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Agentes de Direito nas favelas do Rio

Autor original: Felipe Frisch

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Quinta-feira, dia 30 de setembro de 2001. Um dia antes da sexta-feira, como outra quinta qualquer, para muitos cidadãos brasileiros. Mas não para um grupo seleto de formandos que deram mais um passo em direção à cidadania das comunidades pobres que representam. Foram 35 alunos de todas as idades das favelas Santa Marta e da Formiga, das primeiras turmas do projeto Agentes de Direito, do Balcão de Direitos do Viva Rio. Durante sete meses, eles foram capacitados para defender seus direitos e disseminar a informação nos locais em que moram.


A iniciativa será um braço dos Balcões de Direito instalados nessas e em outras seis comunidades cariocas onde “as relações de poder ainda são desfavoráveis”, como destaca nesta entrevista Paulo Jorge Ribeiro, coordenador geral do Balcão, que defende a auto-estima como uma forte arma na luta pela cidadania. Para ele, ainda é difícil fugir da máxima óbvia de que “sem educação não há democracia, nem justiça”. Para este ano, está prevista ainda a formação de 60 agentes nas outras favelas em que o Balcão está instalado.


Rets - Que tipo de atuação eles estão preparados para ter?


Paulo Jorge Ribeiro - Os agentes foram formados, por um lado, para terem conhecimento dos direitos civis e sociais em suas comunidades, mas também de deveres. Por outro lado, foram preparados para identificar demandas, estabelecer redes de parcerias e localizar instituições onde seja possível cobrar esses direitos. Assim, eles estão preparados para proteger suas comunidades dos abusos e descumprimentos desses direitos. Obviamente, o apoio de projetos como o próprio Balcão a esses agentes é necessário porque as relações de poder ainda são bastante desfavoráveis em muitos momentos, como, por exemplo, nos casos de abuso da força policial.


Rets - Qual a importância de os agentes de direito serem formados a partir das próprias comunidades?


Paulo Jorge Ribeiro - A formação desses agentes em suas próprias localidades tem vários méritos. Posso apontar dois dos mais instigantes. Primeiro, sendo moradores das comunidades do Santa Marta e da Formiga, eles conhecem melhor tanto a população local quanto as demandas societárias presentes. Com isto, também, os próprios moradores terão maior liberdade para expor suas dúvidas. Em segundo, o Balcão forma agora não só Agentes de Direito, mas ajuda a criar novas lideranças e, mais importante, faz com que o conhecimento jurídico seja pró-ativo, ou seja, não somente repressivo naquelas comunidades: os agentes procuram conquistar seus direitos, e não somente se defender do Direito.


Rets - A tirar pela formatura, que aconteceu no último dia 30, é possível dizer que eles têm noção do papel que vão desempenhar a partir de agora em suas comunidades?


Paulo Jorge Ribeiro - O clima foi de total empolgação com as novas perspectivas abertas. Não é por menos que a emoção tenha tomado conta em determinados momentos, quando alguns chegaram às lágrimas. Por isso acredito que um dos pontos fundamentais da crise da sociabilidade carioca nestas comunidades tenha sido tocado, que é o resgate da auto-estima de vários daqueles moradores. Eles são capazes de "fazer acontecer", e agora, mais do que nunca, sabem disto. O jornalzinho que eles produziram durante o curso é a prova mais cabal disto. Sei que alunos de várias universidades não sabem alguns dos assuntos que foram tocados ali. É uma prova da maturidade deles e nos anima a abrir novas frentes para este projeto.


Rets - Muitos projetos encontram dificuldades para trabalhar com comunidades carentes de recursos. Uma facilidade para vocês é estarem ligados ao Balcão de Direitos, já presente nessas localidades. A receptividade dos moradores ao projeto, inicialmente, foi boa?


Paulo Jorge Ribeiro - Foi a melhor possível. Foi através deles que este projeto conseguiu surgir e gerar estes frutos, pois foi de incessantes conversas com os moradores e agentes comunitários que percebemos que existia a demanda por uma formação em Direito para os próprios moradores.

Rets - Qual vai ser o papel agora dos agentes em relação aos outros projetos do Viva Rio, como o Balcão de Direitos?


Paulo Jorge Ribeiro - Os agentes são o elo entre o Balcão e as comunidades. Sem eles não há como o Balcão entender as lógicas que comandam cada comunidade. Eles nos ensinaram que não existe "a" favela. Existem favelas, e mesmo no interior destas não há homogeneidade. Os agentes, então, são nossos olhos, para que possamos atuar de forma localizada, a partir das demandas das próprias comunidades, tratando estas com a maior sensibilidade ao específico de cada comunidade.


Rets - Que noções de direito eles receberam?


Paulo Jorge Ribeiro - Podemos dizer que o curso está fundado em os alunos conhecerem tanto alguns tópicos referentes aos direitos sociais quanto aos de direitos civis. Sem a complementação destes, não há possibilidade da construção de uma verdadeira cidadania.


Rets - Como a disseminação da informação jurídica pode favorecer o aumento da qualidade de vida dos moradores dessas regiões?


Paulo Jorge Ribeiro - Acreditamos que a luta pelos direitos por parte desses agentes nessas comunidades faz com que não somente eles saibam agora onde procurar seus direitos, mas fundamentalmente que cumpram três prerrogativas: saber ver onde estão seus direitos, saber falar sobre esses direitos aos outros membros da comunidade e criar assim o princípio da multiplicação de conhecimentos. Cumpridas estas funções, esperamos que estes agentes contribuam para que os problemas destas comunidades não sejam mais inviabilizados pelas instituições representantes tanto da esfera pública quanto da própria sociedade civil. Dar uma voz credenciada a eles pode fazer com que seus respectivos discursos públicos tornem-se mais autorizados.


Rets - Na visão de vocês, o ensino de elementos do Direito poderia vir a fazer parte do currículo convencional do ensino médio e fundamental?


Paulo Jorge Ribeiro - Este é o nosso objetivo. Sem o ensino dos direitos e deveres básicos no ensino médio e fundamental não há possibilidade de que as flagrantes desigualdades sociais presentes no Brasil sejam demolidas. O problema é que sempre temos de proclamar o óbvio: sem educação não há democracia nem justiça, e o ensino dos direitos básicos é fundamental para este desafio.


Rets - Esse tipo de iniciativa só encontra espaço, pela nossa trajetória histórica, quando comandado pela sociedade civil organizada. O poder público poderia ajudar de alguma forma a disseminar esses conceitos?


Paulo Jorge Ribeiro - O poder público apóia, mesmo que muitas vezes timidamente, um projeto como o Balcão de Direitos (que recebe financiamento do Ministério da Justiça, além do da Fundação Ford). Esperamos que este mesmo poder público possa, no futuro, balizar iniciativas como estas em forma de programas governamentais instituídos. Isto geraria um plano de atuação melhor dimensionado, pois teremos então como abarcar um maior número de alunos e comunidades envolvidas. Vejo que o apoio da embaixada britânica ao projeto Agentes de Direito vai ao encontro desta aposta e cria novas formas de aquisição de capital cultural, ligado ao campo dos direitos, pelas comunidades carentes do Rio de Janeiro.

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