Anti-Globalização não se resume numa lista de jornal. A gente sabe, os jornalistas de gabinete gostam de esquemas e reduções, os infográficos surgem antes da notícia e a notícia surge assim, como receita ou rótulo. E os rótulos, nesse caso, são os líderes. Como rebate o músico Manu Chao, considerado pela mídia um dos símbolos do movimento, isso não passa de slogan jornalístico. Mas essa identificação, de certa forma, coloca um rosto humano na multidão, lhe dá um endereço, lhe atribui uma história. E isso, em alguns casos, pode servir de escudo e proteção. Porque, como se sabe, quando se coloca a máscara do anonimato nas multidões, a vida ou morte de duas, 19 ou 111 pessoas não faz a menor diferença.
Uma das principais características da "família anti-globalização", formada pelos os mais diversos seguimentos e diferenças, é a sua capacidade de mobilização. Seja onde for, Seattle, Davos, Porto Alegre, Gotemburgo, lá estão eles, com sua voz, suas bandeiras, suas pedras e poemas. Parece evidente que muitos desses rebeldes não sabem onde querem chegar, mas sabem o o principal, sabem que o vento da história não pára, esta aí, em todos os cantos do planeta, levantando e derrubando homens, criando abismos e esperanças, guiando o tempo e desenhando um novo mundo. Como diz Eduardo Galeano, "somos o que fazemos, mas sobretuto, somos o que fazemos para mudar o que somos." E essa gente, chamada pelos meios de comunicação de "Povo de Seattle", resolveu romper o silêncio, está dizendo basta, está dizendo: "nós estamos aqui e não concordamos com vocês".
"Mas não é fazendo barricadas, usando a força e jogando coquetéis Molotov na polícia que os problemas do mundo serão resolvidos", diz a diplomacia e o bom senso. "Se há diálogo, não há violência", disse Renato Ruggiero, o novo ministro do exterior da Itália. Mas a questão é: que diálogo existe? Que democracia é essa, onde quem vota e decide são as multinacionais? Que argumento justifica os dados do último relatório de "Desenvolvimento Humano" da ONU onde se constata que as desigualdades mundiais de renda elevaram-se no século XX, a ordens de grandeza fora de qualquer proporção? Só para se ter uma idéia, a distância entre a renda média do país mais rico e o do país mais pobre era de aproximadamente 3 para 1 em 1820, de 35 para 1 em 1950, de 44 para 1 em 1973 e de 72 para 1 em 1992. Perdido entre desgraças numéricas, um trecho do relatório choca pela clareza: A tortura de um só indivíduo faz levantar, com razão, a indignação pública. No entanto, passam despercebidas as mortes de mais de 30 mil crianças por dia devido, principalmente, a causas evitáveis. Por quê? Porque estas crianças estão invisíveis na pobreza".
Não. Não há argumento para justificar que mais de 800 milhões de pessoas passem fome e não tenham segurança alimentar, que cerca de 1,2 bilhões vivam com menos de um dólar por dia. Mesmo nos países da OCDE, diz o relatório da ONU, quase 8 milhões de pessoas estão subalimentadas. Um estudo de Jean Ziegler, há muito tempo divulgado e há muito ignorado, torna ainda mais inconcebíveis estes números. Segundo ele, o mundo atual produz uma quantidade de comida capaz de alimentar uma população três vezes superior à que existe. Nao há argumento que justifique, como lembra Frei Betto, que "apenas quatro homens, todos dos EUA, possuam uma fortuna pessoal superior à riqueza somada de 42 nações subdesenvolvidas, que abrigam cerca de 600 milhões de pessoas!"
A África, como se sabe, é o continente mais devastado pela miséria. Em 2010, por exemplo, 28 milhões de crianças africanas terão perdido um dos pais ou ambos, vítimas dos vírus HIV, que somente na região subsaariana infecta 24,5 milhões de pessoas. Porém, como analisa Gilles Lapouge: "Tem-se o direito de lembrar que seriam necessários, segundo a ONU, US$ 3 bilhões para salvar a África de sua catástrofe, da morte por Aids. Três bilhões de dólares! É uma grande quantia, sem dúvida. Mas vale lembrar: a senhora Helen Walton, que dirige a cadeia de lojas Walt Mart, tem uma fortuna de US$ 46 bilhões. Certamente, tem-se vergonha de dizer uma coisa tão vulgar. Por isso, ninguém o dirá."
Nem todos são diplomáticos como o ministro Renato Ruggiero, alguns são sinceros. Como é o caso do economista Lawrence Summers, um dos poderoros do Banco Mundial, e do seu famoso memorando escrito em 1991. O texto deveria circular somente entre as paredes da instituição. Alguma novidade no documento? Não, dizia o que se faz diariamente, sem meias palavras. Mas por azar, a revista The Economist e o jornal The New York Times tiveram acesso ao memorando e publicaram as palavras secretas de Summers. Abre aspas:" O Banco Mundial deve estimular a migração das indústrias sujas para os países menos desenvolvidos, por três razões: a lógica econômica, que aconselha desviar os dejetos tóxicos sobre os países de menor renda; os baixos níveis de poluição dos países menos povoados; e a escassa incidência do câncer sobre esse pessoal que morre cedo".
O Norte deposita, há muito, o lixo do mundo nas terras do Sul. Os exemplos são intermináveis. Eduardo Galeano cita alguns: "A Bayer e a Dow Chemical produzem e vendem, na América, fertilizantes e pesticidas proibidos na Alemanha e nos Estados Unidos. Impunemente, a Volkswagen e a Ford produzem e vendem automóveis sem os filtros antipoluição que são obrigatórios na Alemanha e nos Estados Unidos. Mais de duzentos praguicidas que fazem parte da lista negra da Organização Mundial da Saúde são utilizados no Uruguai, que é um dos países com mais câncer no mundo. Os habitantes da Cidade do México têm a mais alta concentração de chumbo no sangue; as indígenas que trabalham nas plantações do litoral da Guatemala dão de mamar o leite mais intoxicado do planeta".
E quem são os grandes símbolos da "globalização"? São essas multinacionais. São elas que querem a abertura do mercado mundial, são elas que querem que o terceiro mundo abra suas portas para seus produtos, seus serviços e capitais. Mas estatísticas mostram, como lembra Maurizio Ricci, que a economia dos países pobres é mais aberta que a dos países ricos. Nos países pobres as exportações e importações representam cerca de 30 por cento do produto interno bruto. Nos países ricos, 20 por cento. Os poderosos do mundo querem, como já se disse, uma neocolonização, e nesses termos, não ha saída, nem diálogo.
Quando se fala muito sobre um assunto, bom ou ruim, medíocre ou grandioso surge entre outras coisas, a possibilidade de banalização. Já se falou tanto da miséria humana que ninguém mais se importa… violência, injustiças, fome… Desgraças históricas e consentidas, tornaram-se lugar comum. Já não é mais assunto que valha piada, discursos ou lamentações. Isso pensam os donos do Poder Oficial e, ao contrário, pensamos nós , os zapatistas, os sem terras, os sem teto, os sem comida, os sem trabalho, os artistas, os intelectuais, os jornalistas comprometidos com a ética e a justiça, assim pensamos nós, os estudantes, pensamos nós, gente comum que conhece a história e não desistiu de acreditar, assim pensamos nós, os trabalhadores, que não aceitamos a indiferença e amnésia coletiva, que não aceitamos a resignação como lei ou a injustiça como fato natural, assim pensamos nós, os insurgentes, solitários ou não, que insistimos em resistir e temos a audácia de sonhar em voz alta.
*Fernando Evangelista (fevbrasil@bol.com.br) é jornalista, mora em Veneza. Dirigiu o documentário "Reações em Marcha" sobre o MST.
Este artigo foi publicado no site Sarcastico.
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