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Dar o peixe e ensinar a pescar

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

Se a erradicação da miséria, como sugere o estudo do Ipea, deve começar pela mobilização da sociedade, alguns movimentos importantes nesse sentido já vêm sendo feitos por organizações do terceiro setor em todo o país. Entidades como o Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa, em Fortaleza (CE); o Instituto Vitae Civilis, em São Paulo (SP); e a Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Valente (BA) procuram gerar oportunidades para o desenvolvimento e o fortalecimento de comunidades de baixa renda.


Com indicadores de pobreza equivalentes aos do Nordeste brasileiro, o Vale do Ribeira, no Sul do estado de São Paulo, é uma das regiões ambientalmente mais ricas do país. Ali encontra-se quase um quarto de toda a Mata Atlântica existente no Brasil. E ali, também, é realizado, desde 1989, um trabalho que pretende transformar grupos comunitários em "atores políticos e sociais". Quem explica melhor é Rubens Harry Born, coordenador geral do Vitae Civilis - Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz: "A nossa proposta é fortalecer essas comunidades combinando três ‘Ps’: políticas públicas, pesquisa e práticas irradiadoras, que estimulem outros grupos a buscarem seu desenvolvimento. Tentamos interferir em políticas públicas e na geração de práticas locais", esclarece.


O Vitae Civilis procura estimular o desenvolvimento humano a partir de atividades integradas ao meio ambiente, uma vez que o Vale do Ribeira conta com algumas áreas de proteção ambiental. "Nosso trabalho desmistifica aquele falso dilema entre conservar e produzir", diz Born. "Ajudamos a desenvolver processos de manejo e a diversificar a produção, incentivamos atividades de ecoturismo e aproveitamento de resíduos. Queremos que essas pessoas encontrem meios de subsistência, para que não precisem sair do campo".


Born acredita que a pobreza não se limita ao problema da falta de dinheiro. "Pobreza, muitas vezes, é falta de acesso a oportunidades, educação e saúde", diz.


Porta-vozes das próprias necessidades


Ao comentar o estudo do Ipea, Rubens Born se mostra impressionado: "Esses dados revelam o imenso fosso social em que a gente vive e significam que um terço da população está em condições miseráveis". Citando Herbert de Sousa, ele reconhece que ações tópicas não vão resolver o problema: "O Betinho dizia que a gente às vezes tem de dar o peixe, mas também precisa ensinar a pescar. O fim da pobreza", afirma, "depende de uma trasformação maior - de atitudes, auto-estímulo e posturas. É preciso capacitar as pessoas para que elas sejam porta-vozes das próprias necessidades", conclui.


As lições de Betinho estão muito presentes também em um trabalho desenvolvido em bolsões de pobreza na periferia de Fortaleza (CE). O Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa (CDVHS) se dedica a ações voltadas para a defesa e a promoção dos direitos humanos. A assistente social Lúcia Albuquerque do Carmo, uma das fundadoras da entidade, também não esconde o espanto com a desigualdade brasileira: "Os dois dados divulgados - de um Brasil ao mesmo tempo rico e desigual -, por si só, nos deixam perplexos". E adverte: "A democracia é incompatível com a miséria. É preciso tirar da gaveta projetos que ponham um fim nessa desigualdade".


O CDVHS procura fazer a sua parte. E dois projetos são particularmente relevantes. Um deles é o de microcrédito, voltado para famílias com renda de até dois salários mínimos que desejam montar negócios próprios. O projeto é organizado dentro do conceito de socioeconomia solidária, que pressupõe gestão e discussões coletivas, o que abre não apenas uma perspectiva de concessão de crédito, mas de criação de uma cultura de grupos. "Assim estimulamos o desenvolvimento local e combatemos a pobreza não apenas financeiramente, mas na formação de consciência, de cidadania, o que pode impulsionar pressões para a criação de políticas públicas", explica Lúcia. Ela argumenta que essa é uma forma de dar às pessoas uma possibilidade de diálogo com os poderes público e privado para, quem sabe, obter investimentos mais significativos.


O outro projeto é voltado para o fortalecimento de entidades como associações de bairro e de moradores, cooperativas e grupos culturais, para que as pessoas ampliem discussões regionais sobre o desenvolvimento.


Lúcia Albuquerque destaca ainda a participação de membros do CDVHS como bolsistas em um curso à distância de "Construção de Indicadores Sociopopulacionais" realizado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas - Brasil (FNUAP), a Fundação Joaquim Nabuco e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Minas Gerais. "É importante conhecer bem esses indicadores, porque eles nos ajudam a perceber onde e como devemos atuar", diz ela, que defende debates e pressões por investimentos que possam transformar a realidade. "O papel do terceiro setor", afirma, "é fazer chegarem ao poder público discussões que possam ajudar a reverter esse quadro".


"Não queremos e não vamos demitir"


Da periferia de Fortaleza passamos à região sisaleira do sertão da Bahia, onde a Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Valente (Apaeb) procura organizar os trabalhadores rurais para evitar o êxodo rumo às grandes cidades. "Nosso objetivo é a melhoria das condições de vida das pessoas que moram aqui, para que elas tenham meios de permanecer e não migrem para os grandes centros urbanos", diz Ismael Ferreira de Oliveira, gerente geral da entidade.


Mas viabilizar formas de sustento não é a única preocupação. A Apaeb aposta na formação e na capacitação das próximas gerações. Para isso, criou uma escola para os filhos dos agricultores que já conta com 80 alunos matriculados. Além do currículo tradicional de 5ª a 8ª série, a escola ensina técnicas de manejo, oferece noções de cooperativismo e incentiva a formação de novos líderes. A associação mantém ainda um programa de cidadania voltado para a organização comunitária, com apoio de sindicatos e igrejas.


Outro projeto é voltado para a utilização da energia solar - o que ganha uma dimensão ainda maior em meio ao racionamento do consumo de eletricidade no país. Mais de 800 famílias já estão participando.


A Apaeb também tem procurado estimular o reflorestamento. Mais de 130 mil mudas de árvores frutíferas e leguminosas já foram plantadas, para garantir a alimentação das famílias e dos animais. E nos curtumes é feito o beneficiamento da pele de caprinos e ovinos.


Mas o destaque maior em Valente é mesmo a fábrica de tapetes, responsável por 700 dos 804 empregos gerados pela associação. São teares modernos, que produzem toneladas de tapetes e carpetes a partir da fibra do sisal.


O racionamento de energia, porém, criou um problema sério: para reduzir o consumo e cumprir as metas estabelecidas pelo governo federal, a Apaeb terá de reduzir a mão-de-obra na fábrica. Isto significa que haverá demissões? "Não queremos e não vamos demitir ninguém", garante Ismael. "Acontece que há um movimento natural de pessoas que se cansam de trabalhar na fábrica e desistem, preferindo voltar para o campo. Então vamos aguardar até que o número de empregados chegue ao que a gente deseja". O impasse permanece. A Apaeb imagina que deverá trabalhar "no vermelho" por uns três meses, até que a situação se normalize.


Fruto de uma politica econômica que privilegiou a estabilidade da moeda, com a conseqüente falta de investimentos em outros setores, o racionamento pode estar apagando as esperanças de alguns brasileiros, mas certamente lança alguma luz sobre o cenário da nossa desigualdade.

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