Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Artigos de opinião
*Cristovam Buarque
"Se uma parte da imprensa usar, na cobertura do trabalho de elaboração do Orçamento, o mesmo esforço e competência adotados na cobertura dos escândalos do presidente Collor, do senador Luiz Estevão e do senador Jader Barbalho, o Brasil terá toda a chance de ter um orçamento ético"
A história brasileira dos últimos dez anos foi feita mais pela imprensa do que pelos políticos. Não fosse o trabalho sistemático, competente e cuidadoso de jornalistas, o Congresso não teria cassado presidente, senadores e deputados. E criado um clima propício para a abolição da corrupção no Brasil. Nada mais fosse feito daqui para frente, o Brasil já mudou, graças ao medo que se instaurou nos políticos brasileiros, depois de perceberem que não ficam impunes quando a imprensa os denuncia.
Mas essa mesma imprensa tão dedicada e competente para desvendar o crime de roubo de desvio de recursos públicos para bolsos privados não tem dado atenção ao desvio de recursos públicos de projetos essenciais para projetos supérfluos; a imprensa que denuncia os roubos ilegais não usa o mesmo rigor para denunciar os roubos legais perpetrados dentro do Congresso, durante a definição dos orçamentos públicos.
Fica a imagem de que a imprensa vê e denuncia quando o roubo ocorre dentro da elite, de um senador roubando de um prédio de luxo que deveria servir aos membros da elite; mas não vê quando dinheiro de escola vai para viaduto, de hospital vai para subsídio a empresário.
Isso vai ocorrer nos próximos meses, quando, sob o manto da indiferença da sociedade civil, o Congresso estará elaborando o Orçamento para 2002. Ali, provavelmente, novos TRTs aparecerão, novos desperdícios serão definidos, e o povo continuará excluído. O Orçamento será elaborado para atender a demanda e os privilégios dos ricos e não as necessidades e os direitos dos pobres. Até que, anos depois, se um privilegiado roubar privilégios de outros, a imprensa desperta, a sociedade civil acorda, as entidades sociais se mobilizam para cassar e até prender o privilegiado que roubou de privilegiados.
Isso poderá avançar, se a imprensa passar a escrutinar desde agora os gastos propostos no Orçamento, identificando os desperdícios, as injustiças com os esquecidos, os privilégios assegurados por lei. Se isso for feito, além da denúncia, será possível elaborar um orçamento ético. Não apenas ético no comportamento futuro de políticos impedidos de roubar, mas ético nas prioridades de atender os interesses populares, um orçamento que ponha a abolição da pobreza em primeiro lugar.
O Orçamento para 2001 prevê R$ 3,7 bilhões para o Fundo de Erradicação da Pobreza, pouco mais de 1% do total da receita do setor público brasileiro. São esses recursos que vão permitir o Programa Bolsa-Escola e a construção de redes de água e esgoto no Brasil. Não fosse uma comissão do Congresso, os recursos não existiriam e os programas não seriam implantados. Mesmo assim, são recursos insuficientes para uma estratégia de abolição da pobreza.
Seriam necessários R$ 40 bilhões por ano, durante dez a quinze anos, para que o Brasil abolisse o quadro de miséria que nos envergonha, hoje, tanto quanto a escravidão nos envergonhava cem anos atrás. Para o próximo ano, bastaria que o Fundo de Erradicação da Pobreza fosse ampliado para R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões. Com esse valor, o Brasil já daria um enorme passo na garantia de água e esgoto, reformulação de sua rede de saúde pública, universalização e melhoria na qualidade da educação.
Esse valor não será maior do que 5% do total previsto das receitas do setor público brasileiro, 1,5% da renda nacional. Valor perfeitamente dentro das possibilidades dos recursos nacionais.
Não é papel da imprensa mostrar de onde esses recursos deverão sair, mas é seu papel mostrar os roubos legais dos desperdícios e das injustiças que estão sendo programados, denunciar os benefícios a corporações, a preferência pelos gastos que nada têm que ver com os interesses populares.
Se uma parte da imprensa usar, na cobertura do trabalho de elaboração do Orçamento, o mesmo esforço e competência adotados na cobertura dos escândalos do presidente Collor, do senador Luiz Estevão e do senador Jader Barbalho, o Brasil terá toda a chance de ter um orçamento ético: comprometido primeiro com as necessidades sociais.
Para isso, basta um mínimo de dedicação na análise do que está na Lei de Diretrizes Orçamentárias e nas emendas que serão votadas ao longo dos próximos meses. A primeira tentativa para conseguir um orçamento ético já foi derrotada, quando a deputada relatora se negou a acatar proposta da senadora Marina Silva para criar uma rubrica que definisse os recursos destinados ao orçamento social. Isso ocorreu sem que a imprensa desse atenção, ainda menos denunciasse. Outros fatos vão ocorrer discretamente dentro do Congresso, em cada assembléia legislativa, câmara de vereadores ou distrital. Até que a imprensa descubra que precisa cuidar da ética nas prioridades da política e não apenas da ética no comportamento dos políticos.
A ética no comportamento serve para evitar a corrupção de políticos que se apropriam privadamente de dinheiro público, mas só uma ética nas prioridades vai evitar que o setor público aproprie para os ricos os recursos que deveriam ir para a abolição da pobreza no Brasil.
Há um século, a incipiente imprensa brasileira teve papel de destaque na luta pela abolição da escravidão; em pleno século XXI, a moderna, eficiente e decente imprensa brasileira precisa ter seu papel na luta pela abolição da pobreza, ajudando o Brasil a ter um orçamento ético em 2002. Para isso, basta nos próximos meses ficar atenta ao trabalho dos parlamentares na elaboração do Orçamento, com a mesma dedicação e competência com que ficou atenta ao comportamento dos políticos nos últimos anos.
*Cristovam Buarque, ex-governador do DF, é professor da UnB e autor do Livro "A Segunda Abolição"
Este artigo foi publicado no Correio Braziliense em 25 de julho de 2001.
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