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A nova ideologia de segurança nacional

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original:

*Sergio Abranches


O ataque terrorista aos Estados Unidos, provavelmente legitimou uma ruptura no paradigma de política externa e segurança nacional que vinha sendo adotado pelo presidente Bush. Em seu lugar, entrará uma ideologia contemporânea da nova economia e da globalização, que defende uma atitude “agressivamente preventiva” contra o terrorismo. Essa nova ideologia de segurança nacional define o terrorismo internacional como o inimigo principal. O presidente Bush, emocionado, fez duas declarações que parecem indicar o abandono de suas idéias, ainda da guerra-fria, por essa nova conceituação. Disse que os EUA estão enfrentando, com apoio de seus aliados, “a primeira guerra do Século XXI, um novo tipo de guerra”. A segunda afirmação é que a guerra contra o terrorismo será o foco de sua administração e que os Estados Unidos liderarão o mundo até a vitória.


Essas declarações repetem conceitos de especialistas linha-dura em relações internacionais, que defendem uma nova política de segurança para o país, baseada em uma visão estratégica ajustada à globalização e às novas formas de conflito internacional. Muitos desses especialistas eram críticos das propostas de Bush para a área internacional, segundo eles ineficazes e ultrapassadas, por darem importância demasiada ao programa antimíssil, quando deveria dar prioridade à preparação para enfrentar outras ameaças mais presentes e mais reais. Entre essas ameaças, todos são unânimes em indicar o terrorismo de larga escala, também denominado catastrófico, como o principal.


Nada dá mais força a uma ideologia nascente que a sua capacidade de prever acontecimentos traumáticos de grande envergadura. A capacidade de prever eventos que julga ser capaz de enfrentar melhor que o modelo vigente pode ter o efeito de “fazer a cabeça” dos governantes. É o que podemos estar testemunhando em tempo real: o surgimento de uma nova ideologia de segurança nacional, como o novo quadro de referências conceituais e estratégias para a política externa americana.


Desde o colapso das torres do World Trade Center, o presidente Bush passou a usar termos e conceitos muito distintos de seu velho linguajar de guerra fria. A referência a “um novo tipo de guerra”, a própria caracterização do ataque como um ato de guerra e não ato criminoso, já sinalizam uma mudança de postura, que leva a uma reação mais abrangente e mais enérgica contra o terrorismo.


Uma surpresa anunciada


No início do ano de 2000, um relatório da Comissão Nacional sobre Terrorismo intitulado “Enfrentando a ameaça dinâmica do terrorismo internacional”, alertava para o fato de que o primeiro atentado contra o World Trade Center tinha a intenção de causar perdas patrimoniais e em vidas humanas em escala massiva. “Um ataque terrorista aos Estados Unidos, usando armas biológicas ou químicas, uma série de ataques mais convencionais ou uma única bomba bem colocada, poderia afetar profundamente toda a Nação, causando milhares de mortes”. Por isso, é “essencial que a América esteja totalmente preparada para prevenir e responder a essa forma de terrorismo catastrófico”, aconselha.


A Comissão foi criada pelo Congresso americano, formada por dez especialistas indicados pelas lideranças dos dois partidos e pelos presidentes das duas Casas do Congresso. Seu presidente foi o embaixador Paul Bremer III, diretor executivo da empresa de consultoria de Henry Kissinger – Kissinger Associates – e conhecido especialista em contra-terrorismo. O vice-presidente da Comissão era Maurice Sonnenberg, um influente expert em relações internacionais e segurança nacional, consultor sênior da Bear, Stearns e membro do Conselho Consultor para Inteligência Internacional, de Bill Clinton. Os outros membros tinham estirpe do mesmo quilate, militares, cientistas políticos e advogados conhecidos e reconhecidos pela “comunidade de segurança” americana.


Um dia antes da tragédia deste setembro, o senador Joseph Biden, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, foi quase profético, ao pedir que Bush abandonasse a adesão quase religiosa ao sistema nacional de defesa contra mísseis, que se destina a enfrentar uma ameaça cada vez menos séria. Segundo ele, as “ameaças reais entram nesse país no porão de um navio ou no ventre de um avião ou são contrabandeados para dentro de uma de nossas cidades no meio da noite, em uma pipeta ou uma mochila”, o sistema antimísseis nada pode contra elas.


O diretor do programa sobre terrorismo da Carnegie Foundation, Joseph Cirincione, comentando o ataque de 11 de setembro, dizia que embora ninguém tivesse previsto ou antecipado ataques na escala e com o grau de coordenação das explosões de Nova Iorque e Washington, vários especialistas vinham alertando sobre a possibilidade de eventos similares há anos. Principalmente depois que o primeiro ataque ao World Trade Center quase levou ao colapso das duas torres usando caminhões-bomba convencionais. A maioria desses alertas não havia pensado em aviões de carreira sendo usados como armas de destruição em massa. Imaginavam que os terroristas usariam armas químicas ou biológicas ou explosivos convencionais associados a materiais radiativos.


De qualquer forma, a previsão em si infelizmente se cumpriu, diz ele, porque os atentados de agora cruzaram definitivamente a fronteira entre o terrorismo convencional e o terrorismo com armas de destruição de massa. Enquanto a Nação pranteia em luto, esse deveria ser o momento, conclui, para que especialistas e líderes políticos desenham em comum uma resposta unificada àqueles que ousaram atacar os EUA.


Em artigo publicado na revista Foreign Affairs, no final de 98, intitulado “Terrorismo Catastrófico” três acadêmicos - Ashton Carter, da Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, John Deutch do MIT e ex-diretor de inteligência e sub-secretário do Departamento de Defesa , Philip Zelikow, da Universidade de Virgínia - viam com impressionante antecipação algo dessa magnitude como uma possibilidade real e concreta. Afirmavam que os Estados Unidos não estavam preparados para enfrentar a nova ameaça do terrorismo catastrófico. “Se a bomba que explodiu em 1993 sob o World Trade Center fosse nuclear, ou tivesse efetivamente espalhado um patogênico fatal, o horror e o caos resultantes excederiam nossa capacidade para descrevê-los. Um ato de terrorismo catastrófico dessa natureza seria um divisor de águas na história americana. Poderia envolver perdas de vidas e propriedade sem precedentes em períodos de paz e minar o sentimento fundamental de segurança da América”.


Se essas pessoas foram capazes de prever, com suficiente precisão, a natureza das novas ameaças à segurança nacional dos Estados Unidos, é natural que os governantes prestem mais atenção a suas recomendações de políticas públicas. Por outro lado, os que defendem essa nova visão de política internacional são ideologicamente próximos ao presidente Bush, não provocando qualquer desconfiança de que sejam light demais. É bem possível que ele de fato venha a adotar boa parte dessas recomendações e elas indicam uma linha muito mais dura de ação internacional, da que vinha sendo adotada desde a queda do Muro de Berlim.


Mudar e recrudescer


A receita básica desses especialistas na “nova guerra” é fazer do contra-terrorismo a mais alta prioridade da política externa americana. Uma das medidas principais seria punir, por todos os meios necessários, econômicos, políticos e militares, os estados que patrocinam o terrorismo, como Cuba, Líbia, Coréia do Norte, Síria, Sudão, Irã, Afeganistão e Paquistão. Defendem ainda a reforma da legislação sobre migração, para reforçar a segurança interna, mais segurança nas fronteiras e nos pontos de entrada do país, preparação mais efetiva para o resgate de vítimas de eventuais ataques catastróficos, a adoção de medidas ativas de segurança da “infraestrutura crítica” do país, incluída a de informação, vulnerável ao ciberterrorismo.


O pivô da nova política, entretanto, seria uma rede extensa e agressiva de inteligência e vigilância. A Comissão sobre Terrorismo defende em seu relatório que: “a prioridade número um é evitar ataques terroristas. As comunidades americanas de inteligência e policiais devem usar o máximo escopo de sua autoridade para coletar informação sobre os planos e métodos dos terroristas. Para tanto, o governo deve tomar imediatamente as medidas necessárias para revigorar o sistema de inteligência americana e usar todas as possibilidades legais para desarticular e processar terroristas e suas fontes privadas de apoio, convencer outras nações a não mais abrigar ou apoiar terroristas e assegurar-se de que as autoridades federais, estaduais e municipais estejam preparadas para ataques com destruição em massa”.


O vice-presidente da Rand Corporation para relações internacionais, Bruce Hoffman, um dos mais ativos patrocinadores da nova concepção de segurança nacional, imagina que uma nova política de segurança teria que ser muito mais abrangente e integrada que as políticas do passado, porque o terrorismo é um fenômeno muito dinâmico, com uma multiplicidade de agressores. Ela requer novo foco, melhor compreensão do problema e uma avaliação mais completa dessa nova ameaça. Não há mais fronteira entre o terrorismo doméstico e o internacional, nem é mais possível se falar em terrorismo convencional, diz ele.


Atos de guerra e não atos criminosos


As recomendações também atingem a divisão do trabalho entre policiamento e segurança nacional, que hoje separa, por exemplo, as funções da CIA e do FBI. O paradigma de segurança nacional propõe a busca agressiva e ativa de informação estratégica, ele é preventivo. O modelo policial é muito reativo, se baseia na identificação, prisão e punição dos responsáveis por atos de terror. Ambos precisam se tornar proativos. E, para tanto, é preciso eliminar todas as barreiras à busca agressiva de inteligência e utilizar novas tecnologias para identificar esconderijos, pontos de desenvolvimento secreto de armas não-convencionais e acampamentos clandestinos.


Embora esse novo paradigma, centrado no software, esteja mais de acordo com a nova economia e a globalização - o da guerra-fria enfatiza o hardware - sua implementação pode ter conseqüências similares: o aumento do autoritarismo, fronteiras menos permeáveis, vigilância cada vez mais intrusiva, ameaçando a privacidade. A substituição do anticomunismo, pelo contra-terrorismo, leva a uma estratégia mais ampla, na qual o intervencionismo, embora mais sutil, é mais profundo.


Apesar de todos alertarem para o fato de que é preciso encontrar o equilíbrio entre as necessidades da segurança nacional e os direitos democráticos e a privacidade, no fundo a segurança supera a democracia. Como diz o relatório da Comissão sobre Terrorismo, “determinar se uma medida em particular é razoável, requer que se confronte o direito à privacidade e outros direitos e o interesse público em enfrentar uma ameaça terrorista que pode ter conseqüências mortais em uma escala massiva. A Constituição permite medidas extraordinárias, em face de ameaças extraordinárias”.


É exatamente para caracterizar a dimensão extraordinária do terrorismo catastrófico e legitimar o uso de medidas extremas, em larga escala, contra indivíduos, grupos e países, que o novo paradigma defende a conceituação desses ataques como atos de guerra e não como atos criminosos. Neste último caso, caberia apenas localizar, deter e punir os indivíduos direta e indiretamente envolvidos nos ataques, de acordo com a legislação doméstica e internacional. Mas, como atos de guerra, eles justificam que a resposta envolva ação militar contra os países que abrigam e apóiam os terroristas. Exatamente como tem dito o presidente Bush, não se faz mais diferença entre os terroristas e os estados que os abrigam e protegem.


A resolução da OTAN considerando os ataques como atos de guerra contra todos os países membros mostra como o novo paradigma está se estabelecendo rapidamente. Os governos da Inglaterra, da França e da Alemanha, se consideraram diretamente atingidos por esses atos de guerra, porque vitimaram cidadãos seus no ataque ao World Trade Center.


Se os países que hospedam os responsáveis pelos ataques não abrirem suas fronteiras para que uma força militar, talvez multinacional, desaloje de seu território as organizações terroristas, o resultado será uma declaração formal de guerra contra eles. A ação militar será violenta e contará com o apoio da maioria da opinião pública mundial. Em política é assim, o extremismo de um lado, alimenta e legitima o extremismo do outro lado.


*Sérgio Abranches é cientista político.


Este artigo foi publicado originalmente no NO.







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