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Ritmo e cidadania

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






O movimento hip-hop cresce acelerado, no ritmo da palavra. Os manos, que extraem poesia da indignação, que fazem da miséria e do sofrimento matéria-prima da sua arte, estão rimando poesia com cidadania. Nas favelas e nas periferias brasileiras, o rap, a dança de rua, o som dos DJs e o colorido dos grafites tornam-se, cada vez mais, veículos para a expressão de comunidades que querem passar das palavras à ação e sonham em entrar no futuro pela porta da frente.


As iniciativas surgidas a partir do movimento hip-hop vêm chamando atenção pelo potencial de aglutinação e transformação. O discurso do rap, carregado de crítica social e política, tem sido capaz de mobilizar jovens, criando projetos de protagonismo juvenil e afastando-os das drogas e do crime. Prova da eloqüência do movimento é a organização, de 18 a 21 de outubro, no Rio de Janeiro, de um evento que vai reunir rappers da América do Sul e do Caribe, cientistas sociais e políticos.


O I Encontro Sul-Americano/Caribe de Hip-Hop e Política será realizado na Fundição Progresso, na Lapa, promovido pela Universidade Livre do Rio de Janeiro, pelo Conservatório Brasileiro de Música e pelo Laboratório de Estudos Contemporâneos da UERJ (Labore). O professor Mauro Sá Rêgo Costa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é o idealizador do projeto, que já recebeu a chancela da Unesco. "A história desse evento surgiu durante o Fórum Social Mundial, em janeiro, em Porto Alegre, quando fiz contato com caras de uma rede de rádios comunitárias americanas. Eles têm uma programação voltada para as Américas e essas rádios são integradas com o movimento hip-hop. Aliás, é curioso como muitas rádios comunitárias têm uma relação com o movimento. Daí veio a idéia de misturar música, expressão artística e a questão social e política. Essa garotada está fazendo um discurso político-social de contestação muito interessante. Eu fico impressionado com a qualidade dos textos. É uma linguagem paralela espontânea, crescendo em escala mundial sem o apoio da indústria fonográfica e beneficiada pela velocidade da Internet. E a gente tem que dar um crédito, uma força pra essas coisas que estão surgindo", diz Mauro.


O encontro terá concertos musicais, dança de rua e apresentação de trabalhos com grafite, além de mesas-redondas em que rappers como MV Bill e Thaíde vão participar de debates com gente como o antropólogo Luís Eduardo Soares, a pesquisadora Regina Novaes, do ISER e o pesquisador Ricardo Paes e Barros, do IPEA. "Escolhemos pessoas que tratam dos temas que aparecem nos raps, como violência, falta de qualidade na educação e prisões", explica Mauro. "E a gente procurou selecionar pessoas que não falam de forma acadêmica, que têm um discurso mais acessível".


Segundo Mauro Costa, a intenção é produzir dois vídeos de 50 minutos e sete programas de rádio para serem distribuídos às rádios comunitárias (cinco em português e dois em espanhol). Existe ainda o projeto de gravar um CD com parte da programação. "Queremos que o evento seja transmitido pelas rádios comunitárias ao vivo e também estamos estudando a possibilidade de transmitir pela Internet", acrescenta.


Jovens protagonistas


A realização desse encontro é sintomática da intensidade que vem ganhando o hip-hop em todo o Brasil. Dos guetos norte-americanos para a periferia brasileira, trouxe a contestação e o desejo de mudança, provando o quanto se pode fazer com a força das manifestações culturais. Cléia Silveira, assesora de Projetos da FASE/SAAP, no Rio de Janeiro, acredita no poder transformador dessas iniciativas. Ela própria ajuda a coordenar um fundo de apoio a pequenos projetos voltados para ações de protagonismo juvenil, chamado "Na Palma da Mão". Esse fundo tem como parceiros de peso os integrantes do conjunto O Rappa. Cléia comenta as possibilidades de projetos atrelados a manifestações culturais: "Eessas manifestações têm um período de vida. Não sei se é modismo, acho que isso faz parte do próprio movimento social. Elas têm um momento de pico, depois se assentam. Acho, sim, que há uma exploração tanto da mídia quanto do mercado fonográfico, que transformam em modismo, mas essas são interferências externas. Esses movimentos contribuem, são formadores de opinião, conseguem aglutinar as pessoas e ajudam a formar lideranças. E é uma linguagem que tem um poder de identificação muito maior".


Além de contribuir financeiramente, o grupo O Rappa estimula doações e participa de uma campanha permanente de difusão. O fundo está aberto a iniciativas em todo o Brasil. A escolha dos projetos beneficiados é feita por um comitê do qual a banda faz parte. "O Casarão de São Gonçalo (RJ) já recebeu verba desse fundo. São pessoas do movimento hip-hop que faziam um trabalho naquela região e ressocializavam jovens, transformando-os de pichadores em grafiteiros", diz Cléia.


Recentemente, um novo parceiro se aliou à FASE/SAAP e aos rapazes d"O Rappa: uma instituição holandesa, a Solidariedad, passou a contribuir com um dólar para o equivalente a cada dólar arrecadado. E a arrecadação, em si, é outro dado interessante. Há uma percepção clara da participação dos jovens nas contribuições. Gente que provavelmente abre mão de um percentual da própria mesada para colaborar. "Você vê nitidamente, pelas doações, que muitos jovens estão ajudando. Há pessoas que doam um, dois reais. Isso também é uma forma de protagonismo", afirma Cléia.


De fato, os movimentos culturais - o samba; o hip-hop, amanhã, outro mais - cumprem o seu papel. Nascem das tradições populares e a elas devem ser fiéis. Mais que isso: têm o direito de orientar transformações profundas e o dever de agir por elas. Particularmente em relação ao hip-hop, isso torna-se claro quando conhecemos um pouco da sua origem. Em artigo publicado pelo portal Bocada Forte, um site dedicado ao movimento, a autora, Juliane Rocha, não perde o ritmo:


"Para todos que estão começando a fazer parte dessa cultura, é importante saber, e não esquecer, que uma das características do movimento hip-hop é a preocupação com os direitos dos excluídos, negros, latinos, enfim, todos aqueles que sofrem com o desacaso das autoridades, a violência policial e com os conflitos civis. O objetivo do hip-hop, tanto nos EUA como aqui no Brasil, é trabalhar com a auto-estima dos marginalizados, levando informação e alertando sobre os perigos de uma vida bandida. O hip-hop é a oportunidade de expressão, é a voz da periferia".


O hip-hop quer ser uma rima e, quem sabe, também uma solução.

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