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Corpos à Venda

Autor original: Felipe Frisch

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Foto:
Nadson Alves



Entre os anos de 95 e 96, o jornalista Luiz Ribeiro publicou uma série de reportagens denunciando a prostituição infanto-juvenil no Norte de Minas e no Vale do Jequitinhonha. O resultado, além de outras informações que foram aprofundadas mais recentemente, está no livro "Corpos à Venda", lançado pela Editora Unimontes em junho. Numa entrevista exclusiva para a RETS, o repórter, coordenador da sucursal do Estado de Minas em Montes Claros, fala da experiência, debate os parâmetros que orientam hoje a imprensa e comenta a verdadeira função do jornalismo.


Ribeiro explica por que sua obra pode ser considerada tão apaixonante quanto um romance policial e fala o quanto os avanços da tecnologia estimularam o surgimento de profissionais que não vão até a informação. O comodismo em denunciar o que é "denunciável", e obedece a interesses particulares, impera nas redações. Isso só estimula uma sociedade conformada, que não se incomoda nem com a erotização precoce estimulada pela mídia, nem com a própria prostituição infanto-juvenil, mesmo quando uma é conseqüência quase direta da outra. Enquanto isso, a virgindade das meninas é vendida até em leilões, como ele denuncia.


Rets - Roberto Drumond, na apresentação, define a publicação como "uma viagem apaixonante, como se fosse um romance policial". Você considera seu livro uma obra de investigação jornalística?


Luiz Ribeiro - Sim. Realmente é uma obra de investigação jornalística. É um obra de investigação que aborda um tema polêmico, que é a prostituição infanto-juvenil. Ela não se limita à questão da prostituição em si, mas abrange também outros temas relacionados, como, por exemplo, as deformações no comportamento desde a adolescência, a falta de estrutura na família. Enfim, as causas da prostituição e medidas de solução. O trabalho é uma viagem apaixonante, mas também cheia de emoções.


Rets - Seria essa a função do jornalismo de hoje? Se sim, como os profissionais se relacionam com ela?


Luiz Ribeiro - Obviamente, sim. Eu acredito que os jornalistas precisam retomar aquela coisa que é você investigar, ir a fundo, procurar se informar mais, saber os reais motivos de uma situação. O que ocorre hoje é que, com o advento do avanço tecnológico, ficou mais fácil saber das coisas de dentro de um escritório, ou melhor, da redação. É preciso pesquisar mais, ir a campo, ouvir pessoas de diferentes lados da questão. Isso que é investigar.


Rets - Os profissionais de imprensa de hoje estariam se ocupando de denúncias que atendem a interesses "maiores", ou particulares?

Luiz Ribeiro - Acho que nem todos. Na verdade, o que falta mesmo é o jornalista investigar por ele próprio, saber dos fatos através do cidadão comum, das pessoas do povo, levantar aquilo que aflige a comunidade como um todo. Muitas vezes, o jornalista só vai fazer uma investigação a partir do momento em que determinada denúncia chega até ele na redação. E, infelizmente, muitas denúncias são feitas porque o denunciante tem algum interesse pessoal no assunto.


Rets - Ou seja, a própria onda do denuncismo revela que a prática da denúncia também chegou a um nível de banalização.


Luiz Ribeiro - Infelizmente, atualmente, a mídia vive numa guerra de audiência, numa guerra pela leitura. O que interessa é aquilo que o povo quer ouvir e ver, aquilo que choca mais, que desperta mais atenção. A denúncia, de uma certa forma, acaba encaixando dentro desse "interesse", independentemente da veracidade dos fatos ou não. O jornalista tem que ter a responsabilidade de não fazer denúncia só em função de um interesse do órgão em que ele trabalha, em busca de leitores ou audiência. Então, desse ponto de vista, o denuncismo ocorre, sim. Hoje, se você abrir os jornais impressos ou assistir aos telejornais, você vai ver muita denúncia que a gente fica, assim, com o "pé atrás". Será que isso é verdade mesmo? Se apura muito pouco. Acho que o jornalista tem sempre que pensar duas vezes antes de colocar uma denúncia no ar ou escrever em jornal, porque, não apurando direito, ele pode atingir pessoas inocentes. E os danos causados pela informação incorreta são difíceis de serem reparados.


Rets - Que tipo de situação mais complicada você teve que encarar para fazer sua pesquisa?


Luiz Ribeiro - Como eu relato no livro, a princípio, eu não conhecia o submundo da prostituição infanto-juvenil. Aliás, é um submundo muito pouco conhecido. A sociedade precisa saber mais sobre isso, até para facilitar a discussão e, conseqüentemente, a busca de soluções. Quando eu parti para a investigação na prática, tive dificuldades para levantar fontes. Isto porque quando você vê uma menina se prostituindo, você apenas assiste a isso, mas não tem números, não sabe o que realmente leva essa menina a viver em tal situação, onde ela mora, o que faz com que ela vá para a rua. Eu tive que superar a barreira da falta de informações para conseguir desempenhar um bom trabalho.


Rets - Que informações "proibidas", das que você obteve com agenciadores e com as meninas, lhe surpreenderam?


Luiz Ribeiro - Uma coisa que me surpreendeu foi a maneira como a coisa funciona. Há muita organização para evitar a polícia, para evitar a atuação das autoridades. Outra surpresa foi o envolvimento de pessoas importantes, de influência na sociedade, que, de uma certa forma, acabam sendo coniventes com essa situação.


Rets - Qual a posição dos clientes, de um modo geral? Como eles justificam estarem estimulando a prostituição infantil?


Luiz Ribeiro - Uma das minhas entrevistadas disse-me que, quanto menor a idade da menina de programa, mais é valorizada pelos clientes. É por isso que acontecem até leilões de virgens. No livro, eu relato a história do leilão de uma virgem, que foi anunciado em Belo Horizonte e acabou não acontecendo porque o caso foi denunciado numa reportagem do Estado de Minas. Acho que, ao se interessarem pela "compra" dos corpos de meninas cada vez mais jovens, adolescentes e até crianças mesmo, os clientes se esquecem da cidadania e do próprio respeito ao ser humano, pensando somente no prazer carnal.


Rets - Você disse recentemente que os problemas que levam as meninas à prostituição são os sociais e os familiares, mas que há ainda a contribuição da banalização do sexo estimulada pela própria mídia. O seu livro teria essa dupla função de provar o papel da mídia, ao mesmo tempo não banalizando certas questões, como o sexo, e também denunciando outras, como a prostituição infantil?


Luiz Ribeiro - Durante toda minha trajetória, nas dezenas de depoimentos que recebi e situações que eu encontrei, eu pude observar que a organização familiar continua sendo uma condição sine qua non para que a pessoa siga um bom caminho, para que busque uma boa educação, os valores e a ética. Infelizmente, a família é uma instituição que está sendo desrespeitada. Eu notei que a grande maioria dessas meninas prostituídas vive sérios problemas dentro de casa. Elas sofrem com a falta de estrutura familiar, ou seja, vivem sem mãe, sem pai. Os pais, em grande número de casos, são alcoólatras ou têm problemas com drogas. Isso, naturalmente, se soma à questão da pobreza, que impera nas regiões do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha, as regiões que serviram como referência para o meu trabalho e que, na verdade, espelham uma situação do país. Lamentavelmente, nos últimos anos, a mídia passou a ser dominada pela erotização. O sexo está presente na televisão em todos os momentos: em anúncios, em novelas, em seriados, em filmes. Até em anúncio de refrigerante tem sempre aquele apelo pelo corpo. Então ocorre aí a chamada "erotização precoce", ou seja, as meninas estão sendo induzidas à erotização antes mesmo de elas saberem o que significa atração sexual. Isso acaba provocando uma deformação no seu comportamento. Com essa distorção, uma criança que não tem família, que não tem orientação e que vive onde falta dinheiro, ela tem seu futuro colocado em risco, sendo exposta às coisas ruins da rua, entre elas a prostituição infantil. Eu entendo que, ao mesmo tempo em que a mídia tem a missão de denunciar questões como a prostituição infanto-juvenil e indicar caminhos para soluções, ela também dá a sua contribuição negativa, como a questão da erotização. Posso citar como exemplo a divulgação do funk. No início de 2001, os jornais cariocas mostraram uma série de denúncias das orgias nos bailes funks no Rio, nos quais, segundo as denúncias, meninas de quinze e dezesseis anos ficaram grávidas sem saberem quem eram os pais dos seus filhos.


Rets - Que atuação você verificou por parte das autoridades? Quem são as "autoridades" num quadro social delicado como o verificado nesses lugares?


Luiz Ribeiro - Eu acho que as autoridades de hoje acabam vivendo um pouco distantes da realidade. Todo mundo sabe que existe fome, miséria e prostituição. Acontecem muitos seminários, discussões e debates. Mas as autoridades, aqueles que têm o poder de decisão, na verdade, só atuam mesmo depois de alguma denúncia na imprensa. Por exemplo, a prostituição infanto-juvenil sempre ocorreu nas regiões onde eu concentrei minha investigação. Mas somente depois que o problema foi abordado nas reportagens que eu publiquei no Estado de Minas, e houve repercussão em outros veículos de comunicação nacionais, foi que as autoridades despertaram e resolveram agir. Foi formada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa de Minas Gerais que discutiu, chamou outras pessoas. Aí teve também uma ação da polícia militar e da polícia civil. Eu acredito até que o problema foi amenizado. Mas, depois de algum tempo, infelizmente, parece que teve uma dormência novamente. Lamentavelmente, o problema da prostituição infanto-juvenil continua fazendo parte do nosso cotidiano.


Rets - Vendo à distância, o problema não incomoda tanto a quem mora nas grandes cidades. Parece que é um problema exclusivo de lugares "isolados" como o Vale do Jequitinhonha. Mas tais discrepâncias sociais e suas conseqüências se reproduzem também nas capitais. Qual a diferença quando a prostituição juvenil ocorre em lugares que dispõem de menos recursos e investimentos?


Luiz Ribeiro - A prostituição infanto-juvenil não é uma questão peculiar de regiões mais isoladas e mais pobres. Na verdade, assim como a delinqüência e a prostituição, ela está presente em todos os lugares. Ela existe na Estação da Luz de São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife, no Porto de Santos, em Manaus, em Belém, em São Luís, nas regiões de garimpos da Amazônia, e por aí vai. Em alguns locais, o problema choca mais. Em outros lugares, nem tanto, porque as pessoas encaram a prostituição, a venda do corpo em troca da sobrevivência, como uma coisa comum, uma realidade aceitável diante de outros problemas sérios que existem nesses locais, como, por exemplo, a fome.


Rets - Qual foi a receptividade das meninas ao seu trabalho? E dos agenciadores e donas de bordéis?


Luiz Ribeiro - A princípio, eu confesso que tive dificuldade, sim. Para me apresentar, falar com as garotas, até porque eu não cheguei como uma pessoa que simplesmente queria o corpo delas. Eu estava atrás de outra coisa: informação. Eu tive que me aproximar das meninas e de outras pessoas envolvidas com a prostituição, conhecê-las melhor. No caso das meninas prostituídas, ao dialogar com elas, eu acabei fazendo com que elas se sentissem gente, seres humanos como elas realmente são. Algumas delas, devido à própria carência afetiva em que vivem, passaram a me ver como um amigo. Outras não resistiram pela própria ignorância, não sabiam o significado de um trabalho jornalístico. Assim, não colocaram nenhum empecilho ao meu trabalho. Em relação aos agenciadores, foi um pouco mais complicado, porque aí você já mexe com pessoas mais instruídas, que sabem o que é jornal, que sabem as conseqüências de uma denúncia, o que pode despertar junto às autoridades. Enfim, o importante foi que eu consegui superar essas barreiras, concluindo um trabalho gratificante, que foi o livro. Ao falar de receptividade, o que eu quero agora é uma receptividade das pessoas, do público. Eu não fiz um livro simplesmente para ser muito lido ou, quem sabe, se tornar um best-seller. É lógico que eu quero que muitas pessoas leiam. Mas desejo mesmo é que a leitura da realidade narrada no livro venha provocar uma reflexão. Meu objetivo é que as pessoas leiam, que discutam e que venham a se interessar por ações que venham ensejar mudanças. Não adianta ficar só falando que existe fome, miséria, menino de rua e exploração sexual de crianças e adolescentes. O importante mesmo é que cada um de nós reflita sobre o que podemos fazer. O caminho é cada um pensar sobre a forma como pode contribuir. A prostituição infanto-juvenil é mais uma questão de consciência das pessoas. O meu desejo é que haja uma mudança de pensamento para que possamos ter uma vida melhor. E que em breve, deixemos de ser o "País do Apagão" e da infância sem futuro, mas sim o Brasil de mentes e corações iluminados. Eu acredito que, um dia, vamos conseguir isso, sim. É por isso que Roberto Drummond conclui que o livro, apesar da realidade que escancara, também emite uma mensagem otimista.

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