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A ‘America’s new war’ e o recrudescimento do velho estatismo

Autor original: Graciela Baroni Selaimen

Seção original: Artigos de opinião

*Augusto de Franco


Se a ‘America’s new war’ se generalizar, haverá, certamente, um retrocesso no fortalecimento da Sociedade Civil e no processo de sua mundialização, bem como uma contração da esfera pública, sobretudo da emergente esfera pública não-estatal – a novidade mais importante desta passagem, que estamos vivendo, para o novo milênio, na transição da sociedade hierárquica para uma sociedade em rede.


O mundo assistiu, atônito, à barbárie dos atentados terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono.


Depois de tais episódios tenebrosos e da reação americana que ora se esboça, aumentam em muito as chances de um retrocesso civilizatório de grandes proporções.


Não me refiro, apenas, a uma generalização dos conflitos, com a eclosão de novos atentados terroristas e sim à falência da política. Aumenta a desesperança de realização de sonhos de futuros alternativos a partir das institucionalidades existentes e dos processos democráticos.


Os terroristas que atacaram os Estados Unidos – muito provavelmente sem terem a exata consciência do que faziam – abriram uma espécie de Caixa de Pandora. Acionando mecanismos macabros que estavam escondidos nos porões do inconsciente coletivo da sociedade de dominação, deixaram que o verdadeiro mal viesse à tona. Sim, porque o verdadeiro mal existe.


O recurso da guerra é, em si, o mal


Mas o verdadeiro mal não são as pouco mais de uma dezena de organizações terroristas sediadas no mundo árabe e adjacências, os muçulmanos xiitas e o regime dos aiatolás, o governo de Saddam ou de Kadafi, os republicanos irlandeses do IRA, os bascos do ETA ou os sérvios de Milosevic. O verdadeiro mal não é o “grande satã” americano do norte, nem Israel.


O verdadeiro mal é o uso sistemático da violência – na guerra terrorista e em qualquer outra forma de guerra – como modo de resolver conflitos. O verdadeiro mal é a instalação da guerra como estado normal do mundo. O verdadeiro mal é a banalização do mal de que falava Hannah Arendt.


Os democratas radicais, o somos enquanto não acreditamos que existam os bons, de um lado, e os maus, de outro. O mal não está deste ou daquele lado, o mal não está no lado, não é uma ‘questão de lado’; o mal está no modo, é uma ‘questão (essencialmente política) de modo’ de resolver o conflito. O mal não se identifica com este ou aquele inimigo. “O recurso da guerra – este sim, como diz Andrew Schmookler – é, em si, o mal” (1).


Os Estados Unidos se declararam em guerra, uma declaração curiosa porquanto a guerra, por sua própria natureza, se declara sempre contra alguém, contra um sujeito determinado. Como, neste caso, o inimigo é difuso, declararam-se os Estados Unidos em “estado de guerra” contra o terrorismo e agora ameaçam abertamente, com promessas de retaliações, as outras nações do mundo que a eles não se aliarem nessa espécie de jihad antiterrorista.


Ora, qualquer jihad já é, em si, um terror.


Blair, na primeira hora mais civilizado, conclamou as nações democráticas a se unirem contra o terrorismo. Tudo bem: os democratas estamos de acordo. Mas então vem um Bush e declara guerra. Não satisfeito, conclama o mundo todo ou quase todo à guerra. Para Bush e sua equipe conservadora, talvez não interesse tanto contra quem, exatamente, deverá ser feita essa guerra. Ouvindo as declarações das autoridades americanas, a impressão que se tem é que o importante é a guerra, é estar em guerra, é o ‘estado de guerra’ e – o que elas não dizem e pouquíssima gente está percebendo – as novas relações do Estado em estado de guerra com o Mercado e a Sociedade Civil.


Com efeito, George W. Bush declarou em alto e bom som: “Peço paciência, porque o conflito não será curto. Peço ânimo, porque o conflito não será fácil. Peço força, porque o caminho da vitória pode ser longo”. Disse, claramente, que tipo de conflito será esse: uma guerra, um novo tipo de guerra, a ‘America’s new war’. Mas não disse, pelo menos até agora, não apenas contra quem, mas entre quem se exercerá a “nova guerra”.


A construção do inimigo


Fica difícil imaginar uma resposta guerreira particular contra o pobre e já destruído Afeganistão. Além de não fazer quase nenhuma diferença em termos reais – o Afeganistão não mudará muito sua topografia, mesmo sob um ataque nuclear focalizado em possíveis bases terroristas –, o mais provável, dada a histórica ineficiência estratégico-militar americana, é que não se consiga capturar vivo nem Osama Bin Laden. Ademais, em termos de espetáculo, tal resposta seria tão pobre quanto seu alvo.


Fica difícil imaginar também uma guerra de destruição generalizada contra o conjunto dos sete países considerados, por alguns ou todos os membros da equipe Bush, como inimigos dos Estados Unidos: Cuba, Irã, Iraque, Líbia, Coréia do Norte, Sudão e Síria. O mundo reprovaria qualquer massacre indiscriminado das populações civis desses países.


Situação realmente difícil esta de ter que fabricar um estado de guerra, mas não poder realizar qualquer tipo conhecido de guerra contra inimigos alvejáveis. Tais inimigos vêm sendo ansiosa e incessantemente reconstruídos desde o final da guerra fria. Porque, para fabricar o estado de guerra, o inimigo é necessário. O fim da União Soviética não foi propriamente comemorado no Pentágono, nem entre aqueles que, a partir do governo Reagan, articulam o megalômano projeto “Guerra nas Estrelas”, hoje retomado, não por acaso, por Bush, na forma de um ineficaz “Escudo Antimísseis”.


Já se tentou de tudo para cumprir esse desiderato da construção do inimigo: desde demonizar a sociedade civil mundial e suas ONGs ambientalistas e pacifistas (o que não “colou” muito), passando pelo narcotráfico, pelos indígenas de Chiapas e pelos raros grupos remanescentes da velha esquerda armada, até chegar ao terrorismo islâmico.


Agora, entretanto, achou-se um “bom inimigo”, quer dizer, aquele sobre o qual pode-se jogar a culpa por todos os males que nos afligem, a nós, os “do bem”; ou seja, encontrou-se, finalmente, aquele tipo de inimigo que pode ser identificado com o mal.


A guerra não pode vencer o terrorismo


Por certo, o terrorismo como método de ação de grupos políticos ou político-religiosos deve mesmo ser abolido do mundo. Mas isso só será possível se abolirmos também o terrorismo de Estado que se exerça por meio da realização de campanhas bélicas de punição e extermínio.


Pode-se vencer um grupo terrorista, aniquilá-lo. Mas não se pode vencer o terrorismo como quem vence uma disputa contra um grupo determinado se não se superarem as razões da utilização de métodos terroristas. Na permanência dessas razões, outros grupos terroristas se formarão. E aí não adianta querer combater o terrorismo de grupos marginais com campanhas militares de punição e extermínio. Punições reproduzem mais comportamentos desviantes. Martírios reproduzem mais mártires. Vendettas alimentam a espiral da violência.


Quase todo o mundo civilizado sabe disso. Mas agora muitas pessoas parecem ter se esquecido de que sabem disso – ou por medo de uma retaliação americana ou, então, não querem se lembrar porque parecem se sentir culpadas se fizerem qualquer coisa além de demonstrar profunda revolta com os recentes atentados terroristas. Mas a justa manifestação de revolta e a enérgica condenação aos atentados nada têm a ver com a concessão de qualquer tipo de aval, ou mesmo complacência antecipada, para o exercício da vingança americana. Nosso sentimento de culpa por tudo de ruim que acontece no mundo (porque esse é o nosso mundo e de alguma forma muitos de nós nos sentimos responsáveis pelo que nele ocorre) não pode ser pretexto para a oferta antecipada de desculpa para algum ato bárbaro, violento, que mutile ou elimine vidas humanas, que venha a ser cometido por quem quer que seja a título de revanche.


Mas não é a guerra, nem a inteligência militar, tão exalçada agora – curiosamente, pois que foi o exemplo maior de incompetência nos eventos do WTC e do Pentágono – que poderão vencer o terrorismo: é a política e somente a política democrática.


Como percebeu William Pfaff, por mais que se invista em novos e sofisticados armamentos, em tecnologias avançadíssimas de defesa, em espionagem e em inteligência, nada disso adiantará grande coisa contra o terrorismo contemporâneo, pois “não existe uma defesa efetiva contra ataque anônimo que faz uso do funcionamento normal de uma sociedade civil” (2). Pfaff está nos dizendo o que os especialistas em segurança deveriam estar fartos de saber: que não há nenhuma defesa completa e convincente contra ataques dessa natureza, que partem das funções regulares de uma sociedade.


A questão da manutenção das funções regulares de uma sociedade é muito mais séria do que geralmente se pensa em termos de segurança. Não é necessário guerra, nem mesmo um conjunto de ataques terroristas sincronizados para levar qualquer cidade ao colapso em poucas horas. Basta que as pessoas não façam hoje a mesma coisa que fizeram ontem. Basta que uma porção de pessoas relativamente pequena, ligada a determinados serviços essenciais, cruze os braços. Ou basta que uma pessoa em cada prédio comece a aplicar pequenas ações de entupir ralos e provocar curtos-circuitos e outras “maldades” (pequenos terrorismos, digamos assim) que há algum tempo os serviços americanos de inteligência compilaram e divulgaram na forma de cartilhas, para sabotar regimes que consideravam hostis aos Estados Unidos.


O recrudescimento do Estatismo


Pois bem. Em nome do combate ao terror, a conjuntura política mundial está sendo alterada de maneira drástica. Está aberta agora a possibilidade de reflorescimento de uma velha ideologia estatista conservadora, que apenas se prefigurava com a controvertida vitória eleitoral de Bush, mas que, depois dos atentados terroristas aos Estados Unidos, reacenderam, no mundo inteiro, a perigosa chama da guerra, reintroduzindo a ideologia autocrática da ordem como fim da política, do poder vertical e do modo violento de solução de conflitos. Em outras palavras, a ascensão do estatismo de direita, da velha direita – que se imaginava declinante – aponta para uma derrota da política democrática ora em expansão e constitui uma ameaça para os que tomam a liberdade como fim da política.


Os eventos de Nova York e Washington aprofundaram a crise política mundial de tal modo que estamos em vias de assistir, em toda parte, a um recrudescimento do estatismo, com o surgimento de mais movimentos disruptivos que gerarão, cada vez mais, reações contra-liberais.


Mas o que é o estatismo? O estatismo não é o reconhecimento da necessidade do Estado e sim a afirmação da sua suficiência.


O estatismo é um estadocentrismo. É uma ideologia que confere ao Estado – e não à política exercitada pelos cidadãos – um papel de centralidade social determinante na condução das sociedades, confundindo estatal com público e, destarte, monopolizando e autocratizando a esfera pública, conferindo ao Estado a função de supremo regulador (supostamente imparcial) dos dilemas da ação coletiva – e, portanto, dos conflitos sociais – e, por último, atribuindo ao Estado a capacidade de ser o único e exclusivo protagonista das mudanças sociais – inclusive a capacidade de promover o desenvolvimento. Não é outro o motivo do leit motiv de todos os estatistas ser o controle. É preciso controlar, ordenar (quer dizer, impor uma ordem, a sua ordem), evitar o caos que pode surgir quando a situação escapa do controle.


Ora, a política democrática, pela sua própria natureza, escapa do controle. Não se pode saber, com segurança e de antemão, qual será o desfecho de um processo democrático. Por exemplo, não se pode saber qual proposta em discussão será aprovada quando são muitas as propostas em confronto e quando tais propostas podem se combinar e se recombinar através de múltiplas alianças entre forças políticas que compõem um sistema complexo. O desespero dos estatistas é essa insegurança, essa incapacidade de prever o desfecho, essa possibilidade de um futuro aberto, que crie novas realidades e não apenas repita passado.


Por causa disso, crêem os estatistas, torna-se imperativo exercer o máximo controle possível para alcançar o máximo de previsibilidade possível.


Para o estatismo a Sociedade Civil ou não existe ou é um epifenômeno, uma esfera sem autonomia, um lugar para o Estado exercer o seu domínio, para elites sacerdotais, burocráticas ou tecnocráticas, que estão no seu comando, poderem experimentar processos de condução dos destinos das coletividades humanas a partir de seus saberes e, não raro, de seus preconceitos.


Ao invés de proporem o controle social do Estado, os estatistas estão preocupados realmente em como controlar a sociedade, sobretudo a política democrática praticada pelos atores sociais que emergem na cena política por fora das velhas instituições, constituindo-se como novos atores políticos. Esta é a razão de os estatistas não se darem muito bem com os novos movimentos sociais os quais não controlam, como os movimentos feministas, ambientalistas e comunitários ou de desenvolvimento local e as organizações não-governamentais e redes que os articulam.


Nas suas versões extremadas, a ideologia estatista, sobretudo de direita, da velha direita, reduz os problemas de governabilidade a problemas de capacidade de exercer, de fato e não apenas de direito, a partir de estruturas centralizadas e hierárquico-verticais, o monopólio da violência. Parte da equipe de George Bush é um exemplo vivo disso, se bem que ali também possa haver uma aliança estratégica com atores privados, empresariais, para tentar reerguer o velho complexo industrial-militar e dinamizar economicamente a indústria da guerra, que vive sob o temor da bancarrota desde o final da guerra fria.


Os democratas devem se preocupar realmente com esse estatismo de direita, que agora recrudesce, como reação ao terrorismo. A esquerda também deve, com mais razão ainda, ficar muito preocupada. Ao eleger o neoliberalismo da nova direita como inimigo principal, a esquerda, mais uma vez, parece ter se enganado, repetindo, mutatis mutandis, o sério erro de avaliação que cometeu no passado, quando imaginou que a social-democracia, e não o fascismo (uma clássica forma de estatismo de direita recrudescido), era o inimigo principal. Mas a fluida ideologia neoliberal não poderá fazer tanto mal para a humanidade quanto uma velha direita que – sob o pretexto de estar combatendo grupos terroristas – controle aparatos estatais de grandes impérios, policiando o mundo ou transformando-o em um mega-Estado-policial, quer dizer, num mega-Estado de terror.


O clima de terror


Porque o terror é isso. O terror é o pavor de ser invadido, o viver sob a apreensão de que um ataque que atente contra a nossa integridade física ou psicológica viole nossa intimidade ou altere nosso modo de vida possa vir de qualquer lugar, de que o inimigo pode estar no assento ao lado da aeronave ou do ônibus ou do teatro. O terror é o medo do outro.


O terror é um clima, não é um evento. Os atentados terroristas são eventos que visam criar e difundir, pela publicidade, esse clima de terror.


Mas esse clima de terror não é gerado apenas por atentados cometidos por grupos marginais. As reiteradas promessas de vingança de Bush estão espalhando o terror sobre as cabeças de bilhões de habitantes do planeta, em todos os continentes. Estão irradiando medo, difundindo o medo do outro, do desigual, do diferente.


A guerra é, per se, um terror. Mas a ameaça da guerra, feita pelo maior aparato estatal-militar do mundo, também cria um clima de terror.


A ‘America’s new war’, se bem sucedida – ou seja, se conseguir instaurar qualquer coisa como um “State of World’s new war” –, será a maior operação de retomada do estadocentrismo jamais tentada na história recente, depois do stalinismo e do nazismo.


É preciso, portanto, analisar agora como um Estado de guerra generalizado afeta o padrão de relação Estado-sociedade, que vinha se modificando velozmente – e, ao meu ver, positivamente – a partir dos anos noventa do século XX.


As mudanças introduzidas pela guerra no padrão de relação Estado-Sociedade


Tudo começa com a questão da estabilidade desse sistema complexo que chamamos de sociedade. As funções regulares de uma sociedade não são mantidas por nenhum aparato de vigilância privada ou pela polícia e pelos órgãos de segurança pública. Elas são mantidas pela tendência à conservação que é característica dos sistemas complexos estáveis compostos por agentes, como o são as sociedades humanas. Elas são reproduzidas por força da nossa capacidade de repetição de passado, para a qual fomos treinados pela educação familiar, escolar, religiosa, militar ou cívica. Se todas as pessoas resolvessem inovar ou mesmo se, de repente, uma reduzida parcela de pessoas resolvesse introduzir mudanças significativas no seu comportamento privado e nas suas atividades sociais, poderia ser o caos.


Para reduzir a possibilidade de que tais coisas venham a ocorrer, num estado de guerra, restringem-se as liberdades civis e aumenta-se a vigilância, estimula-se a delação, concede-se licença para matar suspeitos, criam-se ícones de bem e mal para tentar cavar sulcos no imaginário social, fazendo o trânsito dos pensamentos e das ações coletivas por eles escoar. E, sobretudo, infunde-se o medo.


O problema maior da guerra, quem nem todo mundo percebe, é que ela não é travada somente contra o inimigo externo. A guerra é um modo de estar no mundo, uma maneira particular de urdir ordem pervertendo a humanidade do homem. Toda guerra é “feita” também para dentro e muda necessariamente as relações internas entre pessoas, grupos sociais e instituições. Toda guerra é uma guerra civil, porque ataca aquilo que Tocqueville chamava de “governo civil”.


Assim, quando um Estado se declara em guerra, são introduzidas alterações importantes no seu padrão de relação com a sociedade. Uma parte das atividades sociais, que a sociedade realiza por suas próprias razões, é submetida às razões do Estado. Não me refiro apenas à restrição ou à supressão das liberdades civis básicas. Me refiro ao protagonismo dos cidadãos, à sua capacidade de tomar iniciativas, alavancar recursos e assumir responsabilidades, quer dizer, me refiro, precisamente, àquilo que Alexis de Tocqueville observou – vejam só! – na América, em meados do século XIX: ou seja, ao autogoverno, ao que ele chamava de “governo civil” e ao que hoje nós chamamos de capital social. O Estado de guerra introduz mudanças no padrão de relação entre Estado e sociedade que desencadeiam uma dilapidação acelerada do capital social acumulado.


Ao exacerbar o estadocentrismo, quer dizer, ao impor a racionalidade do Estado na Sociedade Civil, o estado de guerra se constitui como o grande exterminador do capital social. Com o estado de guerra, passa a prevalecer a “lógica” do mainframe no lugar da “lógica” da rede, as conexões entre pessoas e grupos necessariamente se verticalizam, se compartimentalizam e o universo psicossocial passa a ser polarizado por um único projeto que decorre de uma única razão: a razão de Estado, que passa, entre outras coisas, a controlar os espaços de fluxo das informações. Da mesma forma, com o estado de guerra, as regras do jogo democrático e os processos democratizantes são atropelados pela prevalente atuação de enclaves autocráticos, com a concessão de poderes especiais ao executivo, com a instalação, às vezes, de tribunais de exceção e, sempre, com a privilegiamento da relação comando-execução. A política é degenerada como arte da guerra, como ciência do estrategista, como esfera das relações amigo versus inimigo, como teatro das operações do ‘nós contra os outros’. Enfim, abole-se ou restringe-se o necessário espaço de liberdade para o exercício da politics e a policy passa a ser pautada pela necessidade cada vez maior de obtenção de ordem, hierarquia, disciplina e obediência – sacrifícios da liberdade exigidos pelo Leviatã.


Pode-se dizer que ontem era pior e que hoje as coisas estão mais civilizadas, porque existe a vigilância da imprensa, porque temos a Internet, porque o grau de accountability é muito maior. Não sei. Ontem como hoje, no estado de guerra, o governo torna-se mais opaco aos cidadãos, e procedimentos que deveriam ser públicos passam a ser envoltos em segredo por motivos de segurança nacional.


No comando do novo Leviatã eletrônico, sentadinho lá na sua “sala de guerra” computadorizada, pode estar, entretanto, um psicopata, um bandido ou apenas um cretino. Os Estados, monárquicos ou republicanos, não têm qualquer proteção contra isso. Já assistimos incontáveis vezes na história moderna: de Stalin a Milosevic, passando até por dirigentes eleitos de grandes nações ocidentais do mundo democrático, como Hitler ou Mussolini – todos genocidas ou etnocidas –, por facínoras e canibais como Idi Amin, por torturadores como Pinochet, por delinqüentes e malfeitores como Noriega, por golpistas e terroristas, como Saddam e os milicianos talibãs... a lista é imensa e não se tem, repito, qualquer proteção contra isso, nem nas autocracias, nem nas democracias. Nas democracias, porém, há um jogo delicado de contrapesos de poderes relativamente independentes, de situação e oposição, de liberdade de informação e comunicação, que compensa e muitas vezes corrige insanidades deste ou daquele ator, evitando catástrofes de maiores proporções. Aliás, este é um dos motivos da democracia ser preferível à autocracia. O problema é que, em estado de guerra, as democracias não funcionam exatamente como tal.


Pois bem. Se a ‘America’s new war’ se generalizar, haverá, certamente, um retrocesso no fortalecimento da Sociedade Civil e no processo de sua mundialização, bem como uma contração da esfera pública, sobretudo da emergente esfera pública não-estatal – a novidade mais importante desta passagem, que estamos vivendo, para o novo milênio, na transição para uma sociedade em rede, para uma era global da informação e do conhecimento.


Pode-se dizer que o estado de guerra ataca a globalização, e a ataca precisamente naquilo que ela tem de bom: a dissolução progressiva das fronteiras nacionais e culturais, a conformação de uma cidadania planetária, a universalização de idéias-valores humanizantes, a celebração de pactos mundiais em torno dos direitos humanos, da conservação dos recursos naturais e contra a proliferação de instrumentos de destruição e de violência, como as armas automáticas – coisas que, significativamente, Bush já vinha atacando sem precisar de terrorismo algum.


Tudo o que avançamos em termos de uma nova concepção de desenvolvimento – um desenvolvimento humano e social sustentável – encontra-se agora sob ameaça de retrocesso. A idéia de que desenvolvimento envolve capacidade de inovação, de fazer parcerias, de criar ambientes favoráveis à sinergia e de aproveitar as inusitadas potencialidades da simbiose – todos esses novos conceitos-chave da mudança de uma velha idéia de crescimento para uma nova concepção de desenvolvimento estão agora ameaçados. Perversamente, o velho crescimento pode até vir a ocorrer daqui para a frente, em função de uma dinamização da indústria da guerra e de um aumento da produtividade do trabalho por força de uma coesão social incentivada pela guerra.


A rejeição da solução política


Sem dúvida o momento é grave, muito grave. Talvez o mais grave de toda história recente. E é grave porquanto uma solução política está sendo rejeitada.


Objetivamente, sabemos que os conflitos atuais têm solução e que essa solução passa necessariamente pela política. O fulcro dos eventos em tela está no Oriente Médio, na luta entre palestinos e israelenses e na posição irresponsável assumida pelos Estados Unidos diante dessa luta, aliando-se abertamente a um dos lados em disputa ao invés de assumir uma posição imparcial e fazer um esforço realmente sério de promover a paz – o que, nas circunstâncias do mundo presente, passa pela criação, amplamente negociada e cooperativamente pactuada, de um Estado palestino.


Pelo papel hegemônico que cumprem, se quiserem realmente acabar com o terrorismo, os Estados Unidos deveriam fazer isso tanto no Oriente Médio quanto na Irlanda do Norte, no País Basco e em todos os lugares onde profundos ressentimentos historicamente acumulados geram respostas irracionais como as que assistimos em Nova York e Washington.


O momento é grave porque o governo americano parece não vislumbrar tal solução. Não dá mostras de querer fazer política, muito menos política democrática. A julgar pelas suas declarações, parece querer a guerra mesmo.


O momento é particularmente grave, além de tudo, porque os demais governos do mundo ocidental, por mais bem intencionados que sejam, não podem fazer muita coisa, pelo menos por enquanto. Diante dos contrangimentos impostos pela “lógica” autocrática da política externa e pela correlação de forças no plano internacional, atuando na salvaguarda dos interesses de seus países, nenhum governante do ocidente poderia se colocar, em nome da paz, frontalmente contra as tenebrosas medidas ensaiadas pelos Estados Unidos.


Neste momento só a Sociedade Civil mundial pode reagir. Aliás, neste momento, as Sociedades Civis de todos os países são obrigadas a reagir, se não por motivos ético-políticos – em nome da liberdade e em defesa da democracia –, antes de tudo, em prol de sua própria sobrevivência, ameaçada com a possível generalização da ‘America’s new war’. Se não reagir, a Sociedade Civil estará condenada à uma condição de permanente minoridade política.


Networking pela paz


E a única reação possível da Sociedade Civil é articular um grande movimento pela paz. Um movimento local, capilar, nas escolas, nas igrejas, nos bairros, distritos e municípios. Em cada um desses lugares é preciso argumentar contra a guerra, desvelar as suas motivações anti-humanas, exemplificar com seus horrores. Mas é preciso também um movimento global, que se divulgue pela mídia tradicional, pelo correio eletrônico e pela Internet (que agora serão policiados até onde isso for possível) e pelas nascentes redes “P2P” (de vez que os grandes provedores, como a AOL, por exemplo, estarão cada vez mais controlados). É hora, pois, de inventar novos softwares que permitam rápida comunicação horizontal imune aos controles centralizados. É hora de networking, de fazer redes, cada vez mais redes, redes dentro de redes, até tornar obsoletos os mainframes. Até que a prevalência das velhas ‘razões de Estado’ seja contrabalançada pela emergência de novas ‘razões de Sociedade’.


O objetivo desse movimento é colocar a paz na agenda política do mundo. É dizer que existem coisas em relação às quais não podemos mais retroceder. Existem valores, que estão se universalizando, em relação aos quais não podemos admitir qualquer retrocesso. A liberdade e a democracia não podem ser sacrificadas, substituídas pela ordem e pela autocracia mesmo quando isso seja feito em nome da liberdade e da democracia. É preciso desmascarar tal ardil: não se pode defender a democracia restringindo a democracia; a democracia é meio e fim, quer dizer, só se alcança democracia praticando democracia.


A paz não pode ser usada para justificar a guerra. “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”, está escrito nos quartéis. Está errado. “Se queres a paz, prepara-te para a paz” – este sim deve ser o lema dos democratas.


Já se disse que existe o verbo ‘guerrear’, mas não existe o verbo ‘pazear’. É verdade. Mas o problema não é a falta da palavra: o problema é a falta do conceito. Como escreveu o biólogo chileno Humberto Maturana, “a guerra não acontece, a fazemos” (3). Agora poder-se-ia dizer, diante da ameaça de guerra, que a paz também não acontece: a fazemos.


Mas "o que fazer" para fazer a paz tem que ser agora um novo que-fazer.


É hora de nossos novos líderes espirituais se conectarem em rede para reafirmar: (a) o que não queremos mais; e (b) o que queremos daqui para a frente.


O que não queremos mais? Não queremos mais a estratégia “olho por olho”. “Olho por olho” fez Kosovo, fez a Chechênia, fez a Macedônia e faz, hoje, o belicismo israelense atacar e ser atacado, ser atacado e retaliar, retaliar, retaliar numa escalada insana e sem fim. É preciso relembrar que isso nada tem a ver com o que disseram – e fizeram – líderes espirituais de vários matizes, como Jesus de Nazaré, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, Albert Schweitzer ou Martin Luther King.


Não queremos mais que o mundo seja divido em lados: o lado da ordem (do bem, da vida, do belo, da luz, da sabedoria, do verdadeiro, do justo e do perfeito) e o lado do caos (do mal, da morte, da feiura, das trevas, da ignorância, do falso, do injusto e do imperfeito). Não queremos mais ser manipulados por essa visão dicotômica, e radicalmente antidemocrática. Recitemos Solzhenitsyn: “Ah, se fosse assim tão simples! Se houvesse pessoas más em um lugar, insidiosamente cometendo más ações, e se nos bastasse separá-las do resto de nós e destruí-las. Mas a linha que divide o bem do mal atravessa o coração de todo ser humano. E quem se disporia a destruir uma parte do seu próprio coração?”


Continua

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