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Dilemas e desafios para a governança democrática no Brasil

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

*Orlando Alves dos Santos Junior


Parece possível afirmar que se desenvolve no Brasil uma nova cultura vinculada tanto à dimensão dos direitos sociais inscritos na Constituição de 1988 como à participação de uma pluralidade de atores sociais com presença na cena pública. O novo papel exercido pelo poder público e pelos atores sociais exige a reconfiguração dos mecanismos e dos processos de tomada de decisões, o que faz emergir um novo regime de ação pública, descentralizado, no qual são criadas novas formas de interação entre governo local e sociedade, através de canais e mecanismos de participação social, principalmente em torno dos Conselhos Municipais. São essas novas formas de interação entre governo e sociedade que nos permitem identificar nos municípios brasileiros, pelo menos do ponto de vista formal e institucional, a emergência de novos padrões de governo baseados na governança democrática, centrada em três características fundamentais: maior responsabilidade dos governos municipais em relação às políticas sociais e às demandas dos seus cidadãos; o reconhecimento de direitos sociais a todos os cidadãos; a abertura de canais para a ampla participação cívica da sociedade.

A discussão sobre o modelo de governança democrática nos remete à própria questão da democracia, na qual buscamos identificar os aspectos que possam caracterizar a democracia local. Levando em consideração a relativa autonomia institucional da esfera local de governo, argumentamos que a efetividade da dinâmica democrática no plano municipal – na forma da competição institucionalizada pelo poder (eleições para ocupação dos cargos de governo) e da garantia dos direitos de cidadania política (liberdades associadas) – depende do entrelaçamento do município ao sistema legal em, pelo menos, dois aspectos: nas condições de exercício efetivo dos direitos de cidadania (grau de inclusão social) e nas características do contexto social geral, em que destacamos duas questões em especial: a existência de cultura cívica e a conformação de esferas públicas (grau de participação cívica).

De fato, a ampla inclusão e alta participação são processos que dizem respeito às condições de funcionamento – ou seja, à efetividade – da dinâmica democrática e envolvem uma grande subjetividade na sua definição porque estão ligadas à visão substantiva da democracia. Dessa forma, se podemos constatar, sob o ponto de vista institucional, a existência de um novo modelo da governança, nossa análise nos permite captar alguns aspectos relacionados ao contexto social e à dinâmica política local. Vemos que o grau de desigualdades sociais que marcam os municípios brasileiros é gerador de situações que bloqueiam ou dificultam as possibilidades de ampla habilitação/inclusão social requeridas para a instituição de governos locais baseados nesse modelo de governança. Pelo menos até o presente, estamos longe de verificarmos a emergência de um sistema político redistributivo de renda, serviços e bens públicos, na perspectiva de um “welfare municipal”. Além disso, sem a existência de mecanismos mais amplos – de âmbito metropolitano, estadual ou nacional –, são reduzidas as possibilidades de reversão desse quadro.

Além disso, a concepção de democracia à qual nos referimos requer um contexto social de esferas públicas mobilizadas, expresso em uma sociedade civil autônoma e em comportamentos poliárquicos de participação cívica. Vemos que a cultura cívica nos municípios brasileiros ainda é bastante insuficiente para gerar esse contexto social que, de um lado, favoreça a ampla participação social e política da população (cidadania política) e, de outro, seja capaz de ampliar o exercício efetivo dos direitos sociais necessários a uma vida de qualidade (cidadania social), de forma a reverter a situação de desabilitação a que milhares de cidadãos estão submetidos. Pelo contrário, constatamos uma participação restrita a poucos segmentos sociais com capacidade de organização e expressão política, cujo risco é exatamente reforçar o círculo vicioso de produção e reprodução das enormes desigualdades já existentes, em razão da crescente dificuldade (ou incapacidade) de organização e expressão política dos segmentos sociais em situação de vulnerabilidade ou exclusão social.


Em relação às instituições de governo local, nossa análise indica que, apesar de todos os avanços, a cultura que predomina no Executivo e no Legislativo ainda constitui um enorme obstáculo à democratização dos governos locais. Em relação aos Conselhos Municipais, percebemos que são canais institucionais com potencial de se tornarem arenas de interação entre o governo e a sociedade, por meio da expressão dos interesses coletivos, da mediação de conflitos e da construção de consensos. No entanto, ainda constatamos um precário investimento nesse modelo participativo e a ausência de uma política articulada de incentivo à cultura cívica. Concretamente, apenas pequena parcela da população tem vínculo associativo e isto impõe limites nas possibilidades de os Conselhos expressarem os diferentes interesses sociais presentes na sociedade.

Por tudo isso, afirmamos que o modelo de governança democrática instituído nos municípios brasileiros é incompleto: embora apresente canais de interação entre governo e sociedade –sobretudo em torno dos Conselhos Municipais disseminados –, mantém-se caracterizado por profundas desigualdades sociais que produzem graves restrições à ampla inclusão e baixo grau de participação social. Nesse contexto, argumentamos que, para enfrentar os dilemas da reforma municipal brasileira, é necessário que se insira no centro do debate a questão democrática, ou seja, as discussões sobre o grau de inclusão e de participação sociopolítica da sociedade civil, e a interação entre instâncias deliberativas de governo local e a sociedade.

Entre novas e velhas práticas, as mudanças nas instituições de governo podem, no longo prazo, alterar a cultura cívica e o capital social das cidades brasileiras. Assim, as possibilidades de essas mudanças ocorrerem dependem do fortalecimento institucional e da representatividade democrática, tanto das instâncias de governo como das diversas organizações sociais. Portanto, é no campo da política que estarão sendo definidas as possibilidades da integração social constituir cidadãos e aprofundar nossa dinâmica democrática. Desta feita, com a sociedade civil e os governos locais fortes, ampliam-se as oportunidades de práticas de governança democrática. No entanto, em razão dos fatores sociais, econômicos e políticos que envolvem o fortalecimento do Estado e o fortalecimento da sociedade civil, requerem não apenas um projeto de cidades justas e democráticas, mas também um projeto de república, um projeto nação.

*Orlando Alves dos Santos Junior é sociólogo, doutor em planejamento urbano e regional, diretor de programas e projetos da FASE, autor do livro "Democracia e governo local: dilemas da reforma municipal no Brasil". Rio de Janeiro, Revan, FASE, 2001.

A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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