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Estatuto das Cidades

Autor original: Felipe Frisch

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Um Projeto de Lei que tramitou durante mais de 11 anos no Congresso Nacional foi recentemente sancionado, com vetos, pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. É o Estatuto das Cidades, que entre outras coisas traz instrumentos de gestão democrática do solo urbano. A imprensa, sem saber por quê, comemora. Na entrevista, o presidente do Instituto Pólis e membro da Coordenação do Fórum Nacional de Reforma Urbana, Nelson Saule Júnior, fala do que foram realmente as conquistas com a "aprovação" e quais os próximos passos que poderão minimizar as perdas.

Entre os vetados, estão os artigos que tratavam da concessão de uso especial para fins de moradia, que garantiriam a efetivação do usucapião urbano. A justificativa para o veto está nos riscos da aplicação deste instrumento, que poderia "contrariar o interesse público". Em contrapartida, fica uma promessa de envio de Medida Provisória para garantir a posse no prazo de cinco anos a partir da edição da lei. Dessa forma, o Executivo entende que estaria garantindo que espaços públicos fossem preservados, defendendo o interesse que deve prevalecer: da população. Nas conquistas, ainda está o IPTU progressivo no tempo para terrenos não utilizados.


Nelson fala também das formas pelas quais a população deve fazer valer seus direitos, se organizando, e como o Fórum Nacional de Reforma Urbana e as organizações que dele fazem parte vão estar se articulando daqui para frente.



Rets - Como o Estatuto das Cidades vai garantir a participação popular nas decisões sobre o que pode ou não ser construído em solo urbano?


Nelson Saule Júnior - O estatuto estabelece como uma diretriz geral da política urbana a gestão democrática da cidade, especificando os instrumentos de participação popular que devem ser aplicados nos municípios como as Conferências Municipais e o orçamento participativo. Sobre o uso do solo, está previsto por exemplo o estudo de impacto de vizinhança, que torna obrigatória a consulta à população diretamente atingida por um empreendimento imobiliário de grande impacto num bairro.


Rets - Os jornais estão comemorando essa possibilidade de participação como uma novidade. No entanto, um dos vetos presidenciais ao projeto de lei é ao inciso V do artigo 43, que trataria justamente da gestão democrática das cidades, e do plebiscito e do referendo popular como formas de consulta popular para as decisões do que pode ou não ser construído. O argumento para o veto se justifica na existência de uma lei anterior (9.709/98) que já garantiria esse tipo de consulta. O que, de fato, muda com a lei?


Nelson Saule Júnior - Em primeiro lugar, a lei federal citada não assegura a realização de plebiscitos e referendos nos municípios quando se tratar de assuntos de interesse de bairro, de aprovação do orçamento, de aumento de um imposto, da concordância com o Plano Diretor. A justiça eleitoral tem negado a possibilidade de usar a sua estrutura em razão da inexistência de lei federal regulamentado aplicação destes instrumentos. A principal mudança é o reconhecimento legal dos instrumentos de gestão democrática da cidade de modo a conferirem maior eficácia ao princípio constitucional da participação popular. Com base no Estatuto das Cidades, qualquer pessoa que viva na cidade tem o direito de reivindicar na Justiça a utilização destes instrumentos, como por exemplo os conselhos - órgãos colegiados - de política urbana , caso o Poder Público se omita, ou se recuse a criar estes conselhos.


Rets - Além da falta de uma lei específica para organização do solo urbano, falta conhecimento da população sobre seus direitos?


Nelson Saule Júnior - Na verdade este é o principal desafio no campo educacional no Brasil, as nossas crianças e adolescentes deveriam ter uma educação voltada para o conhecimento dos seus direitos, de como lutar para conquistá-los através do exercício da cidadania e da participação política.


Rets - Outro veto (inciso I do art. 52) descaracteriza como ato de improbidade administrativa o impedimento, por parte do prefeito, da participação das comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil. Dessa forma, acaba não havendo punição para o prefeito que não recorrer à consulta popular. Sendo assim, a lei não acabaria sendo mais uma que sugere tantas obrigações sem sugerir uma "pena" para quem não cumprí-la?


Nelson Saule Júnior - Poderá haver punição para o prefeito e para os demais agentes públicos, quando, por exemplo, a Lei Orgânica do município estabelecer a obrigação de o poder público assegurar a participação popular na elaboração do plano diretor ou do orçamento, e houver a recusa ou omissão destes agentes no cumprimento desta obrigação. Este dever pode ser estabelecido por uma lei específica que discipline os instrumentos da gestão democrática da cidade, ou pela lei de diretrizes orçamentárias no que diz respeito ao orçamento municipal.


Rets - Como você vê a resposta das prefeituras municipais ao novo Estatuto?


Nelson Saule Júnior - A resposta das prefeituras tem que ser dada através de ações concretas diante da possibilidade de aplicação dos instrumentos voltados a assegurar que a propriedade urbana atenda a sua função social, como a edificação e o parcelamento compulsório, e o IPTU progressivo no tempo. A resposta imediata é dos municípios iniciarem os processos de elaboração ou de revisão dos seus planos diretores ainda este ano, de modo que os instrumentos de reforma urbana possam de fato ser aplicados nos termos propostos na Constituição brasileira.


Rets - Quais foram as maiores conquistas com a aprovação?


Nelson Saule Júnior - A maior conquista, sem duvida, é a de o Estatuto ter incorporado diversas propostas do Fórum Nacional de Reforma Urbana, como, por exemplo, a constituição de um novo direito denominado "direito a cidades sustentáveis", a incorporação da gestão democrática da cidade como diretriz fundamental da política urbana, assim como a promoção da regularização fundiária e urbanização das áreas ocupadas por população de baixa renda e a indenização da desapropriação para fins de reforma urbana não computar a valorização imobiliária decorrente das obras realizadas pelo poder público. Além da outorga onerosa do direito de construir, o usucapião coletivo e a própria concessão de uso especial para fins de moradia que, apesar do veto, será reintroduzida por uma Medida Provisória.


Rets - A maior perda foi a da concessão especial de uso para fins de moradia para quem já está no local público?


Nelson Saule Júnior - Não entendo que tenha sido uma perda, pois, nas razões do veto, o Governo reconhece o instituto jurídico da concessão de uso para fins de moradia em áreas públicas como um importante instrumento para propiciar o direito à moradia a milhões de moradores de favelas e loteamentos clandestinos. Tanto é verdade que se compromete nas razões do veto a enviar ao Congresso Nacional uma nova proposta através de Medida Provisória (que faça valer o prazo de cinco anos a partir da edição do Estatuto). Sobre o prazo para quem já está na posse de área pública, de cinco anos a partir de 30 de junho de 2001, com certeza no futuro terá que ser revisto.


Rets - Como a sociedade civil deve se organizar para fazer cumprir o Estatuto?


Nelson Saule Júnior - A sociedade deve se organizar através de fóruns, comitês de Reforma Urbana que integrem movimentos populares, ongs, entidades de classe, organizações e movimento culturais, além de entidades estudantis, instituições acadêmicas, seguindo o exemplo do Fórum Centro Vivo da cidade de São Paulo.


Rets - Quais as lutas agora do Fórum Nacional de Reforma Urbana?


Nelson Saule Júnior - De imediato, é reintroduzir no Estatuto das Cidades a concessão especial de uso para fins de moradia. Para os instrumentos de reforma urbana serem apropriados pelos diversos setores da sociedade civil, estamos elaborando uma cartilha sobre o Estatuto, e estamos organizando, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, com a Frente Nacional de Prefeitos, o IAB, a Frente Nacional de Saneamento e outras organizações, uma grande Conferência Nacional sobre as Cidades para o mês de outubro em São Paulo, para construir nacionalmente uma estratégia para a efetiva aplicação do Estatuto da Cidade visando a realização da reforma urbana e a efetivação do direito à cidade, de modo que possamos viver no Brasil em cidades mais justas, igualitárias, belas, éticas e democráticas.


* Veja o Estatuto das Cidades e a Mensagem de Veto da Presidência da República na área de Legislação do site da Rits.

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