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Quem paga a conta?

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Em agosto, com a desvalorização do real em relação ao dólar, a dívida em títulos do governo federal superou os R$ 606 bilhões – o nível mais alto da história brasileira. A convulsão econômica provocada pelos atentados terroristas nos Estados Unidos e a perspectiva de uma nova guerra mundial deixam várias interrogações quanto aos possíveis reflexos no mercado financeiro. E pior: a sociedade, que tem amortizado a dívida com sofrimento, pode, mais uma vez, pagar a conta.

Discutir o endividamento brasileiro e suas conseqüências sociais tem sido uma das maiores preocupações da Campanha Jubileu – um movimento que congrega sindicatos, igrejas e organizações não-governamentais. Vários eventos têm sido realizados com o objetivo de promover um debate nacional e elaborar propostas. O mais recente foi o Tribunal da Dívida Interna, em Porto Alegre (RS), nos dias 5 e 6 de setembro, para abordar a responsabilidade da dívida – e seus encargos – na situação de miséria em que vive grande parte da população.

Reproduzindo o modelo de um autêntico julgamento, os participantes foram divididos em acusação e defesa, com testemunhas de ambos os lados e um juiz relator. Os acusados eram o Estado e as instituições – públicas e privadas – responsáveis pelas políticas econômicas que geraram o endividamento. A vítima, o povo brasileiro.

O veredicto foi contrário aos réus, mas o documento oficial – contendo a decisão do júri, suas recomendações e conclusões – somente será divulgado em outubro. No próximo dia 1º, organizadores e participantes deverão se reunir novamente para dar uma forma final ao relatório.

Rafael Cunha, presidente do Sindicato dos Economistas do Rio Grande do Sul e um dos coordenadores do evento, considera a realização do Tribunal da Dívida Interna uma conseqüência natural do processo de endividamento do país. “Em 1999, realizamos um tribunal semelhante para tratar da dívida externa e chegamos à conclusão de que era impossível entender a dívida externa sem a compreensão da interna. Elas são parte de um mesmo processo”.

Opinião semelhante tem o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul, Heitor José Schuch, que acompanhou a campanha, embora não tenha podido participar do Tribunal. “Ocorre que existe uma discussão muito maior a respeito da dívida externa, e as pessoas tendem a dar mais importância a ela. Mas é preciso ajustar logo a dívida interna, que está se tornando impagável, sob o risco de inviabilizar o país”, alerta.

Siamesas

De acordo com a resolução do júri, é necessário que se faça uma auditoria da dívida – nos moldes já previstos na Constituição Federal, no Artigo 26 das Disposições Transitórias, que diz:

“No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.

§ 1º - A Comissão terá a força legal de Comissão Parlamentar de Inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União.

§ 2º - Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível.”

A Campanha Jubileu propõe a criação de uma Auditoria Cidadã, para apurar o real montante da dívida (interna e externa) brasileira. Uma das participantes desse movimento é Maria Lúcia Fatorelli, auditora da Receita Federal e presidente da Delegacia Sindical de Belo Horizonte. “Chamamos de Auditoria Cidadã porque parte de uma iniciativa dos cidadãos. Estamos levantando dados para realizar esse trabalho, porque uma auditoria se faz com base em documentos. Acreditamos ser possível identificar possíveis ilegalidades. Isso afeta diretamente a vida das pessoas. Nós pretendemos que essa auditoria se faça de forma oficial, como está na Constituição, mas, enquanto isso, vamos tentanto levantar esses números para pressionar as autoridades”, diz ela.

Dom Orlando Dotti, bispo de Vacaria, foi um dos depoentes no Tribunal da Dívida Interna, na sessão que discutiu “a política neoliberal de endividamento e de exclusão social e os instrumentos para o exercício da cidadania e da democracia”. Ele procurou ressaltar o aspecto ético da dívida, caracterizando-a como uma forma de dominação, e se disse satisfeito com o veredicto. “A dívida financeira tem sido posta acima das dívidas com a sociedade, o que distorce a função do Estado, que deve primeiro cumprir as suas obrigações sociais. O Estado é muito fiel ao pagamento da dívida financeira e muito pouco ao da dívida social. E às vezes paga a primeira com recursos que deveriam ser aplicados nesta”.

Segundo o bispo, uma auditoria – composta por membros do Congresso Nacional e representantes de organizações da sociedade – é uma medida necessária “para que se descubra quem tomou dinheiro do exterior e para mostrar que a dívida externa é que faz crescer a interna”. Dom Orlando – para quem as dívidas são siamesas e se alimentam uma da outra – o temor maior é que a economia baseada no endividamento acabe inviabilizando o governo.

“A dívida interna está tomando proporções absurdas”, afirma Maria Lúcia. “É preciso examinar os contratos entre os municípios, estados e o governo federal”.

No último dia 13, uma comissão da Campanha Jubileu foi a Brasília (DF) para entregar ao presidente da Câmara, deputado Aécio Neves (PSDB-MG), cem mil cartas pedindo que a auditoria seja realizada. Em seguida, a comissão digiriu-se ao Senado Federal para protocolar um pedido de agilidade para o Projeto de Lei da senadora Heloísa Helena (PT-AL) que estabelece o perdão para a dívida dos países mais pobres.

É apenas o início de uma mobilização que se pretende muito mais ampla. As cartas ainda podem ser enviadas para a Campanha Jubileu Sul/Brasil, no seguinte endereço: SDS, 36, Bloco P, Edifício Venâncio III, salas 410/414, em Brasília, DF. O CEP é 70393-900. Os coordenadores da campanha garantem que toda a correspondência recebida será encaminhada ao presidente da Câmara.

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