Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
De 29 de maio a 1º de junho, Recife sediou o seminário "Polifonia da miséria: uma construção de novos olhares", promovido pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Fundação Konrad-Adenauer. Estiveram reunidos intelectuais e ativistas que trabalham com o tema em diferentes países, apresentando propostas para o combate à pobreza e relatando experiências. Os cientistas políticos Helenilda Cavalcanti e Joanildo Burity, coordenadores do seminário, responderam perguntas da Rets sobre o evento e comentaram o estudo do IPEA sobre a desigualdade social brasileira.
Rets - Quais foram as conclusões do Seminário?
Helenilda Cavalcanti e Joanildo Burity - Que a miséria e a pobreza têm muitas vozes, mas também muitas faces. E um dos problemas mais árduos com que nos defrontamos com essa questão é que não temos nenhum compromisso em erradicá-la. Somos, inclusive, contribuidores para a sua existência e manutenção. Nós nos orientamos na complexidade, na diversidade de facetas que esse problema da miséria e da pobreza apresenta. Por vezes nos perdemos no emaranhado e na trama dessa complexidade: há momentos em que pensamos que estamos agindo contra a sua erradicação, quando, na verdade, estamos nos aliando e facilitando o trabalho de sua reprodução.
Chamamos a atenção para os obstáculos que temos que levar em conta para o trabalho da erradicação da pobreza. Se observarmos os indicadores sociais a partir de cinco, seis, sete décadas para cá, por exemplo, vemos que a cada ano censitário nós encontramos alguma melhora na porcentagem da população brasileira em termos de educação, mortalidade infantil. Entretanto, se observarmos a média da velocidade dessa redução, vemos que ela é a mesma que há cinco, seis, sete décadas. Pode acontecer que essa situação, às vezes, avance ou diminua com um governo ou outro, mas, no geral, há uma permanência da situação de pobreza. O que está por trás disso tudo? Uma inércia social que mantém a pobreza e a desigualdade. E isto é cumulativo ao longo dos tempos e tem seu peso na solução dos problemas da pobreza. Deixamos de fazer algo que possa quebrar a relação de poder que mantém o círculo da pobreza e da desigualdade. Portanto, a inércia da sociedade é alguma coisa contra a qual temos que lutar permanentemente.
Falar de um Brasil que não é um país pobre pode esconder armadilhas nessa proposição. Ainda estamos nos referindo às médias. Isso é uma abstração. Temos um país em que 1% da população se apropria de 53 a 57% da renda. Se essa maioria não é pobre, não sabemos o que dizer. Além disso, não temos uma miséria, uma pobreza homogênea no Brasil. Não existe uma miséria média, uma pobreza média no Brasil. O que existe são pessoas que ganham muito e outras que não ganham quase nada, ou não ganham nada. E isso vai depender da região que habitam, do gênero a que pertencem, da raça, o que complica ainda mais as definições de pobreza. Os problemas da pobreza são então múltiplos, de muitas faces, têm sistemas de causalidades e determinação que variam e alteram as diversas perspectivas do observador. Temos uma heterogeneidade com situações que se superpõem. Precisamos, pois, de soluções que possam considerar essa heterogeneidade.
Vimos também que a pobreza é identificada a partir dos diferentes discursos dos intelectuais e políticos. As diversas perspectivas variam de acordo com as percepções das causas e estruturas e dos mecanismos de enfrentamento da situação. A idéia de uma "cultura da pobreza", que é atribuída à passividade social característica dos pobres. Outros lidam com a pobreza como uma conseqüência estrutural do capitalismo. Alguns discutem-na a partir das estratégias de sobrevivência utilizadas pelos pobres. Há também o conceito de empowerment, para explicar o processo ocorrido em algumas formas de organização social que desenvolvem as potencialidades dos pobres e capacitam-nos para mudarem sua condição. A idéia de politização dos pobres é trabalhada, principalmente, por autores da Teologia da Libertação, na América Latina. Existe também o princípio da resistência ao nível da micropolítica, em todas as dimensões da realidade. Todas essas perspectivas apresentam fragilidades por tentar reduzir a questão da pobreza a um princípio e/ou uma estratégia de ação únicos. Em contraponto a esses discursos, temos ainda a noção de uma "política de rua". Segundo essa visão os pobres constituiriam redes sociais passivas, que tendem a resistir, quando ameaçadas pelo sistema, através da utilização estratégica de práticas ilegais - a idéia do "rebelde silencioso". Concluímos que não podemos propor um modelo unificado e universal para a pobreza, pois incorreríamos no mesmo erro dos discursos que criticamos.
Olhando a questão da miséria/pobreza humana a partir de uma reflexão da psicanálise, temos que a marca do mundo moderno é um mal-estar permanente da ausência de uma instância reguladora das relações sociais e pessoais. No mundo pré-moderno, esse espaço era ocupado por Deus. Até o final dos anos 70, início dos anos 80, os mediadores desse mal-estar eram o Estado, sindicatos e projetos políticos utópicos. Com o advento da globalização e o neoliberalismo, houve o enfraquecimento desses mediadores. Hoje estamos entregues ao "desamparo devastador". Como conseqüência dessa miséria psíquica e material em que nos encontramos ("experiência masoquista fundamental", em que a pessoa não sabe o que fazer com seu sentimento de desamparo), temos:
1. "Servidão voluntária". Exemplo: a funcionária Regina, durante o episódio da violação do painel eletrônico do congresso nacional;
2. Experiências de depressão causada pelo vazio da ausência de projetos; proliferação de patologias psicossomáticas; proliferação da violência como forma de escoamento desse mal-estar causado pelo desamparo; uso crescente de drogas, sejam elas ilegais ou legais; e sentimento de vergonha. Assim, a condição da miséria pós-moderna é caracterizada por um desamparo devastador. É importante considerar isso para a constituição psíquica. A miséria humana é provocada pela ausência das instituições reguladoras do bem-estar. Por conta do desamparo, vivemos uma ampliação do somático, ou a violência como uma forma de lidar com o desamparo, assim como o consumo de drogas. O sentimento de vergonha nos dá a sensação de que não pertencemos ao mundo humano, que perdemos a nossa espinha dorsal. As pessoas perderam a condição de sujeito e vivem um reforço de sua animalidade.
Rets - Que propostas foram apresentadas para a erradicação ou redução da pobreza?
Helenilda Cavalcanti e Joanildo Burity - Para uma política social de erradicação da pobreza propomos:
- Valorizar os diferentes tipos de discursos sociais e estratégias de enfrentamento da pobreza existentes na realidade contemporânea, articulando as "políticas da desigualdade" a uma "política da diferença". Os tipos de política realizados por trabalhadores sem-terra ou sem-teto, por exemplo, caracterizados pela politização ativa, pela ação ostensiva e pelo confronto direto, são bastante diferentes da política dos sindicatos de trabalhadores fixos - sindicalismo cidadão, formação de associações civis etc. Também são diferentes das políticas específicas realizadas pelos chamados novos movimentos sociais. Mesmo resguardando as diferenças, tais movimentos podem agir, e têm efetivamente agido, de forma articulada como uma rede polifônica de atores sociais. Uma amostra de tal articulação pode ser percebida nos acontecimentos do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre. Autores indicaram o surgimento de um "movimento cidadão mundial", que se contrapõe às diferentes formas de reducionismo, fechamento e exclusivismo em relação à ação social.
- Observar a profundidade e generalidade das carências, tanto materiais quanto simbólicas, nas comunidades pobres - "holismo das carências" -, o que vai gerar o caráter multifocal das ações empreendidas pelos atores sociais envolvidos nesse contexto, a despeito das claras diferenças entre as comunidades estudadas quanto à caracterização de suas carências. Multifocalidade que manifesta-se de diversas formas. (1) nas ações realizadas, que, embora locais, transcendem muitas vezes o âmbito da realidade imediata da comunidade e a especialização (temática, profissional, social) dos grupos envolvidos; (2) a associação com uma rede de outros movimentos que manifestam outras demandas, características e discursos, que acabam se refletindo nos grupos envolvidos; (3) a "dupla jornada", já que os militantes dos movimentos/associações ocupam-se, ao mesmo tempo, de diferentes formas de ação (ações políticas, organizativas, religiosas, filantrópicas etc.).
- Observar as diferentes visões sobre a realidade e a dispersão dos objetivos. As diferentes visões sobre um mesmo tema não impedem a realização de ações conjuntas. As redes de movimentos e atores comunitários não são visíveis na superfície da sociedade. Formam-se como uma trama de relações geradas sem a ação de um controle ou centro irradiador. As relações definem-se como parcerias, compartilhando recursos e demandas de forma pragmática e geralmente voltadas para a participação em ações mútuas e prestação de serviços.
- Incentivar projetos e ações que possam mobilizar capacidades e efetivações das experiências de vida de uma população.
- Trabalhar a desnaturalização da miséria, na perspectiva da sociedade. A questão está posta na indignação que a população deve ter. Deve-se amarrar no sentido de que se tornem políticas públicas concretas. A construção da cidadania (resgate da experiências, organizações) aponta a constituição de uma utopia.
- Promover o aumento dos espaços culturais, valorizando iniciativas locais. Contudo ficou claro que as atividades culturais são muito importantes, mas não há nada que indique que elas vão levar a uma diminuição da criminalidade, por exemplo - que é um tipo de condição de precariedade social. A criminalidade/violência está ligada, em parte, à impossibilidade de acesso aos bens e símbolos sociais. Não se podem produzir sonhos e expectativas sem cumpri-las e satisfazê-las.
Rets - O que lhe parece esse quadro de tamanha pobreza em um país que, segundo o estudo do IPEA, está incluido entre as nações mais ricas do mundo?
Helenilda Cavalcanti e Joanildo Burity - Os indicadores econômicos demonstram que, embora tenha havido uma "melhoria nas condições da pobreza", a distância econômica entre as classes mais ricas e mais pobres permanece a mesma ou piorou. A situação dos ricos no Brasil coloca em questão o "direito ao desenvolvimento" para todos. O "direito ao desenvolvimento" estabelece que certas condições de bem-estar devem ser satisfeitas para se alcançar "o dom, o direito da liberdade" (Sen e Nausbaum). Se isto não sucede, a sociedade não está protegendo a liberdade de seus cidadãos. No entanto, não há clareza quanto ao papel que o Estado, o mercado, ou a sociedade civil devem cumprir. Com o crescimento da pobreza, se aceitou a conveniência de complementar as reformas estruturais e o ajuste com redes de seguridade e de compensação, de apoio aos novos pobres e assistência aos mais vulneráveis. Tomando efeitos por causas, se executaram programas de educação, nutrição, saúde e moradia.
Há um questionamento duríssimo a se fazer quanto à efetividade, e mesmo à veracidade, do compromisso de diferentes projetos governamentais de enfrentamento da pobreza há décadas neste país. Está patente que o desenvolvimento econômico e tecnológico somente aumentou o fosso entre ricos e pobres ao longo dos anos e, embora haja diminuição da pobreza segundo alguns índices, são milhões de brasileiros que permanecem na linha da pobreza ou abaixo dela. Retóricas à parte, as políticas públicas nacionais e locais têm tido impacto ínfimo na diminuição do problema. Enquanto há quase uma unanimidade das vozes em defesa do "combate à pobreza", vemos esta se alastrar em ondas ou ciclos ao final dos quais estamos praticamente na mesma posição de antes.
Sem efetiva representação política, os pobres não têm nem a força, nem a organização, nem a coesão suficientes para prevenir ou evitar que se adotem tais políticas. As trajetórias da desigualdade e da pobreza têm a ver com as estratégias de desenvolvimento que cada país elabora e só marginalmente são afetadas pelos programas de transferências monetárias das ações antipobreza. No entanto há sinais de que, de vários quadrantes da sociedade, experiências novas, com ou sem a participação do Estado, apontam para possibilidades muitas vezes simples e de baixo custo para efetivamente diminuir a pobreza, alargar a inclusão social e fortalecer a cidadania.
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