Autor original: Felipe Frisch
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O terceiro setor parece marcar o fim de uma disputa secular entre o público e o privado, o mercado e o Estado. No entanto, muita confusão ainda existe na hora de definir de onde vêm os recursos dessas atividades das organizações da sociedade civil. Para quem está à frente dessas iniciativas, pode não ser mistério algum que a fonte de recursos seja muitas vezes o próprio terceiro setor. Mas como explicar isso dentro de uma cultura estatizante, que confunde essa atividade com as iniciativas sociais promovidas por empresas ou suas fundações?
É nesse cenário, identificado por um estudioso (Lester Salamon, “The rise of the nonprofit sector”) como uma “revolução associativa global”, que as organizações da sociedade civil buscam sua independência. Um estudo pioneiro, dos estudiosos Andrés Pablo Falconer e Roberto Vilela, traça um perfil das organizações de terceiro setor que surgem para garantir essa independência, as grantmakers brasileiras, por definição as organizações privadas, sem fins lucrativos, de origem nacional, doadoras de recursos para programas e projetos sociais.
”Recursos privados para fins públicos: As grantmakers brasileiras” (Editora Fundação Peirópolis, 2001), como os próprios autores definem, não é um cadastro de instituições financiadoras de projetos, mas um trabalho que mostra o comportamento dessas organizações e o impacto de suas atividades no setor e no mundo. O estudo, fruto de uma parceria entre o Instituto Synergos, de Nova York, e o Gife (Grupo de Institutos Fundações e Empresas), trata exclusivamente das grantmakers nacionais, as que não são filiais de fundações estrangeiras: 31, segundo a pesquisa.
O estudo revela as prioridades de investimento por parte das instituições doadoras: jovens e crianças e educação e treinamento são líderes absolutos. As ongs são as parceiras mais freqüentes: de 97% dos doadores. Na entrevista, o pesquisador Andrés Falconer, Coordenador Executivo da ABDL (Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças), fala sobre o setor que movimentou mais de R$ 220 milhões no ano passado no país, e o quanto isso reflete sua real independência - que ele considera um mito. Falconer também defende mudanças na regulação do terceiro setor para estimular a transparência da atuação.
Rets - Qual foi o ponto de partida da pesquisa, ou seja, de onde surgiu a iniciativa da pesquisa e qual a importância de uma pesquisa desse nível sobre as grantmakers brasileiras?
Andrés Falconer - A pesquisa nasce do interesse conjunto das duas instituições promotoras. O Synergos tem como parte de sua missão promover a filantropia em âmbito global e o Gife tem entre seus associados o maior contingente de fundações e institutos, empresariais ou não, que concedem doações para organizações sem fins lucrativos no país. O Synergos já desenvolve estudos semelhantes em outros países, com metodologia comparativa. A importância da pesquisa está em reconhecer um conjunto de organizações que não tem sido estudado sistematicamente e que tem uma importância central no terceiro setor, pelo seu caráter multiplicador: sua atuação como financiadores permite a existência de inúmeras outras organizações e programas no país. Um outro aspecto relevante é o fato de colocar em pauta a questão das doações no país. Às vezes a doação é vista como assistencialismo, outras vezes como ação de marketing, mas na maioria das vezes, ignora-se pura e simplesmente o fato de existirem organizações sem fins lucrativos brasileiras que doam para o terceiro setor. Acredita-se, ainda hoje, que o dinheiro do setor venha do exterior ou de somente de empresas.
Rets - Algum trabalho anterior já tinha feito uma análise sobre essas instituições no Brasil?
Andrés Falconer - Estudos anteriores limitavam-se, na maior parte dos casos, a cadastros de organizações, para serem utilizados por organizações que buscam doações. A Abong produziu recentemente um importante estudo sobre fontes públicas e privadas de recursos às ongs e há cerca de seis anos a pesquisadora Leilah Landim publicou um levantamento de financiadores internacionais. Estes dois estudos, embora tenham recortes diferentes, destacam-se pelo caráter analítico e não meramente descritivo e "cadastral" das organizações doadoras, e ajudam a refletir sobre o perfil do financiamento para o terceiro setor.
Rets - Que dados novos a pesquisa está trazendo para o debate?
Andrés Falconer - A pesquisa mostra que, sem sombra de dúvidas, existe um setor de organizações doadoras, sem fins lucrativos, brasileiras, ao contrário do que normalmente se crê, e que elas movimentam uma parcela expressiva de recursos. Aponta também a diversidade de atuação destas organizações, enfatizando a diferença de perfil entre as fundações e institutos mantidas por empresas das demais. Indica que a maior parte dos recursos destas organizações tem origem nacional, embora ainda exista um volume significativo de recursos de cooperação internacional, principalmente entre as organizações que não têm uma empresa como mantenedora. Mostra as áreas de investimento priorizadas, o valor do financiamento, o número de doações, entre outros dados. Constata-se que, ao contrário do que ocorre nos EUA, poucas instituições têm fundos patrimoniais, o que aumenta a sua dependência. Isto indica que, na prática, estas instituições doam recursos de terceiros, como mantenedores, doadores e outras agências financiadoras, e não próprios.
Rets - Como foi realizada a pesquisa?
Andrés Falconer - As organizações doadoras foram identificadas por cadastros, sites, indicações de especialistas e por seus pares. Foi aplicado um questionário, por telefone, correio, e-mail e por visitas pessoais, tabulado, analisado e as conclusões debatidas entre especialistas. Por ser um estudo exploratório, anteriormente à publicação foi apresentado em três eventos nacionais e internacionais, para validar e aperfeiçoar as conclusões.
Rets - A pesquisa teria o papel de aproximadora entre as grantmakers e as instituições beneficiadas?
Andrés Falconer - A idéia é essa... O estudo não deve servir apenas como cadastro, mas deve permitir aos "grantseekers" entenderem melhor os doadores, além de fomentar a transparência e a disseminação de informação.
Rets - De um modo geral, qual a interferência das grantmakers brasileiras na execução do projeto financiado?
Andrés Falconer - Parece haver um nível de interferência alto nos projetos financiados. Isto preocupa, mas nem sempre é negativo, quando as organizações trabalham em verdadeiras relações de parceria, e não de mera doação. Fundações e institutos empresariais não gostam de serem descritos como doadores, devido à conotação negativa que o termo adquiriu, e deixam claro que aportam muito mais do que dinheiro, incluindo aí conhecimento técnico, e de gestão em especial. Mas, de modo geral, fica a impressão de que deveria haver mais confiança entre doadores e receptores de recursos para que as grantmakers ampliassem seu leque de doação e reduzissem o grau de controle que exercem sobre quem recebe os fundos.
Rets - Qual a principal dificuldade na relação entre as ongs que recebem os financiamentos e as grantmakers, do ponto de vista das grantmakers?
Andrés Falconer - Este dado não foi explorado em profundidade, mas afirma-se que as organizações estão pouco capacitadas para receber recursos, administrar projetos etc. e portanto precisariam do apoio técnico das instituições. As organizações estudadas não querem ser vistas como fontes de recursos e estão dispostas a apoiar organizações com as quais puderem estabelecer relações sólidas de cooperação onde a doação é uma conseqüência.
Rets - E por parte das ongs? Você tem esses dados?
Andrés Falconer - Tenho menos dados ainda, porque isto não foi abordado no questionário. A impressão é que há ainda uma grande desconfiança em relação às motivações das entidades de origem empresarial, particularmente por parte das ongs tradicionais e que tiveram acesso a recursos de cooperação internacional.
Rets - O diretor regional para a América Latina e Caribe da Fundação Kellogg, Francisco Tancredi, considerou, numa recente entrevista à redeGife (veículo eletrônico do grupo), que há muita dificuldade para os financiadores com relação à forma dos projetos a serem financiados, pois são mal apresentados, ou pouco inovadores. Na sua opinião, e pelos dados da pesquisa, esse "mesmismo" afasta os financiadores?
Andrés Falconer - Como as necessidades sociais parecem ser infinitas, e como certamente não é responsabilidade exclusiva do setor privado, ou sem fins lucrativos, resolvê-las, as grantmakers geralmente optam por financiar projetos que tenham o caráter inovador e de alto potencial de replicação. Isto permite que experiências exitosas sejam reproduzidas em escala maior, possivelmente até pelo Estado. Entretanto, as organizações que dependem de recursos privados acabam, muitas vezes, presas nestes ciclos de "projetos inovadores": financiamentos pequenos, que não suprem as necessidades organizacionais e custos administrativos, por períodos curtos e com dificuldade de renovação e sustentabilidade. Por outro lado, é fato que há uma deficiência na capacidade de apresentação de bons projetos, do ponto de vista técnico e de apresentação.
Rets - Tancredi também fala da falta de organização das ongs para prestarem contas, enquanto as organizações reclamam do excesso de exigência das grantmakers. O que falta no terceiro setor brasileiro para uma boa convivência entre financiadores e financiados?
Andrés Falconer - Na minha opinião faltam critérios claros, refletidos em lei, em códigos de conduta e de ética, que promovam a transparência na alocação de recursos no terceiro setor. A partir de regras claras é possível gerar uma cultura de confiança entre doadores e beneficiários de fundos.
Rets - Tomando como referência os recursos que vêm das grantmakers, R$ 220 milhões foram movimentados no ano passado no Brasil. Esse volume está crescendo?
Andrés Falconer - A pesquisa mostra um retrato instantâneo. Seria necessário realizá-la novamente no futuro para fazer projeções a esse respeito, mas tudo indica que sim. O simples fato de a maioria das organizações de origem empresarial ser muito recente é um indicativo. Novas entidades surgem a cada momento e aumenta a percepção na sociedade de que o espaço público é de responsabilidade de todos, não apenas do Estado.
Rets - Muitas vezes, os recursos dessas grantmakers vêm de organizações privadas com finalidades de lucro, especialmente quando estão ligadas a empresas, como Souza Cruz, Bradesco e outras. Esse tipo de financiamento torna o terceiro setor realmente independente? Qual a diferença entre os recursos advindos de fundações empresariais e aqueles providos por instituições como as Fundações Ford ou Kellogg?
Andrés Falconer - As Fundações Ford e Kellogg não são fundações empresariais. Foram criadas a partir das fortunas pessoais de seus fundadores, empresários e têm 100% de independência em relação às empresas que levam o mesmo nome de família. É o mesmo caso de Rockefeller, McArthur e outras fundações americanas. Diferentes são as fundações empresariais, e especialmente as fundações e institutos empresariais brasileiros que nascem, efetivamente, como "braços sociais" de empresas e dependem de aportes de recursos destas. Fundações empresariais não tem finalidade de lucro, mas as empresas mantenedoras, sim. O financiamento do terceiro setor por organizações vinculadas a interesses empresariais pode sujeitá-lo a estes interesses, por mais legítimos que sejam. O que se observa, entretanto, é que o "investimento social" de empresas e suas fundações não é normalmente vinculado a uma estratégia de vendas ou de marketing, mas a um posicionamento e inserção mais amplos da empresa na sociedade, por isso não se observa uma subordinação direta das organizações financiadas aos negócios da empresa. O financiamento do terceiro setor por empresas privadas em si não é um mal. Seria, se não existissem recursos de outras fontes - governamentais, de indivíduos e internacionais - muito superiores em quantidade aos de origem empresarial. É um mito pensar no terceiro setor como um setor "independente": há relações de interdependência entre os setores, e estas devem ser estimuladas, desde que de forma saudável e não subalterna. As ongs têm que aprender a negociar e a trabalhar com empresas e fundações empresariais sem perder sua identidade e os seus valores. Recursos empresarias são bem-vindos, porém entendo como mais importante o desenvolvimento da capacidade de doação de organizações privadas, sem fins lucrativos brasileiras que atuem com maior autonomia, tanto do governo quanto do mercado.
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