Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Artigos de opinião
Márcio Moreira Alves*
O dia 25 de junho deveria estar gravado em letras de ouro na história diplomática brasileira e na biografia do ministro José Serra, da Saúde. Naquela data, os Estados Unidos retiraram a queixa que haviam apresentado à OMC contra o governo do Brasil.
Motivo: desrespeito às patentes de remédios contra a Aids, o que possibilita prosseguir na distribuição gratuita aos doentes brasileiros.
Não creio que nós, da mídia, tenhamos dado suficiente realce à vitória conseguida em Genebra. Creio ter sido essa a maior vitória diplomática obtida pelo Brasil desde a solução dos nossos conflitos de fronteira, organizada pelo barão do Rio Branco. Noticiamos o resultado na OMC, mas não aprofundamos o assunto. Aproveito as informações publicadas no último número do "Le Monde Diplomatique" para juntá-las às de José Serra e relançar um tema de importância política mundial, que nos permite sair um pouco da pauta da roubalheira dos políticos.
Em troca da desistência, os americanos exigiram que o governo brasileiro prometesse consultá-los antes de conceder a licença de fabricação de genéricos que se refira a patentes americanas. O que aconteceu? Terá o governo do presidente Bush, que demonstra tão pouca preocupação com a saúde do planeta, tido um súbito acesso de humanitarismo? Difícil. Mais simples acreditar no editorialista do "Herald Tribune", Paul Blustein, que escreveu: "A afirmação agressiva da indústria farmacêutica dos seus direitos de patente pode gerar uma hostilidade que colocaria em risco todo o sistema de direitos de propriedade intelectual". Ou seja - o tiro poderia sair pela culatra e provocar mais prejuízos do que lucros.
Foi o cálculo que fizeram as 39 multinacionais que processavam o governo da África do Sul por produzir genéricos sem pagar direitos autorais. Diante da reação da opinião pública contra elas nos países ricos, o cartel da indústria farmacêutica desistiu repentinamente do processo, às vésperas da decisão definitiva do tribunal sul-africano. A indústria farmacêutica tentou ainda salvar um lucrinho. Propôs aos sul-africanos um pacote de remédios que representava reduzir o preço do tratamento de US$ 10 mil por ano para mil dólares anuais. Só por esse dado se pode avaliar o tamanho do sobrepreço de monopólio que estavam cobrando das populações mais pobres do mundo.
Deram-se mal. A indústria de genéricos indiana Cipla ofereceu aos Médicos Sem Fronteiras (MSF) um coquetel de medicamentos antirretrovirais a menos de US$ 350 ao ano. Um médico dos MSF, Bernard Pécoul, liderou uma experiência nos ambulatórios das favelas da Cidade do Cabo, que tem três milhões de habitantes, a um preço ainda menor, com resultados satisfatórios.
O centro da epidemia de Aids é a África. Há países onde um quarto da população está infectada e não existe infra-estrutura para a distribuição dos medicamentos. Andrew Natsios, diretor da Usaid, apontou um obstáculo difícil de conceber: um grande número de africanos jamais viu um relógio, o que torna impossível o tratamento de doentes que não reagiram às terapias de primeira instância.
Jeffrey Sachs, professor de economia em Harvard, dá palpites sobre qualquer assunto, desde as economias da ex-União Soviética e do Brasil até a luta contra a Aids. Promoveu em Harvard um seminário com alguns dos principais especialistas no assunto. Assinaram eles um documento afirmando que "um tratamento apropriado serve não apenas para evitar a morte de pessoas infectadas, como tem um papel importante na prevenção da doença, reduzindo a carga viral das pessoas tratadas e incentivando a maior participação de pessoas não infectadas nos programas de prevenção".
Os conselhos de Sachs não costumam agredir os interesses do mercado financeiro. O que deu sobre a Aids não foi diferente. No fim, recomenda que se continue a comprar os remédios das multinacionais americanas e européias, em vez de comprá-los por meio de licitações internacionais de quem os oferecer pelo menor preço.
Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas, considera a luta contra a Aids um objetivo prioritário da organização. Dedicou quatro reuniões de Conselho de Segurança e assumiu a tarefa de criar um fundo global de combate à doença. Calculou que essa luta consumirá cerca de US$ 7 bilhões por ano. O dinheiro viria dos governos dos países ricos, de doações de indivíduos, de fundações e de empresas privadas. O governo Bush ofereceu entrar com apenas US$ 200 milhões. Uma fração do esperado.
O Brasil gasta, com seu exemplar programa de distribuição de medicamentos, US$ 320 milhões por ano. Ainda luta por melhores preços - e não só para a Aids - com as multinacionais.
Quantos países subdesenvolvidos podem fazer esse esforço sem ajuda externa? No fundo, a vida e a morte são uma questão de grana.
*Marcio Moreira Alves é jornalista.
Este artigo foi publicado no Jornal O Globo, em 18/07/01.
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