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Depois de Durban

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

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Recém-chegada de Durban, na África do Sul, onde participou como relatora geral da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, Edna Roland*, presidente da organização Fala Preta!, conversou conosco sobre o que foi discutido – e conquistado – durante o evento.


O encontro teve o mérito de estimular o debate sobre as diferentes formas de discriminação. O boicote de norte-americanos e israelenses, no entanto, ajudou a esvaziar a Conferência, que acabou ficando aquém das expectativas. "Faltou compreensão de que o destino de toda a humanidade depende de uma ordem internacional mais justa", afirmou.


Rets - A III Conferência Mundial contra o Racismo foi marcada pela falta de tolerância entre os países participantes. A saída dos Estados Unidos e de Israel e a oposição dos países europeus às compensações aos povos que sofreram com a escravidão foram alguns dos conflitos ocorridos durante o evento que centralizaram a atenção da mídia. Para você, que foi relatora na Conferência, como foi o clima dessas discussões?


Edna Roland - A questão do  Oriente Médio e a questão da escravidão, do tráfico de escravos e do colonialismo foram das mais difíceis enfrentadas pela Conferência. A questão do escravidão, do tráfico de escravos e do colonialismo foi tratada num grupo de trabalho coordenado pelo Embaixador Sabóia, do Brasil.  Após intensas e duras negociações, chegou-se a um consenso em que se declara que a escravidão e o tráfico de escravos foram terríveis tragédias na história da humanidade, são um crime contra a humanidade e “deveriam sempre ter sido”. O Oriente Médio requereu um grupo de trabalho especial coordenado pela própria presidente da Conferência, Madame Zuma, do qual resultou um conjunto de parágrafos nos quais se afirma a necessidade de combater tanto o anti-semitismo quanto o anti-arabismo e a islamofobia.  Apela-se para o fim da violência e a necessidade de concluir as negociações que permitam um processo de paz entre Israel e os palestinos.  Os acontecimentos de 11 de setembro demonstram que, mais do que nunca, é preciso que a paz se constitua no objetivo da comunidade internacional.


Rets - Para o público que assistia de fora, a impressão foi a de que houve uma dificuldade de comunicação entre os diversos delegados presentes – que resultou em muitas discussões sem conclusões práticas e, mesmo, em gestos de intolerância. Você concorda com esta visão?


Edna Roland - Esta Conferência histórica colocou na mesa, pela primeira vez, frente a frente, os descendentes daqueles que foram proprietários e os descendentes dos que foram reduzidos à condição de propriedade;  os que tiveram as suas terras invadidas e ocupadas e os que se beneficiaram da conquista e da ocupação;  os que se autodefiniram como superiores e os que foram definidos como inferiores. Era, portanto, de se esperar muitas dificuldades.


Rets - Como você avalia a participação de outros grupos que sofrem discriminação, como os índios e os homossexuais? Houve avanços para estes segmentos?


Edna Roland - Os povos indígenas foram reconhecidos como “povos”.  Ainda que se tenha ressalvado que tal reconhecimento não questiona os princípios da soberania e integridade territorial dos Estados, oferece uma base conceitual para a adoção de medidas legais e administrativas em benefício destes povos.  No Brasil, por exemplo, deve-se avançar na reformulação do Estatuto do Índio.  Quanto aos homossexuais, apesar da defesa intransigente do Brasil, com o apoio de outros aliados, não foi possível o reconhecimento da orientação sexual como um dos fatores de discriminação agravada.


Rets - De acordo com o documento final produzido, a conferência “reconhece e lamenta profundamente o sofrimento de milhões causado pela escravidão”. Lamentar e demonstrar remorso é o suficiente para curar a ferida deixada no povo negro? Em caso negativo, o que deveria ser feito?


Edna Roland - O documento aprovado representa o consenso que foi possível ser atingido. É evidente que aos povos africanos e afrodescendentes caberá continuar trabalhando para que todos os estados e povos que se beneficiaram da escravidão e do tráfico de escravos venham no futuro a apresentar um pedido de desculpas pelos males causados e contribuam para a restauração da dignidade das vítimas.


Rets - O alívio da dívida externa e a assistência econômica para os países africanos seria uma forma válida de ressarcimento? Você acha pertinente esse tema ser abraçado pela discussão anti-racismo?


Edna Roland - A discussão das reparações é extremamente complexa, um dos seus aspectos é que deve ser reparado: os estados ou os descendentes. Acho pertinente que a conferência tenha incluído este tema, mas, da forma como foram elaborados os parágrafos iniciais, a partir da Conferência Regional de Dakar, referiam-se praticamente apenas à África.


Rets - Em que o reconhecimento da escravidão e do tráfico de escravos como crimes contra a humanidade mudará, na prática, o racismo enfrentado pelos negros?


Edna Roland - Este reconhecimento abre o caminho para uma série de medidas:  por exemplo, poderão ser criados um Memorial às Vítimas da Escravidão e do Tráfico de Escravos, monumentos e museus deverão buscar recuperar a memória e a dignidade das vítimas e dos seus descendentes, que são também vítimas das conseqüências da escravidão corporificadas no racismo e na discriminação. É preciso provocar mudanças conceituais e emocionais através de diversas iniciativas.  Da mesma forma, coloca-se a necessidade de políticas específicas destinadas a reparar as desigualdades causadas: ações afirmativas na educação, no trabalho, na saúde e na habitação para remover os obstáculos existentes.


Rets - Estima-se que aproximadamente mil brasileiros e cerca de cem ONGs estiveram presentes na Conferência. Como você resume a participação do Brasil? O que esses números revelam em relação ao interesse do Brasil em combater o racismo e à articulação do movimento negro no país?


Edna Roland - Não se sabe o número exato de brasileiros presentes, mas fomos a maior delegação estrangeira.  O grande interesse demonstrado revela a urgência das ações que deverão ser tomadas pelos governos brasileiros – tanto  federal, quanto estaduais e municipais.


Rets - O clima no Fórum de ONGs foi diferente do clima na Conferência oficial? Você diria que o encontro das ONGs foi mais frutífero?


Edna Roland - Houve dificuldades tanto no Fórum das ONGs quanto na Conferência Oficial, principalmente em torno da questão palestina. É verdade, todavia, que questões  tais como o problema dos Dalits, a casta dos chamados intocáveis,  foram amplamente debatidas e reconhecidas no Fórum das ONGs, não tendo sido incluídas no documento final oficial.


Rets - Agora, passado o evento de Durban, o que o Brasil deve fazer? Cumprir a agenda brasileira seria o bastante?


Edna Roland - Cabe agora revermos os documentos aprovados no Brasil à luz dos compromissos de Durban e de Santiago. Nas questões em que já tenhamos um consenso brasileiro mais avançado, como é o caso da orientação sexual, não há por que recuar. Quanto à questão da escravidão, em Durban se chegou a uma formulação mais avançada.


Rets - De uma forma geral, pode-se dizer que a III Conferência Mundial foi um sucesso ou um fracasso? Por quê?


Edna Roland - A III Conferência Mundial foi um marco histórico: colocou o racismo no centro do debate.  A mídia tem focalizado mais o que não se conseguiu, omitindo os avanços alcançados. Durban deverá ser lembrada pelas políticas específicas que possibilitará no contexto nacional e internacional. Pela primeira vez, as Nações Unidas vão criar um espaço específico para tratar o problema dos afrodescendentes. A militância negra se prepara para cobrar o cumprimento dos acordos assinados.


Rets - O que faltou para a Conferência obter resultados mais positivos?


Edna Roland - Faltou vontade política dos países desenvolvidos, faltou compreensão de que o destino de toda a humanidade depende de uma ordem internacional mais justa e eqüânime.


*Edna Roland é psicóloga social, presidente da "Fala Preta! Organização de Mulheres Negras" e foi relatora geral da Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas.

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